Conheci o poeta e escritor Carlos
Soares em meados dos anos oitenta. Eu já havia publicado aqui em Porto Alegre o
livro de poesias Pelos Caminhos Pelos
Cabelos, edição independente, e vindo do Maranhão, com passagens e residências
provisórias em Brasília, Curitiba, Balneário Camboriú, procurava agora “uma
pedra onde repousar a cabeça” (G.Dias ). Daí que, de repente, me vi entrosado
com a turma do Nelson Fachinelli e sua famosa Casa do Poeta (cadê-la? ninguém
sabe, ninguém viu?). Havia o Restaurante Dona Maria, na José Montauri e lá, uma
vez por mês, realizavam-se saraus literários capitaneados pelo Quixote
Fachinelli. Numa dessas reuniões conheci o Soares, e, até hoje, continuamos
amigos, nos encontrando e falando e respirando poesia.
Pois
que o Carlos Soares é essencialmente poeta. E um dos melhores daqui deste solo
gaúcho. Ter um estilo próprio é meio caminho andando para uma grande poesia. E
isso ele tem (coisa difícil, num mundo repleto de imitadores, plagiadores,
enganadores, em todas as áreas do conhecimento e da atividade humana).
Claro
que não está na mídia. Não está na mídia porque não frequenta patota. Não está
na mídia porque nunca fez concessões ao fácil e ao cabotinismo. Não está na mídia
porque manteve-se digno, íntegro, altivo, pensando e dizendo tudo o que é sua
convicção mais profunda e vedadeira: “seu Dirceu Borboleta, essa humanidade naão
presta” (Odorico Paraguassu, em O Bem Amado). Palavras que eu reforço e
certamente o poeta Soares as diria também.
É
ele que brilha na coluna desta Quarta-feira é de RF, do blog Literatura Limite,
com seu conto O Pequeno Demiurgo, uma
história saborosa comum a todos os garotos que adolescem: a descoberta dos
prazeres do sexo, o susto, o medo, as aflições que isso proporciona, e a
inesquecível tia. Todos nós tivemos uma tia dessas por perto. Nas horas amargas
para uns, e tão doces para outros. Vamos ler este grande demiurgo das letras
rio-grandenses: o poeta e escritor CARLOS SOARES. Um mestre e um amigo. (RF)
Poeta Carlos Soares |
O
PEQUENO DEMIURGO
by Carlos Soares
Jaz, entre pétalas secas, um besouro
(que o vulgo chama de “cascudo”). Nesse dia arisco, meio chuvoso, um pequeno
bule para lá e para cá, com a ponta de um graveto, o frágil encouraçado.
Lâminas de luz, aqui e ali, vez em quando
rasgam as nuvens e vêm lanhar o rosto pacífico da criança, de uns doze anos,
miudinha, quase um outro besouro...
É num fundo verde-escuro de um pátio
antigo, com um muro médio, brilhoso pela gosma diária de uma tia (sem
parentesco, emprestada) que sempre senta nele ou para tricotear com suas
agulhas ou para costurar com sua língua afiada, ela e uma vizinha, a vida
alheia, ou para ler algum romance ultrapassado – gosta dos de Vitor Hugo – cujo
nome final faz questão de pronunciar “Hugô”.
Dizem os maldosos que ela quando moça,
costumava sentar-se naquele muro com as coxas estrategicamente semiabertas,
tentando atrair a atenção de um rapaz vesgo que alugava quarto numa casa
fronteiriça. Até que se casou com Alfredo, aleijado de uma perna e funcionário
da Viação Férrea do Estado do Rio Grande do Sul.
Podem ser mentiras tais boatos,
talvez da boca de alguém rejeitado pela tia. Mas o guri, várias vezes flagrou
num olhar dissimulado a calcinha dela, no descer e subir na goiabeira, quando
apanhava frutas, no cruzar ou descruzar casual de pernas (o que fazia
lentamente, como se o provocasse para alguma coisa que ainda não desconfiava o
que fosse).
Era uma mulher de ancas grandes, estatura
média, sacudindo as fartas carnes num vestido leve, dançante, formando um ritmo
sensual e bárbaro, além de possuir ostensivos seios, ficando sabendo por um
velho da rua (“um desbocado!”, dizia sua mãe) serem as “mamicas”, termo esse
que conhecia, mas aplicado às cadelas. A tia, pensava, teria mamicas de cadela?
Enquanto escorraçava a morte inseta,
veio-lhe aos olhos, subitamente, o naco inferior e moreno daquelas enormes nádegas,
pelo furo da fechadura, quando ela se banhava no único cômodo da casa para esse
fim, dividido em dois por uma porta velha de gonzos do “tempo do epa” (expressão,
na época, usada por seu avô).
Do outro lado, que era um quartinho de
empregada, escuro, ele podia espiar, ainda que precariamente, a mulher, que
demorava-se no banho, levando muito tempo ensaboando as partes íntimas,
saboreando a ternura do sabonete, esfregando-o lentamente por todo o corpo.
Fazia isso desde que perdera Alfredo, ainda moço, esquartejado por um trem na
Via Férrea.
Restaram do pobrezinho algumas fotos
esmaecidas e uma gorda pensão. Botou luto. Cumpriu todo o ritual de boa viúva e
esposa de respeito. Certamente, amava Alfredo (dizem os maldosos que não era só
a perna que era aleijada...). As imagens do corpo triturado, pedaços de vísceras,
molhos de sangue, arrancaram uivos lancinantes dela, debruçada sobre os cacos
viscosos do cadáver, tentando recompor o marido com as bizarras peças de um
quebra-cabeça para sempre quebrado.
Tudo isso ele pode ver, embora, tais
cenas, não fossem permitidas às crianças. Escondeu-se nuns matos próximos à Via
Férrea, onde se deu o acidente, e viu homens estranhos, graves, de branco,
recolhendo como quem cata azeitonas fugidias no prato, os estilhaços
sanguinolentos do que duas horas atrás fora um ser humano, um homem.
Não sabia como nem por que, mas aquele
coleóptero insepulto lembrava-lhe Alfredo e partes íntimas de sua tia, ainda
mal delineadas nas suas retinas. Havia misteriosa ligação entre esses fatos:
uma energia secreta parecia uni-los para algum destino e isso o excitava, mesmo
que não soubesse naquele tempo o que era excitação nem destino.
Na banheira, a moça gemia profundamente
ao toque do simples sabonete. Mas ele não conseguia pegar boas imagens, fosse
pela penumbra do ambiente, fosse pela distância, ângulo difícil, medo,
vergonha, tudo junto, dificultando-lhe o perfeito enquadramento das curvas da “tia
gostosona!” (o mesmo velho desbocado da rua).
Ali, agora, cutucando o besouro morto,
começou a sentir o que nunca sentira antes: calor no órgão sexual. Não soube
explicar o motivo, muito menos atinar com ele. Trêmulo, puxou-o para luz do dia
e constatou, pasmado, que estava duro! Olhou para os lados, o rosto queimando,
e não viu ninguém. Prosseguiu na análise dos fatos, verdadeira pesquisa científica
no campo do erotismo infanto-juvenil, cujo objeto de estudo era a “piroca”
(ainda o mesmo velho desbocado!) e o laboratório, seu corpo: adolescia sem
saber.
Continuou tocando-o, movimentando-o,
entre o medo de ser pego e a vergonha do que fazia. Mas uma força incoercível
impulsionava-o, sujeitava-o àquilo: eram, realmente, coisas novas que estavam
nascendo, um prazer desconhecido, um segredo que dormia nele e que precisava,
contra todas as circunstâncias, se revelar.
Baixou as calças até os joelhos. Calças
de Brim Coringa, resistentes, pouco maleáveis. Surprendeu-se: sentia-se
completamente nu, embora semivestido, entregue ao mundo, isolado num imenso
deserto, excitadamente só, com sua descoberta.
O corpo tremia e febrava, suava frio –
porém ninguém naquele momento poderia vê-lo: os pais haviam saído e os vizinhos
mais próximos, pessoas de idade, faziam a sesta costumeira. E a tia, por onde
andava? Ah, deitada no sofá lendo “Hugô”. Tranquilamente deixava-se apossar
pela vontade nova, pela força que vinha do besouro morto, das nádegas enormes
na sua retina, do cadáver do marido dela, da adolescência que chegava cedo e
eficaz.
Quando levou um grande susto. Na sua
frente, como um fantasma, ela apareceu, os cabelos soltos, desgrenhados, rosto
vincado do sofá, embrulhada num roupão fino e rosa, as pupilas dilatadas por um
fogo que ele nunca vira antes e que caía e pousava exatamente no seu sexo
desnudo e duro.
Então percebeu a realidade de sua pequena
nudez e a impotência de qualquer gesto e a inutilidade de qualquer palavra. Além
do mais, a calça era de Brim Coringa, difícil de levantá-la com rapidez e certa
elegância de “caubói”, como vira num filme “de faroeste”.
Deixou-se ficar entre a vontade de sumir
dali e o pavor que o congelava. Queria explicar-se, apesar de tudo, inventar
uma mentira, mas, ao olhar o rosto da tia recém desperto da leitura, entendeu
que ela sabia que tudo aquilo só tinha uma causa: ela.
Soprava um vento úmido de chuva. A mulher
foi se aproximando, lenta e decidida, deixando uma coxa escapar do roupão,
grossa, firme, lustrosa. O guri petrificara-se. Ela aproximando-se mais e mais,
cortando-lhe a saída, impedindo-lhe os movimentos, até peitá-lo com os seios
inflados, redondos, de pérolas intumescidas e inquietas.
Ambos mudos, já cúmplices, o guri
querendo fugir e ficar, mais ficar do que fugir, como se vivessem,
silenciosamente, o último momento de suas vidas num selvagem planeta.
Até que a tia, não mais se contendo,
rangendo os dentes enlouquecida abriu o roupão e trouxe violentamente sua boca
imaculada para um dos mamilos incandescentes. Como se uma nebulosa lhe
invadisse o palato, apertou instintivamente o figo escuro, arrancando dela um
profundo “ai!”, e começou a roçar-lhe a língua atrevida, aprendiz, à força da
intuição.
A tia ganindo, arfando. O corpo todo
sacudia, em espasmos lentos, a princípio, mas depois feito um trem de carga
ameaçando descarrilar (o mesmo que matou Alfredo, talvez?).
A seguir, pegou sua pequena mão que
tremia e a pousou delicadamente no púbis de alto relevo, com tufos
encaracolados, úmidos do líquido de fêmea em cio, de pé, colada ao pequeno,
embriagada de prazer, quase arrebentando os frágeis ossos de uma adolescência
aflorante.
Então, num ronco pavoroso, sem nenhum
aviso, virou-se bruscamente erguendo o roupão, expondo um traseiro enorme,
quente, redondo, o primeiro e o mais belo que já vira em sua curta vida, que o
deixou incendiado de uma vontade que não sabia materializar e que intuía,
agora, diante daquele templo sagrado, que a tia, sacrílega, o obrigava a
profanar, condenando-o à danação eterna, como lhe ensinara o padre na primeira
comunhão.
Porém, não se movia. Não podia se mover,
tonteado pelo impacto daquelas volumosas nádegas, que durante muito tempo,
flutuaram na sua fantasia do buraco da fechadura do banheiro para dentro de sua
alma.
A mulher, na mesma posição, começou a
esfregar toda a protuberância no seu pequeno sexo, onde ele via, ou melhor, só
agora percebia escassos fiozinhos negros, querendo, mas, sem força, cobrir a
região pubiana. Achou engraçado, pois os pêlos da tia eram uma sufocosa
floresta plantada bem no meio das pernas. Tinham cheiro de Cassemir Bouquet, os
pêlos de sua tia.
Sem lhe dar trégua, ela foi pressionando
e o apertando de tal maneira, serpenteando, se achegando a seu sexo minguado,
mas duro, e, com muita facilidade, experiente, conseguiu enfiá-lo todo para
dentro, começando uma dança tão vigorosa e avassaladora, que ele, zonzo, quase
desmaiando, teve que se agarrar firmemente às ancas da mulher para não
despencar no chão.
Ela emitia roncos animalescos, babando-se
toda, falando frases obscenas, cortadas, desconexas, que caíam dentro de seu
ouvido e lhe afrouxavam ainda mais as pernas, a carne toda. Então sentiu uma
coisa quente escorrendo de seu órgão e invadindo aquele rabo enlouquecido,
aberto em flor, pulsando, pulsando feito uma rã esmagada na metade do corpo e a
outra metade lutando desesperada para sobreviver.
E não pode mais resistir: caiu
pesadamente, de joelhos na terra úmida, gelada, cansado, confuso, mas cheio de
uma alegria que desejava para sempre e que já sentia saudade de senti-la.
A mulher, simplesmente levantando-se,
fechou-se no roupão e, como se nada tivesse acontecido, apertou-lhe a bochecha
e disse-lhe que ia entrar e tomar um bom banho, ele que fosse também: afinal,
estava todo sujo!
O guri, iluminado pela hombridade recém
conquistada, ergueu do chão o besouro morto, colocando-o na palma da mão
levantada para o céu: milhares de lâminas de luz se cravaram no seu rosto
suado, vermelho, e o vento pareceu soprar de muito longe uma ária sagrada; então,
sentiu-se um deus, totalmente em paz consigo mesmo. Soprou suavemente sobre o
animalzinho, que começou a mover-se, desengonçadamente, mexendo as patinhas, o
corpo, por fim, batendo as asas, saiu num voo meio torto, voo de quem retorna à
vida depois de hibernar muito tempo na caverna da morte.
Calmamente, com elegância de caubói,
vestiu a Brim Coringa. Um dia, levaria flores para o túmulo de Alfredo. Mas
antes, tomaria um banho: estava todo sujo, irremediavelmente.
Conheci o Carlos na juventude, na Capori. Foi-me apresentado por Nelson Fachinelli, então presidente daquela instituição. Carlos Soares sempre soube, como ninguém, usar as palavras...
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