Neste dia a sua Coluna QUARTA-FEIRA É DIA DE RF
finaliza a postagem do livro DE CARA SUJA, em 7 capítulos que trouxeram até
vocês as aventuras de uma turma de drogados. Sem filtros moralistas ou hipócritas,
seguimos o destino desses jovens que se deixaram embalar pela falsa ilusão de
que, usando drogas, estavam pisando em terra firme. Até o momento em que o chão
começa a faltar e eles descobrem que estão pisando em areias movediças,
atravessando pântanos ou balançando-se abeira do abismo. Uns descobrem isto a
tempo, outros o fazem muito tarde, quando já não existe mais esperança nem
salvação.
Fique esperto.
E atento.
Na próxima quarta, uma nova série: CRÔNICAS DO
PUCUMÃ. Incríveis histórias vividas em São Domingos do Maranhão, um retrato
fiel da política e do cotidiano das cidades do interior maranhense nas décadas
de 50 e 60.
Capítulo 7
(Resumo: Carlos teve que ir para a casa de seus
pais no interior para livrar-se das drogas e também para tratar-se dos efeitos
nocivos que estas provocaram fazendo-o adoecer. Após curar-se estava de volta a
São Luís e ao convívio com turma)
– O que, Beto? Alguém foi em cana – perguntei,
curioso.
– Pior, Carlos, se lembra do Osano?
– Sei, claro que lembro. O que houve com ele?
E Beto contou em detalhes, porque estava junto com
Osano, o que havia acontecido.
– Olha, acho que fazia uma semana que você tinha
viajado. A gente estava aqui mesmo na G. Dias, quando o Osano chegou com quatro
caixas de Preludim, nervoso que só ele. Aí fomos eu, ele, ZL e Zé Carlos
ali embaixo na Avenida Beira-Mar até um casarão abandonado que existe lá.
Preparamos o pico e Osano, depois de ter se aplicado duas vezes, queria porque
queria mais. Disse que não estava sentindo nada, parecia que os picos não
estavam fazendo efeito. Eu falei que era impressão dele, o cara estava com os
olhos saltados. Ele queria que eu lhe aplicasse. Recusei e disse que se ele
quisesse que tomasse sozinho. Bicho, ficamos ali ainda uns vinte minutos,
batendo papo e fumando um cigarrinho de maconha.
– Duas aplicações, uma atrás da outra, e o cara
ainda queria mais? – perguntei espantado.
– Para você ver como Osano estava pedindo pra
levar. Em seguida, ZL e Zé Carlos caíram fora e fiquei só eu e o Osano ali, e
ele insistindo para eu lhe aplicar. Falei que ele podia tomar sozinho, já havia
dito isso antes. Ele disse que tudo bem, ia se aplicar e foi o que fez. Eu
estava sentado em um bloco de pedra e ele de cócoras. Preparou mais uma dose de
Preludim, fiquei só olhando ele começar a injetar-se.
Beto Reis suspirou, deu uma tragada na maconha que
o Rei Júdi lhe passou, e continuou o relato:
– Desviei o olhar dele por um instante e quando
voltei a olhar não quis acreditar no que estava vendo. Osano estava desabando
para um lado, a seringa cheia de sangue pendia do antebraço. Cara, me deu um
pavor naquela hora, imaginei a polícia chegando e me levando preso. Não esperei
ele cair completamente e nem quis olhar para trás. Saí dali correndo, o coração
aos pulos, estava até com medo de ter um troço. No dia seguinte, estava a foto
do Osano, caído, na página policial do Jornal Pequeno.
Beto Reis estendeu a mão com a “baga” em minha
direção.
– Pega aí, Carlos, essa coisa é da massa Beto Reis
falou com dificuldade, boca, peito, nariz, pulmão cheios de fumaça da “erva
maldita”, ou “mato santo” como ele costumava chamar.
Peguei a bagana de cigarro e sem fumar passei
adiante. O Zé Carlos estava com os olhos vidrados em cima de mim, já à espera
que eu lhe desse o fumo. E falei para o Beto:
– E o que dizia o jornal, Beto?
– A notícia dizia simplesmente que Osano fora
encontrado morto num casarão na Avenida Beira-Mar. Tratava-se, segundo o
jornal, de algum traficante ou viciado
em drogas pesadas, pois havia uma seringa caída ao lado do corpo. Falava ainda
que o “indivíduo desconhecido” não portava nenhum documento, o que dificultava
sua identificação. E que a causa da morte fora uma overdose, segundo apurou a
reportagem do jornal junto ao Instituto Médico Legal. Foi isso, cara, teu
parceiro de pico já era – finalizou Beto Reis, os olhos mais vermelhos que de
costume.
Eu tinha saído algumas vezes com Osano e me picado
em sua companhia. Era um camarada legal, muito impaciente, nervoso mesmo, mas
era boa gente. Numa noite quase viramos São Luís de cabeça pra baixo. Tínhamos
tomado um pico de uma droga nova no pedaço, um tal de Desbutal, um
psicotrópico poderoso. Eu quase pirei de vez.
Ficamos mais de um dia e meio sem comer e sem
dormir, andando para cima e para baixo. E bebendo quantidades homéricas de
cerveja, sem que estas fizessem o menor efeito. Fomos de São Luís até São José
de Ribamar, um balneário que fica na Região Metropolitana.
A gente foi andando pela praia, mais de quarenta
quilômetros a pé. Perdemos a noção do tempo. A única coisa que lembro é que
quando chegamos a São José de Ribamar estava amanhecendo. Devia ser umas quatro
horas da madrugada, e fomos parar no final da praia, longe do centro da cidade.
Avistamos apenas uns três casebres de pescadores e nos dirigimos a um deles.
O Osano bateu na porta do casebre e um preto velho
sonolento, vestindo uma calça de brim cinza, sem camisa, abriu a porta e nos
encarou meio assustado. Talvez o nosso aspecto não fosse recomendável naquela
hora, mas o Osano convenceu o velho de que a gente era de paz.
– Passamos a noite aqui, tio, nos festejos do
padroeiro. A gente bebeu muito. Só isso. Perdemos de vista uns amigos que iam
nos dar carona de volta para São Luís. Se o senhor pudesse arranjar uns peixes
fritos aí pra nós... estamos numa fome de cão... – Osano falou e estendeu uma
nota de vinte mangos para o preto velho, que arregalou os olhos quando viu o
dinheiro.
– Peixe frito? A essa hora, meu filho? – O nome do
velho era Marcolino, ele disse.
– É, tio, estamos morrendo de fome. Se tiver uma
bebidinha aí, até que não ia cair mal – falei.
– Esperem aí, sentem-se. Vou ver o que posso fazer.
Sentamos mesmo na areia da praia, em frente ao
casebre, olhando aquele mar imenso, bravio, silencioso àquela hora da manhã. As
ondas sussurravam de vez em quando. Segundo o velho Marcolino, devia ser mais
ou menos quatro horas.
– Não sei se vocês gostam, mas é tudo que eu tenho
– enquanto falava, Marcolino foi nos alcançando um litro de vodca pela metade.
– Vocês estão com sorte. A mulher, antes de dormir, deixou umas tainhas no sal
e limão.
– Pô, tio, o senhor é demais. Nem sei como lhe
pagar... – falou Osano.
– Fiquem à vontade. Vou fritar os peixes – seu
Marcolino enveredou pela porta dos fundos do humilde casebre.
Tomei uma pequena dose de vodca. Foi o bastante. O
efeito do pico voltou com tudo. Falei para o Osano que estava me sentindo mal à
beça, talvez fosse melhor a gente ir embora.
– Você está é louco, cara. Sente esse mar, esse
céu, essa tranquilidade aqui. Para com esse papo de São Luís. Aquilo lá
comparado com isso aqui é um inferno, cara.
– Tá legal, Osano, já estou melhor – falei,
empapado de suor. Tinha sentido náuseas violentas.
Ficamos ali, curtindo as ondas indo e vindo, o
barulho do mar em meio àquela natureza tão pura e um silêncio de ouro. Após
meia hora, mais ou menos, o velho Marcolino apareceu com um caixote de madeira,
improvisado como se fosse uma mesa. Coloco-o diante de nós e voltou com um
prato de peixe frito e umas rodelas de limão, que tratamos de devorar em pouco
tempo. Era sinal de que os efeitos da droga estavam passando, pois a fome tinha
voltado. E o cansaço também.
Estava amanhecendo de verdade agora. A bola
incendiada do sol rasgava o céu azul como faca na manteiga. O preto Marcolino
despediu-se de nós, falando que estava indo para alto mar, para o trabalho
diário da pesca.
A gente agradeceu e abraçou o velho Marcolino e a
seguir deitamos e dormimos ali mesmo na areia da praia. Acordamos por volta de
duas da tarde, molhados de suor, debaixo de um sol que queimava como fogo.
Mal podíamos andar até o centro da cidade, onde
fomos pegar o ônibus que nos levaria de volta para São Luís.
E agora Osano também estava morto. Tem um poema, um
soneto parece, do Mário Quintana que diz: “Menos um lugar na mesa, mais um nome
na oração”.
Antes de dar um tchau para a patota, Beto Reis me
deu mais uma notícia-bomba: o Bob tinha morrido em Brasília numa mesa de cirurgia.
Segundo Beto, ninguém sabia ao certo o que acontecera. Parece que o Bob tinha
tido um problema no coração e o pai o levou de avião para Brasília. Tinha de
ser operado, mas não resistiu e também se foi.
E arrematou seu
correio de más notícias: “e o Pixilinga morreu afogado num banho de açude. Tava
muito chapado de maconha e cachaça”.
Durante o tempo em que fiz parte daquele grupo,
encontrava-me diariamente com o Beto Reis, ZL os irmãos Zé Carlos e Zé
Henrique, Louro, Brequista, Rei Júdi e tantos mais, mas não sabia nada da vida
deles. Nem o nome dos pais da maioria deles eu sabia. Tudo o que nos ligava era
apenas o vício. A necessidade de conseguir maconha. A luta em busca de grana
para a compra de entorpecentes. As noitadas de drogas, sexo, rock and roll.
Ninguém chegava ali dando uma boa notícia, relatando alguma vitória na escola,
uma conquista qualquer no trabalho. Mesmo em plena época de Natal. Tudo girava
somente em torno do vazio que a droga causava na alma da gente. Do caminho que
se trilhava em direção ao fundo do poço, crente que estava subindo aos céus.
Os caras, para variar, estavam enrolando outro
baseado, quando resolvi tirar o time de campo. A conversa estava animada. ZL
estava contando as mesmas bravatas de sempre:
– ... aí dei umas porradas no cara, e arrastei a
mina comigo...
– Ah, dá um tempo, cara. Você já contou essa mesma
história dia desses – falou Zé Carlos.
O outro irmão Metralha, Zé Henrique, tratou de
completar o papo do mano Zé Carlos:
– Ih, foi mesmo. Mudou só o nome da garota que se
chamava Sandrinha e agora é Verinha – falou e caiu na risada. Todos riram,
menos eu.
– Vão se catar, seus pamonhas! Vocês estão é com
inveja, Não tenho culpa de ser bonito e gostoso... – ZL falava alisando a vasta
cabeleira negra, os olhinhos quase fechando de tanta maconha.
– Que barato! Que barato, cara! – Zé Carlos falava
sozinho, rindo sem parar. Pensei que se ele não parasse co m tanto fumo e pico
ia terminar no pinel como o Brequista. E resolvi ir embora, dessa vez para
sempre.
– Tchau, pessoal – falei e fui saindo sem esperar
resposta.
Naquela noite de Natal caminhei em direção à pensão
de Tia Júlia com o coração oprimido e a mente repleta de lembranças ruins.
Quase dois anos com aquela turma: o que é que tinha? Amizade é que não...
Ou se pode chamar de amizade à oferta de ilusão, de
loucura e de morte?
F I M
Raimundo Fontenele
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