![]() |
Arthur Azevedo - Homenageado do Mês |
Que rico e grandioso o século 19. Os anos
1800 e lá vai fumaça nos deram grandes artistas: músicos, poetas, pintores,
escultores, escritores; renomados e dignos políticos, homens e mulheres
co-autores desse universo maravilhoso que habitamos.
Claro
que o número de patifes de toda natureza também é incontável. Mas são assim
todos os séculos e é dessa matéria multifacetada que se compõe a vida e que a
torna gloriosa para uns e escabrosa para outros.
O
que não é certo é chutar cachorro morto. Por isso falamos e homenageamos os que
continuam vivos. Tipo esse nosso Arthur Azevedo, maranhense de quatro costados,
gorducho, risonho, com a cachola cheia das ideias mais permissivas e
fustigantes para a sua época e o lugar que escolheu para viver a maior parte de
sua vida: a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
A
nossa São Luís, mais provinciana ainda, não lhe suportaria sempre o peso do
talento, a algazarra de seus chistes, a chacota dos seus insultos literários.
Não! Nada disso, e ainda hoje é assim. Quem chega planando nas asas de um avião,
e, lá de cima, enxerga a beleza natural dessa ilha-baía de São Marcos, os
modernos edifícios São Francisco praias acima e arredores, imagina-a livre de
preconceitos e chamixungas.
Que
nada, compadre, São Luís continua sendo um poço de provincianismo e tédio. A
cafonice impera em determinados setores ditos intelectuais. Os círculos
universitários, notadamente lá pras bandas da UFMA, vão se constituindo um
verdadeiro circo dos horrores, da imbecilidade, de verdadeiros
professores-malas e estudantes sem rodinha e sem alça.
E
tome governo Flávio Dino, PCdoB, bumba-meu-boi no Reviver, Pedrinhas, e aquelas
benditas chuvas torrenciais do fim de tarde. Nada de galochas ou guarda-chuva!
E, por tudo isso e mais aquilo, Arthur Azevedo
picou a mula e foi falar mal e retratar a tal sociedade carioca. Quanto a nós, o
trazemos (ou trazemo-lo, a escolha é sua: Dilma ou Temer?) aqui, nesta homenagem que o Blog LITERATURA LIMITE presta mensalmente
aos nossos imortais de verdade, sem fardões e bijuterias, mas com uma obra
literária capaz de dar inveja a muito escrevinhador do presente. Seguem-se
uns pensamentos do homem, e o conto, Uma
aposta, de quem pra nós varou séculos, só isso e basta, ou não!
Arthur
Azevedo e a criação do teatro nacional:
“Quando
eu morrer, não deixarei meu pobre nome ligado a um livro, ninguém citará um
verso meu, uma frase que saísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: ‘Ele
amava o teatro’, e este epitáfio moral é bastante, creiam, para minha
bem-aventurança eterna.”
22 de setembro de 1898
Arthur Azevedo
Arthur
chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com 18 anos. Dividia sua atividade
profissional entre o teatro, o jornalismo e um cargo público no Ministério da
Agricultura, onde conheceu Machado, seu grande amigo e crítico implacável. Em
suas primeiras incursões pelo teatro, Arthur procurou escrever teatro “sério” e
corresponder assim aos anseios da elite intelectual de então. Mas frustrou
todas as suas expectativas, pois tais peças não agradavam ao público. Passou
então a levar à cena suas primeiras comédias. Com elas, Arthur Azevedo
conquistou o reconhecimento popular e conheceu o sucesso. Para os companheiros
de ofício, entretanto, nosso autor sentia a necessidade de justificar sua opção
estética como se ela fosse uma espécie de pecado:
“Todas
as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras, ao passo
que enveredando pela “bambochata” não me faltaram nunca elogios, festas,
aplausos e... proventos. Perdoem-me por citar essa última fórmula de glória,
mas... que diabo... ela é essencial para um pai de família que vive de sua
pena!...”
Durante
três décadas (entre 1877 e 1907), as Revistas de Ano foram apresentadas com
enorme sucesso popular. Algumas delas foram escritas por Arthur em parceria com
seu irmão, Aluísio Azevedo. Mas sempre foram duramente criticadas pelos grandes
escritores do período. Em resposta a essas críticas, Arthur Azevedo definia
suas Revistas com auxílio de uma canção:
“Eu sou a Revista de Ano
Brasileira
Quem diz que as artes profano
Diz asneira
Aqui como em toda parte
Sou benquista
Porque há sempre um pouco de arte
Na revista...”
Quem
conta um conto aumenta um ponto?
Ou a conta?
Conto de Arthur Azevedo
UMA APOSTA
Se o Simplício Gomes não fosse um
rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de
palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses quebra-lanças que só se
encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos: “Ele gostava
da Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício Gomes, empregaremos esta expressão
menos familiar: “Ele amava Edviges.”
O seu amor tinha, realmente, alguma
coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu
adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se
atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não
tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia
casar-se e viver modestamente em família, mas era tão feio, tão pequenino, tão
insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia
desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não
acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela,
por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar
que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva
sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e montepio deixados pelo
marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não
sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e
dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que
naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado,
das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de
família.
O caso é que o Simplício Gomes
parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao
ardil de uma aposta:
– Aposto que hoje chove!
– Que idéia! o dia está bonito!
– Pois sim, mas o calor é excessivo:
temos água com toda certeza!
– Não temos!
– Façamos uma aposta!
– Valeu! se chover eu perco uma caixa
de charutos.
– E eu aquela blusa que você viu na
vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.
– Quem lhe disse que cobicei?
– Ora, esses olhos não me enganam…
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita
ingenuidade:
– Você faz mal em apostar, Simplício!
É muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é
uma lástima!
Conquanto não se atrevesse a falar em
casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela idéia de que quando menos se
pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um marido e efetivamente, não se
passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por um
cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os
dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe graças
à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber três cartas, Dudu contestou,
convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a
correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber
o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do
transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde, os seus sentimentos,
limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter
primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A velha, com toda a sua simplicidade,
pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se
transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as
informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de
bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma
coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.
O Simplício, que não tinha o
altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro,
mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu; e
começou a freqüentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa,
mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou
macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase
remorsos; mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo
infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou
a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com
o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas
qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de
um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam
ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes, afastado, num canto da sala,
folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:
– Vou-me embora; tenho ainda que dar
umas voltas antes da noite.
– Ora, ainda é cedo; fique mais um
instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
– Já lhe disse que tenho que fazer!
Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades!
Olhe que depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações
a ninguém!
– Bom; não precisa zangar-se…
– Não me zango, mas contrario-me! Não
me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
– Faz bem. Adeus. Até quando?
– Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu,
despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e saiu batendo passos enérgicos,
de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando
para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de
mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um
ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou
para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:
– Vamos ter chuva.
– Não diga isso, Dudu: o tempo está
seguro!
– Apostemos!
– Pois apostemos! Eu perco uma coisa
bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
– Eu… perco-me a mim mesma, porque
quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de
Simplício Gomes.
Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele
Nenhum comentário:
Postar um comentário