17 de ago. de 2016

BEM FEITO: O ARTHUR SE FOI DA ATENAS

Arthur Azevedo - Homenageado do Mês
            Que rico e grandioso o século 19. Os anos 1800 e lá vai fumaça nos deram grandes artistas: músicos, poetas, pintores, escultores, escritores; renomados e dignos políticos, homens e mulheres co-autores desse universo maravilhoso que habitamos.
            Claro que o número de patifes de toda natureza também é incontável. Mas são assim todos os séculos e é dessa matéria multifacetada que se compõe a vida e que a torna gloriosa para uns e escabrosa para outros.
            O que não é certo é chutar cachorro morto. Por isso falamos e homenageamos os que continuam vivos. Tipo esse nosso Arthur Azevedo, maranhense de quatro costados, gorducho, risonho, com a cachola cheia das ideias mais permissivas e fustigantes para a sua época e o lugar que escolheu para viver a maior parte de sua vida: a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
            A nossa São Luís, mais provinciana ainda, não lhe suportaria sempre o peso do talento, a algazarra de seus chistes, a chacota dos seus insultos literários. Não! Nada disso, e ainda hoje é assim. Quem chega planando nas asas de um avião, e, lá de cima, enxerga a beleza natural dessa ilha-baía de São Marcos, os modernos edifícios São Francisco praias acima e arredores, imagina-a livre de preconceitos e chamixungas.
            Que nada, compadre, São Luís continua sendo um poço de provincianismo e tédio. A cafonice impera em determinados setores ditos intelectuais. Os círculos universitários, notadamente lá pras bandas da UFMA, vão se constituindo um verdadeiro circo dos horrores, da imbecilidade, de verdadeiros professores-malas e estudantes sem rodinha e sem alça.
        E tome governo Flávio Dino, PCdoB, bumba-meu-boi no Reviver, Pedrinhas, e aquelas benditas chuvas torrenciais do fim de tarde. Nada de galochas ou guarda-chuva!
             E, por tudo isso e mais aquilo, Arthur Azevedo picou a mula e foi falar mal e retratar a tal sociedade carioca. Quanto a nós, o trazemos (ou trazemo-lo, a escolha é sua: Dilma ou Temer?) aqui, nesta homenagem que o Blog LITERATURA LIMITE presta mensalmente aos nossos imortais de verdade, sem fardões e bijuterias, mas com uma obra literária capaz de dar inveja a muito escrevinhador do presente. Seguem-se uns pensamentos do homem, e o conto, Uma aposta, de quem pra nós varou séculos, só isso e basta, ou não!
 
Teatro Arthur Azevedo - SP
Arthur Azevedo e a criação do teatro nacional:

Quando eu morrer, não deixarei meu pobre nome ligado a um livro, ninguém citará um verso meu, uma frase que saísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: ‘Ele amava o teatro’, e este epitáfio moral é bastante, creiam, para minha bem-aventurança eterna.”
22 de setembro de 1898
Arthur Azevedo

Arthur chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com 18 anos. Dividia sua atividade profissional entre o teatro, o jornalismo e um cargo público no Ministério da Agricultura, onde conheceu Machado, seu grande amigo e crítico implacável. Em suas primeiras incursões pelo teatro, Arthur procurou escrever teatro “sério” e corresponder assim aos anseios da elite intelectual de então. Mas frustrou todas as suas expectativas, pois tais peças não agradavam ao público. Passou então a levar à cena suas primeiras comédias. Com elas, Arthur Azevedo conquistou o reconhecimento popular e conheceu o sucesso. Para os companheiros de ofício, entretanto, nosso autor sentia a necessidade de justificar sua opção estética como se ela fosse uma espécie de pecado:

Todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras, ao passo que enveredando pela “bambochata” não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e... proventos. Perdoem-me por citar essa última fórmula de glória, mas... que diabo... ela é essencial para um pai de família que vive de sua pena!...”

Durante três décadas (entre 1877 e 1907), as Revistas de Ano foram apresentadas com enorme sucesso popular. Algumas delas foram escritas por Arthur em parceria com seu irmão, Aluísio Azevedo. Mas sempre foram duramente criticadas pelos grandes escritores do período. Em resposta a essas críticas, Arthur Azevedo definia suas Revistas com auxílio de uma canção:
“Eu sou a Revista de Ano
Brasileira
Quem diz que as artes profano
Diz asneira
Aqui como em toda parte
Sou benquista
Porque há sempre um pouco de arte
Na revista...”


Quem conta um conto aumenta um ponto? Ou a conta?
Conto de Arthur Azevedo
UMA APOSTA
Se o Simplício Gomes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos: “Ele gostava da Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício Gomes, empregaremos esta expressão menos familiar: “Ele amava Edviges.”
O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família, mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.
O caso é que o Simplício Gomes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
– Aposto que hoje chove!
– Que idéia! o dia está bonito!
– Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda certeza!
– Não temos!
– Façamos uma aposta!
– Valeu! se chover eu perco uma caixa de charutos.
– E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.
– Quem lhe disse que cobicei?
– Ora, esses olhos não me enganam…
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita ingenuidade:
– Você faz mal em apostar, Simplício! É muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela idéia de que quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um marido e efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde, os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.
O Simplício, que não tinha o altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu; e começou a freqüentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos; mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes, afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:
– Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
– Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
– Já lhe disse que tenho que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades! Olhe que depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém!
– Bom; não precisa zangar-se…
– Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
– Faz bem. Adeus. Até quando?
– Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:
– Vamos ter chuva.
– Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
– Apostemos!
– Pois apostemos! Eu perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
– Eu… perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.


Pesquisa e texto final:

Raimundo Fontenele

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