3 de ago. de 2016

DE CARA SUJA

Neste dia a sua Coluna QUARTA-FEIRA É DIA DE RF finaliza a postagem do livro DE CARA SUJA, em 7 capítulos que trouxeram até vocês as aventuras de uma turma de drogados. Sem filtros moralistas ou hipócritas, seguimos o destino desses jovens que se deixaram embalar pela falsa ilusão de que, usando drogas, estavam pisando em terra firme. Até o momento em que o chão começa a faltar e eles descobrem que estão pisando em areias movediças, atravessando pântanos ou balançando-se abeira do abismo. Uns descobrem isto a tempo, outros o fazem muito tarde, quando já não existe mais esperança nem salvação.
Fique esperto.
E atento.
Na próxima quarta, uma nova série: CRÔNICAS DO PUCUMÃ. Incríveis histórias vividas em São Domingos do Maranhão, um retrato fiel da política e do cotidiano das cidades do interior maranhense nas décadas de 50 e 60.  


Capítulo 7

(Resumo: Carlos teve que ir para a casa de seus pais no interior para livrar-se das drogas e também para tratar-se dos efeitos nocivos que estas provocaram fazendo-o adoecer. Após curar-se estava de volta a São Luís e ao convívio com turma)

– O que, Beto? Alguém foi em cana – perguntei, curioso.
– Pior, Carlos, se lembra do Osano?
– Sei, claro que lembro. O que houve com ele?
E Beto contou em detalhes, porque estava junto com Osano, o que havia acontecido.
– Olha, acho que fazia uma semana que você tinha viajado. A gente estava aqui mesmo na G. Dias, quando o Osano chegou com quatro caixas de Preludim, nervoso que só ele. Aí fomos eu, ele, ZL e Zé Carlos ali embaixo na Avenida Beira-Mar até um casarão abandonado que existe lá. Preparamos o pico e Osano, depois de ter se aplicado duas vezes, queria porque queria mais. Disse que não estava sentindo nada, parecia que os picos não estavam fazendo efeito. Eu falei que era impressão dele, o cara estava com os olhos saltados. Ele queria que eu lhe aplicasse. Recusei e disse que se ele quisesse que tomasse sozinho. Bicho, ficamos ali ainda uns vinte minutos, batendo papo e fumando um cigarrinho de maconha.
– Duas aplicações, uma atrás da outra, e o cara ainda queria mais? – perguntei espantado.
– Para você ver como Osano estava pedindo pra levar. Em seguida, ZL e Zé Carlos caíram fora e fiquei só eu e o Osano ali, e ele insistindo para eu lhe aplicar. Falei que ele podia tomar sozinho, já havia dito isso antes. Ele disse que tudo bem, ia se aplicar e foi o que fez. Eu estava sentado em um bloco de pedra e ele de cócoras. Preparou mais uma dose de Preludim, fiquei só olhando ele começar a injetar-se.
Beto Reis suspirou, deu uma tragada na maconha que o Rei Júdi lhe passou, e continuou o relato:
– Desviei o olhar dele por um instante e quando voltei a olhar não quis acreditar no que estava vendo. Osano estava desabando para um lado, a seringa cheia de sangue pendia do antebraço. Cara, me deu um pavor naquela hora, imaginei a polícia chegando e me levando preso. Não esperei ele cair completamente e nem quis olhar para trás. Saí dali correndo, o coração aos pulos, estava até com medo de ter um troço. No dia seguinte, estava a foto do Osano, caído, na página policial do Jornal Pequeno.
Beto Reis estendeu a mão com a “baga” em minha direção.
– Pega aí, Carlos, essa coisa é da massa Beto Reis falou com dificuldade, boca, peito, nariz, pulmão cheios de fumaça da “erva maldita”, ou “mato santo” como ele costumava chamar.
Peguei a bagana de cigarro e sem fumar passei adiante. O Zé Carlos estava com os olhos vidrados em cima de mim, já à espera que eu lhe desse o fumo. E falei para o Beto:
– E o que dizia o jornal, Beto?
– A notícia dizia simplesmente que Osano fora encontrado morto num casarão na Avenida Beira-Mar. Tratava-se, segundo o jornal,  de algum traficante ou viciado em drogas pesadas, pois havia uma seringa caída ao lado do corpo. Falava ainda que o “indivíduo desconhecido” não portava nenhum documento, o que dificultava sua identificação. E que a causa da morte fora uma overdose, segundo apurou a reportagem do jornal junto ao Instituto Médico Legal. Foi isso, cara, teu parceiro de pico já era – finalizou Beto Reis, os olhos mais vermelhos que de costume.
Eu tinha saído algumas vezes com Osano e me picado em sua companhia. Era um camarada legal, muito impaciente, nervoso mesmo, mas era boa gente. Numa noite quase viramos São Luís de cabeça pra baixo. Tínhamos tomado um pico de uma droga nova no pedaço, um tal de Desbutal, um psicotrópico poderoso. Eu quase pirei de vez.
Ficamos mais de um dia e meio sem comer e sem dormir, andando para cima e para baixo. E bebendo quantidades homéricas de cerveja, sem que estas fizessem o menor efeito. Fomos de São Luís até São José de Ribamar, um balneário que fica na Região Metropolitana.
A gente foi andando pela praia, mais de quarenta quilômetros a pé. Perdemos a noção do tempo. A única coisa que lembro é que quando chegamos a São José de Ribamar estava amanhecendo. Devia ser umas quatro horas da madrugada, e fomos parar no final da praia, longe do centro da cidade. Avistamos apenas uns três casebres de pescadores e nos dirigimos a um deles.
O Osano bateu na porta do casebre e um preto velho sonolento, vestindo uma calça de brim cinza, sem camisa, abriu a porta e nos encarou meio assustado. Talvez o nosso aspecto não fosse recomendável naquela hora, mas o Osano convenceu o velho de que a gente era de paz.
– Passamos a noite aqui, tio, nos festejos do padroeiro. A gente bebeu muito. Só isso. Perdemos de vista uns amigos que iam nos dar carona de volta para São Luís. Se o senhor pudesse arranjar uns peixes fritos aí pra nós... estamos numa fome de cão... – Osano falou e estendeu uma nota de vinte mangos para o preto velho, que arregalou os olhos quando viu o dinheiro.
– Peixe frito? A essa hora, meu filho? – O nome do velho era Marcolino, ele disse.
– É, tio, estamos morrendo de fome. Se tiver uma bebidinha aí, até que não ia cair mal – falei.
– Esperem aí, sentem-se. Vou ver o que posso fazer.
Sentamos mesmo na areia da praia, em frente ao casebre, olhando aquele mar imenso, bravio, silencioso àquela hora da manhã. As ondas sussurravam de vez em quando. Segundo o velho Marcolino, devia ser mais ou menos quatro horas.
– Não sei se vocês gostam, mas é tudo que eu tenho – enquanto falava, Marcolino foi nos alcançando um litro de vodca pela metade. – Vocês estão com sorte. A mulher, antes de dormir, deixou umas tainhas no sal e limão.
– Pô, tio, o senhor é demais. Nem sei como lhe pagar... – falou Osano.
– Fiquem à vontade. Vou fritar os peixes ­– seu Marcolino enveredou pela porta dos fundos do humilde casebre.
Tomei uma pequena dose de vodca. Foi o bastante. O efeito do pico voltou com tudo. Falei para o Osano que estava me sentindo mal à beça, talvez fosse melhor a gente ir embora.
– Você está é louco, cara. Sente esse mar, esse céu, essa tranquilidade aqui. Para com esse papo de São Luís. Aquilo lá comparado com isso aqui é um inferno, cara.
– Tá legal, Osano, já estou melhor – falei, empapado de suor. Tinha sentido náuseas violentas.
Ficamos ali, curtindo as ondas indo e vindo, o barulho do mar em meio àquela natureza tão pura e um silêncio de ouro. Após meia hora, mais ou menos, o velho Marcolino apareceu com um caixote de madeira, improvisado como se fosse uma mesa. Coloco-o diante de nós e voltou com um prato de peixe frito e umas rodelas de limão, que tratamos de devorar em pouco tempo. Era sinal de que os efeitos da droga estavam passando, pois a fome tinha voltado. E o cansaço também.
Estava amanhecendo de verdade agora. A bola incendiada do sol rasgava o céu azul como faca na manteiga. O preto Marcolino despediu-se de nós, falando que estava indo para alto mar, para o trabalho diário da pesca.
A gente agradeceu e abraçou o velho Marcolino e a seguir deitamos e dormimos ali mesmo na areia da praia. Acordamos por volta de duas da tarde, molhados de suor, debaixo de um sol que queimava como fogo.
Mal podíamos andar até o centro da cidade, onde fomos pegar o ônibus que nos levaria de volta para São Luís.
E agora Osano também estava morto. Tem um poema, um soneto parece, do Mário Quintana que diz: “Menos um lugar na mesa, mais um nome na oração”.
Antes de dar um tchau para a patota, Beto Reis me deu mais uma notícia-bomba: o Bob tinha morrido em Brasília numa mesa de cirurgia. Segundo Beto, ninguém sabia ao certo o que acontecera. Parece que o Bob tinha tido um problema no coração e o pai o levou de avião para Brasília. Tinha de ser operado, mas não resistiu e também se foi.
E arrematou seu correio de más notícias: “e o Pixilinga morreu afogado num banho de açude. Tava muito chapado de maconha e cachaça”.
Durante o tempo em que fiz parte daquele grupo, encontrava-me diariamente com o Beto Reis, ZL os irmãos Zé Carlos e Zé Henrique, Louro, Brequista, Rei Júdi e tantos mais, mas não sabia nada da vida deles. Nem o nome dos pais da maioria deles eu sabia. Tudo o que nos ligava era apenas o vício. A necessidade de conseguir maconha. A luta em busca de grana para a compra de entorpecentes. As noitadas de drogas, sexo, rock and roll.
Ninguém chegava ali dando uma boa  notícia, relatando alguma vitória na escola, uma conquista qualquer no trabalho. Mesmo em plena época de Natal. Tudo girava somente em torno do vazio que a droga causava na alma da gente. Do caminho que se trilhava em direção ao fundo do poço, crente que estava subindo aos céus.
Os caras, para variar, estavam enrolando outro baseado, quando resolvi tirar o time de campo. A conversa estava animada. ZL estava contando as mesmas bravatas de sempre:
– ... aí dei umas porradas no cara, e arrastei a mina comigo...
– Ah, dá um tempo, cara. Você já contou essa mesma história dia desses – falou Zé Carlos.
O outro irmão Metralha, Zé Henrique, tratou de completar o papo do mano Zé Carlos:
– Ih, foi mesmo. Mudou só o nome da garota que se chamava Sandrinha e agora é Verinha – falou e caiu na risada. Todos riram, menos eu.
– Vão se catar, seus pamonhas! Vocês estão é com inveja, Não tenho culpa de ser bonito e gostoso... – ZL falava alisando a vasta cabeleira negra, os olhinhos quase fechando de tanta maconha.
– Que barato! Que barato, cara! – Zé Carlos falava sozinho, rindo sem parar. Pensei que se ele não parasse co m tanto fumo e pico ia terminar no pinel como o Brequista. E resolvi ir embora, dessa vez para sempre.
– Tchau, pessoal – falei e fui saindo sem esperar resposta.
Naquela noite de Natal caminhei em direção à pensão de Tia Júlia com o coração oprimido e a mente repleta de lembranças ruins. Quase dois anos com aquela turma: o que é que tinha? Amizade é que não...
Ou se pode chamar de amizade à oferta de ilusão, de loucura e de morte?

F I M


Raimundo Fontenele

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