2 de mar. de 2016

CARLOS SOARES, POETA E ESCRITOR GAÚCHO: O VERBO SOLITÁRIO DE UM GRANDE DEMIURGO



Conheci o poeta e escritor Carlos Soares em meados dos anos oitenta. Eu já havia publicado aqui em Porto Alegre o livro de poesias Pelos Caminhos Pelos Cabelos, edição independente, e vindo do Maranhão, com passagens e residências provisórias em Brasília, Curitiba, Balneário Camboriú, procurava agora “uma pedra onde repousar a cabeça” (G.Dias ). Daí que, de repente, me vi entrosado com a turma do Nelson Fachinelli e sua famosa Casa do Poeta (cadê-la? ninguém sabe, ninguém viu?). Havia o Restaurante Dona Maria, na José Montauri e lá, uma vez por mês, realizavam-se saraus literários capitaneados pelo Quixote Fachinelli. Numa dessas reuniões conheci o Soares, e, até hoje, continuamos amigos, nos encontrando e falando e respirando poesia.
            Pois que o Carlos Soares é essencialmente poeta. E um dos melhores daqui deste solo gaúcho. Ter um estilo próprio é meio caminho andando para uma grande poesia. E isso ele tem (coisa difícil, num mundo repleto de imitadores, plagiadores, enganadores, em todas as áreas do conhecimento e da atividade humana).
            Claro que não está na mídia. Não está na mídia porque não frequenta patota. Não está na mídia porque nunca fez concessões ao fácil e ao cabotinismo. Não está na mídia porque manteve-se digno, íntegro, altivo, pensando e dizendo tudo o que é sua convicção mais profunda e vedadeira: “seu Dirceu Borboleta, essa humanidade naão presta” (Odorico Paraguassu, em O Bem Amado). Palavras que eu reforço e certamente o poeta Soares as diria também.
            É ele que brilha na coluna desta Quarta-feira é de RF, do blog Literatura Limite, com seu conto O Pequeno Demiurgo, uma história saborosa comum a todos os garotos que adolescem: a descoberta dos prazeres do sexo, o susto, o medo, as aflições que isso proporciona, e a inesquecível tia. Todos nós tivemos uma tia dessas por perto. Nas horas amargas para uns, e tão doces para outros. Vamos ler este grande demiurgo das letras rio-grandenses: o poeta e escritor CARLOS SOARES. Um mestre e um amigo. (RF)

Poeta Carlos Soares




O PEQUENO DEMIURGO
by Carlos Soares

       Jaz, entre pétalas secas, um besouro (que o vulgo chama de “cascudo”). Nesse dia arisco, meio chuvoso, um pequeno bule para lá e para cá, com a ponta de um graveto, o frágil encouraçado.
      Lâminas de luz, aqui e ali, vez em quando rasgam as nuvens e vêm lanhar o rosto pacífico da criança, de uns doze anos, miudinha, quase um outro besouro...
      É num fundo verde-escuro de um pátio antigo, com um muro médio, brilhoso pela gosma diária de uma tia (sem parentesco, emprestada) que sempre senta nele ou para tricotear com suas agulhas ou para costurar com sua língua afiada, ela e uma vizinha, a vida alheia, ou para ler algum romance ultrapassado – gosta dos de Vitor Hugo – cujo nome final faz questão de pronunciar “Hugô”.
      Dizem os maldosos que ela quando moça, costumava sentar-se naquele muro com as coxas estrategicamente semiabertas, tentando atrair a atenção de um rapaz vesgo que alugava quarto numa casa fronteiriça. Até que se casou com Alfredo, aleijado de uma perna e funcionário da Viação Férrea do Estado do Rio Grande do Sul.
      Podem ser mentiras tais boatos, talvez da boca de alguém rejeitado pela tia. Mas o guri, várias vezes flagrou num olhar dissimulado a calcinha dela, no descer e subir na goiabeira, quando apanhava frutas, no cruzar ou descruzar casual de pernas (o que fazia lentamente, como se o provocasse para alguma coisa que ainda não desconfiava o que fosse).
      Era uma mulher de ancas grandes, estatura média, sacudindo as fartas carnes num vestido leve, dançante, formando um ritmo sensual e bárbaro, além de possuir ostensivos seios, ficando sabendo por um velho da rua (“um desbocado!”, dizia sua mãe) serem as “mamicas”, termo esse que conhecia, mas aplicado às cadelas. A tia, pensava, teria mamicas de cadela?
      Enquanto escorraçava a morte inseta, veio-lhe aos olhos, subitamente, o naco inferior e moreno daquelas enormes nádegas, pelo furo da fechadura, quando ela se banhava no único cômodo da casa para esse fim, dividido em dois por uma porta velha de gonzos do “tempo do epa” (expressão, na época, usada por seu avô).
      Do outro lado, que era um quartinho de empregada, escuro, ele podia espiar, ainda que precariamente, a mulher, que demorava-se no banho, levando muito tempo ensaboando as partes íntimas, saboreando a ternura do sabonete, esfregando-o lentamente por todo o corpo. Fazia isso desde que perdera Alfredo, ainda moço, esquartejado por um trem na Via Férrea.
      Restaram do pobrezinho algumas fotos esmaecidas e uma gorda pensão. Botou luto. Cumpriu todo o ritual de boa viúva e esposa de respeito. Certamente, amava Alfredo (dizem os maldosos que não era só a perna que era aleijada...). As imagens do corpo triturado, pedaços de vísceras, molhos de sangue, arrancaram uivos lancinantes dela, debruçada sobre os cacos viscosos do cadáver, tentando recompor o marido com as bizarras peças de um quebra-cabeça para sempre quebrado.
      Tudo isso ele pode ver, embora, tais cenas, não fossem permitidas às crianças. Escondeu-se nuns matos próximos à Via Férrea, onde se deu o acidente, e viu homens estranhos, graves, de branco, recolhendo como quem cata azeitonas fugidias no prato, os estilhaços sanguinolentos do que duas horas atrás fora um ser humano, um homem.
     Não sabia como nem por que, mas aquele coleóptero insepulto lembrava-lhe Alfredo e partes íntimas de sua tia, ainda mal delineadas nas suas retinas. Havia misteriosa ligação entre esses fatos: uma energia secreta parecia uni-los para algum destino e isso o excitava, mesmo que não soubesse naquele tempo o que era excitação nem destino.
      Na banheira, a moça gemia profundamente ao toque do simples sabonete. Mas ele não conseguia pegar boas imagens, fosse pela penumbra do ambiente, fosse pela distância, ângulo difícil, medo, vergonha, tudo junto, dificultando-lhe o perfeito enquadramento das curvas da “tia gostosona!” (o mesmo velho desbocado da rua).
      Ali, agora, cutucando o besouro morto, começou a sentir o que nunca sentira antes: calor no órgão sexual. Não soube explicar o motivo, muito menos atinar com ele. Trêmulo, puxou-o para luz do dia e constatou, pasmado, que estava duro! Olhou para os lados, o rosto queimando, e não viu ninguém. Prosseguiu na análise dos fatos, verdadeira pesquisa científica no campo do erotismo infanto-juvenil, cujo objeto de estudo era a “piroca” (ainda o mesmo velho desbocado!) e o laboratório, seu corpo: adolescia sem saber.
      Continuou tocando-o, movimentando-o, entre o medo de ser pego e a vergonha do que fazia. Mas uma força incoercível impulsionava-o, sujeitava-o àquilo: eram, realmente, coisas novas que estavam nascendo, um prazer desconhecido, um segredo que dormia nele e que precisava, contra todas as circunstâncias, se revelar.
      Baixou as calças até os joelhos. Calças de Brim Coringa, resistentes, pouco maleáveis. Surprendeu-se: sentia-se completamente nu, embora semivestido, entregue ao mundo, isolado num imenso deserto, excitadamente só, com sua descoberta.
      O corpo tremia e febrava, suava frio – porém ninguém naquele momento poderia vê-lo: os pais haviam saído e os vizinhos mais próximos, pessoas de idade, faziam a sesta costumeira. E a tia, por onde andava? Ah, deitada no sofá lendo “Hugô”. Tranquilamente deixava-se apossar pela vontade nova, pela força que vinha do besouro morto, das nádegas enormes na sua retina, do cadáver do marido dela, da adolescência que chegava cedo e eficaz.
      Quando levou um grande susto. Na sua frente, como um fantasma, ela apareceu, os cabelos soltos, desgrenhados, rosto vincado do sofá, embrulhada num roupão fino e rosa, as pupilas dilatadas por um fogo que ele nunca vira antes e que caía e pousava exatamente no seu sexo desnudo e duro.
      Então percebeu a realidade de sua pequena nudez e a impotência de qualquer gesto e a inutilidade de qualquer palavra. Além do mais, a calça era de Brim Coringa, difícil de levantá-la com rapidez e certa elegância de “caubói”, como vira num filme “de faroeste”.
      Deixou-se ficar entre a vontade de sumir dali e o pavor que o congelava. Queria explicar-se, apesar de tudo, inventar uma mentira, mas, ao olhar o rosto da tia recém desperto da leitura, entendeu que ela sabia que tudo aquilo só tinha uma causa: ela.
      Soprava um vento úmido de chuva. A mulher foi se aproximando, lenta e decidida, deixando uma coxa escapar do roupão, grossa, firme, lustrosa. O guri petrificara-se. Ela aproximando-se mais e mais, cortando-lhe a saída, impedindo-lhe os movimentos, até peitá-lo com os seios inflados, redondos, de pérolas intumescidas e inquietas.
      Ambos mudos, já cúmplices, o guri querendo fugir e ficar, mais ficar do que fugir, como se vivessem, silenciosamente, o último momento de suas vidas num selvagem planeta.
      Até que a tia, não mais se contendo, rangendo os dentes enlouquecida abriu o roupão e trouxe violentamente sua boca imaculada para um dos mamilos incandescentes. Como se uma nebulosa lhe invadisse o palato, apertou instintivamente o figo escuro, arrancando dela um profundo “ai!”, e começou a roçar-lhe a língua atrevida, aprendiz, à força da intuição.
      A tia ganindo, arfando. O corpo todo sacudia, em espasmos lentos, a princípio, mas depois feito um trem de carga ameaçando descarrilar (o mesmo que matou Alfredo, talvez?).
      A seguir, pegou sua pequena mão que tremia e a pousou delicadamente no púbis de alto relevo, com tufos encaracolados, úmidos do líquido de fêmea em cio, de pé, colada ao pequeno, embriagada de prazer, quase arrebentando os frágeis ossos de uma adolescência aflorante.
      Então, num ronco pavoroso, sem nenhum aviso, virou-se bruscamente erguendo o roupão, expondo um traseiro enorme, quente, redondo, o primeiro e o mais belo que já vira em sua curta vida, que o deixou incendiado de uma vontade que não sabia materializar e que intuía, agora, diante daquele templo sagrado, que a tia, sacrílega, o obrigava a profanar, condenando-o à danação eterna, como lhe ensinara o padre na primeira comunhão.
      Porém, não se movia. Não podia se mover, tonteado pelo impacto daquelas volumosas nádegas, que durante muito tempo, flutuaram na sua fantasia do buraco da fechadura do banheiro para dentro de sua alma.
      A mulher, na mesma posição, começou a esfregar toda a protuberância no seu pequeno sexo, onde ele via, ou melhor, só agora percebia escassos fiozinhos negros, querendo, mas, sem força, cobrir a região pubiana. Achou engraçado, pois os pêlos da tia eram uma sufocosa floresta plantada bem no meio das pernas. Tinham cheiro de Cassemir Bouquet, os pêlos de sua tia.
      Sem lhe dar trégua, ela foi pressionando e o apertando de tal maneira, serpenteando, se achegando a seu sexo minguado, mas duro, e, com muita facilidade, experiente, conseguiu enfiá-lo todo para dentro, começando uma dança tão vigorosa e avassaladora, que ele, zonzo, quase desmaiando, teve que se agarrar firmemente às ancas da mulher para não despencar no chão.
      Ela emitia roncos animalescos, babando-se toda, falando frases obscenas, cortadas, desconexas, que caíam dentro de seu ouvido e lhe afrouxavam ainda mais as pernas, a carne toda. Então sentiu uma coisa quente escorrendo de seu órgão e invadindo aquele rabo enlouquecido, aberto em flor, pulsando, pulsando feito uma rã esmagada na metade do corpo e a outra metade lutando desesperada para sobreviver.
      E não pode mais resistir: caiu pesadamente, de joelhos na terra úmida, gelada, cansado, confuso, mas cheio de uma alegria que desejava para sempre e que já sentia saudade de senti-la.
      A mulher, simplesmente levantando-se, fechou-se no roupão e, como se nada tivesse acontecido, apertou-lhe a bochecha e disse-lhe que ia entrar e tomar um bom banho, ele que fosse também: afinal, estava todo sujo!
      O guri, iluminado pela hombridade recém conquistada, ergueu do chão o besouro morto, colocando-o na palma da mão levantada para o céu: milhares de lâminas de luz se cravaram no seu rosto suado, vermelho, e o vento pareceu soprar de muito longe uma ária sagrada; então, sentiu-se um deus, totalmente em paz consigo mesmo. Soprou suavemente sobre o animalzinho, que começou a mover-se, desengonçadamente, mexendo as patinhas, o corpo, por fim, batendo as asas, saiu num voo meio torto, voo de quem retorna à vida depois de hibernar muito tempo na caverna da morte.

      Calmamente, com elegância de caubói, vestiu a Brim Coringa. Um dia, levaria flores para o túmulo de Alfredo. Mas antes, tomaria um banho: estava todo sujo, irremediavelmente.  

Um comentário:

  1. Conheci o Carlos na juventude, na Capori. Foi-me apresentado por Nelson Fachinelli, então presidente daquela instituição. Carlos Soares sempre soube, como ninguém, usar as palavras...

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