2 de jun. de 2016

ALTAS HORAS NA PISTA DE SKATE

Bendita literatura. Ela nos permite fundar países, criar animais fantásticos, redimensionar a terra, tornando-a quadrada, redonda, oblíqua, perpendicular. Viajar para províncias geladas, ou consumirmo-nos num verão em Bagdá. E, sobretudo, afastar-nos dessa incontável soma de processos e inquéritos policiais e administrativos contra políticos. Deixar esse Brasil à deriva, mergulhado em crises que não terminam e concentrar-nos, junto com essa turma de pirralhos, em torno de uma pista de skate. Mas, se somos humanos, não há como fugirmos dos seus dramas sociais. 
– É nóis na fita, mano!
– É, mas fica esperto. Olha lá os homens...
O carro da polícia contornou lentamente a pracinha, quase parou, pegou uma rua à direita e seguiu sua ronda. Antes, os policiais conversaram entre si:
– E aí, vamos chegar na garotada  – falou um militar de cor clara, barba feita, bigodinho aparado, sentado no banco do carona.
O motorista da viatura, um gordo de cabelos negros e divisas de sargento, foi quem respondeu:
– Esses manés não estão com nada. Tão só fumando crack. Vamos pra vila.
A garotada eram os seis jovens que ali na praça se entupiam da droga. Neneca roubava a própria mãe. O Zé Carlos tinha saído da cadeia há dois meses. Ficara só quinze dias em cana, a polícia deu um flagrante nele traficando maconha.
Esse outro aqui tem o apelido de Sabiá. Fica andando de um lado para outro, sempre inquieto e angustiado. Nestes momentos, solta uma espécie de assovio, daí o apelido.
O Toupeira, coitado, estava se acabando. Foi expulso de casa pelo pai. O cara tinha roubado joias e dinheiro da avó e da mãe. Agora estava dormindo debaixo da marquise de uma escola do bairro. Durante o dia ele e o Mendigo batiam pernas pelas ruas. Catavam latinhas, plásticos, papelão, sucatas de todo tipo pra vender. Também iam às bocas de fumo da vila comprar maconha e crack pra si e para outros viciados com algum dinheiro.
Outro dia, Topeira e Mendigo estavam voltando da vila. Traziam uma buchinha de maconha, coisa de uns vinte reais, quando um carro da polícia entrou na viela em que se encontravam. Os dois se entreolharam amedrontados e olharam para o beco sem saída.
Os policiais eram quatro. Dois desceram do carro e, encontrando o bagulho com os babacas, obrigaram o Toupeira engolir o fumo, cobriram o Mendigo de porrada, e o coitado saiu de lá em companhia do Toupeira quase se arrastando, enquanto a viatura policial se foi cantando pneus.

Completava o grupo uma menina meio barra pesada, a Mari. Nem aparentava os quinze anos, sua idade verdadeira, parecia mais velha. Várias vezes entrou em locais só permitidos aos maiores de dezoito anos. O Zé Carlos, Toupeira, Mendigo, Sabiá, o Neneca e a Mari. Neneca, Zé Carlos, Sabiá, Mendigo, Toupeira e a Mari. Essa turma estava sempre junta e só aprontava.
Onze da noite de uma sexta-feira de setembro a pracinha está fervendo. Chovera bastante à tarde, e agora havia um friozinho gostoso inspirando aquela turma suficientemente inspirada de tanta ânsia e sofreguidão.
Rolava um fuminho, de leve. O mais era vodca com energético. E curtição, o maior sarro. Aquela patota de seis agora somava mais de trinta garotos e garotas. A maioria havia chegado na última meia hora. Skatistas com seus ditos cujos debaixo dos braços que se aproximavam e se atracavam em tudo o que estava rolando: fumo, álcool, garotas.
Quem chegava ia trazendo isso e mais aquilo. Até carne, salsichão e frango pintaram no pedaço. Do nada fizeram um fogo, como nossos ancestrais, e assaram um churrasco de responsa. Ficavam espalhados na pista de skate, nos bancos da praça, na grama do chão.
– Pô, Rafa, aquela mina era demais.
– Nem te conto. Deu o maior caô com o velho da Glori.
– É, a mina é uma princesa, cara.
– Só se for do funk.
Às vezes passava uma viatura da polícia, devagarinho, os milicos no carro só olhavam, também estavam curtindo a deles e seguiam em frente.
– Tu deixou apagar o bagulho, lóki? – isso era o Toupeira falando, com essa sua maldita mania de encerrar as frases sempre com um lóki interrogativo.
– Tu tá louco, mané? Os homens passando bem aí, tu queria o que? – quem respondeu foi o Sabiá, e assoviou enquanto falava.
– Ah, vão se catar.
– Não conversa, cara, tá aqui o fogo, acende logo essa ponta.
Zé Carlos acendeu uma ponta mixuruca, deu umas duas tragadas e passou em frente. O Mendigo segurou com as pontas dos dedos: era quase só brasa o que antes era um respeitado cigarro de maconha.
Alguém tinha ligado um som nas alturas. Umas bandas podres faziam um barulho de britadeira. Todo mundo bebendo, fumando, falando alto, uma doideira só.
Mais que chapado, o Mendigo aproveitou um skate emprestado e ficou fazendo firulas na pista. O Sabiá, esse sim, fazia manobras radicais. Todos ficaram admirando sua evolução na pista: ele tirou de letra um no grab e depois emendou um fakie to fakie 900 sensacional que fez a galera delirar e aplaudir.
– Que manero, mano!
– Uau!, essa foi demais.
– Arrasou, fiufiu!
Foi o que bastou para o Sabiá ganhar a Glori que, pra lá de bêbada, veio com uns meios soluços se grudando no cara.
– Bah!, Sabi, tu é fera mesmo...
– Puta que pariu, lá vem o Subvinte.
O Subvinte chegou sacolejando sua grade de ossos. Ninguém sabia como uma pessoa podia secar tanto em tão pouco tempo. Mas todo mundo sabia e comentava que aquilo só podia ser o efeito do crack. E o apelido pegou porque quando perguntaram sua idade foi assim que respondeu:
– Minha idade? Subvinte...
O Sub tinha vindo da Paraíba, mas estava na cara que ele tinha mais ou menos uns vinte e dois ou vinte e três anos de idade, e trabalhava numa obra como ajudante de pedreiro. Era um cara contente e satisfeito com seu skate de segunda mão debaixo do braço, mesmo arfando e sumindo era feliz, bebia e comia uma coxa de frango, assada pela moçada naquele fogo de chão improvisado numa pracinha com pista de skate que, a cada dia, bombava mais.
Tinha ali neguinho da Vila Jardim e do IAPI, do Passo da Areia e da Chácara das Pedras, era o pessoal da Zona Norte, da Baltazar e do Jardim Itu-Sabará...
Duas da matina e nenhum sossego à vista. A galera, ali na pracinha, continuava pintando e bordando. Uma verdadeira democracia de prazeres fugazes e de paixões passageiras, mas avassaladoras, da droga da moda nessas camadas de desvalidos.
Não tão longe de nossos bairros de classe média e alta a guerra do tráfico é como um rastilho de pólvora. A gente sente que vai tudo ser queimado. Não importa. O garotão matusca e bem vestido, que chega pilotando uma Hilux, novinha, doidão, fissurado, fala trêmulo:
– Deixa eu dar um peguinha...
– Aí ó, sem grana não tem fumo, malandro.
O pinta bate as mãos nos bolsos e arranca de lá uma nota de vinte mangos  que vai parar na mão do Toupeira e este lhe alcança o fumo para um baseado. Baseado não, um fino de cadeia.
– E agora sai fora, meu irmão, esse teu carro é muito bandeiroso – disse o Zé Carlos, dando um tapa na vodca com energético direto do gargalo. Naquela hora avançada ninguém se importava mais com copo nem com porra nenhuma.
– É, se os homens passam por aqui e vêem um carro desse vão pensar que a gente puxou a máquina – era o Mendigo falando com ares de sabedoria.
O Neneca quase não falava, mas agora também achou por bem se manifestar:
– Fecha essa matraca, Mendigo. Vai lá no mocó e vê se cata uma pedra ou um fumo lá pra gente.
– Que pedra, mano, já queimamos tudo...
Em seguida, na roda, passam uma guimba da erva queimando os dedos, cada um dá dois ou três pegas e já era. O nevoeiro da quase manhã silencia o lugar. Só restam garrafas quebradas, cinzas, tocos de cigarro, maços vazios, um ou dois escornados nos bancos da praça. 
Tipo o Mendigo. De manhã, aí por volta das nove horas, ele se dana a bater pernas pelas ruas do bairro, juntando tudo o que encontra pela frente e que possa ser transformado. Primeiro, em dinheiro. E depois em rango, e droga. Papelão, latinhas, garrafas pet, fios de cobre, arame, ferro. Comida do lixo, não. Ao Mendigo ainda lhe sobra um pouco, mas só um pouco mesmo, de dignidade humana.
Espera sair daquela vida. É instruído. Conversa sobre vários assuntos. Já poderia ter deixado aquela vida de cachorro vira-lata, ou nem teria entrado não fosse o vício da pedra maldita.
Por isso é bem aceito no grupo. Faz pequenos favores, corre ali, corre pra lá, vai nas bocas descolar um fuminho pra alguém, quase sempre em troca de um mísero baseado.
Passam das três da madrugada. Já tem nego capotado no banco da praça. Caiu cedo. A Glori se grudou no Sabiá e lá se foram sabe Deus pra onde.
Jovenzinho louro, com cara de bebê, sentava ali curtindo o som da Família Sarará no seu mp3. Garotas descoladas, magrinhas, ficavam com os olhos avermelhados com dois ou três pegas no mato santo. É. Uns chamam de erva maldita; outros, de mato santo.
E segue a madrugada. E rola o som. E desce a birita. E sobe a fumaça da maconha.
A Suzi tem vinte e dois anos e é a garota do Zé Carlos. Mora sozinha num quarto de pensão. Depois que seus pais se separaram, ficou em companhia da mãe até esta arranjar um novo parceiro. Ela não estava se dando bem com o padrasto e achou melhor procurar o seu rumo. Sua mãe chorou e esperneou para ela não fazer aquilo, não sair de casa.
– Mãe, não faz drama, pô. Eu só estou mudando de casa. Só isso. E, depois, mesmo morando aqui a gente quase não se vê e não se fala, que diferença faz?
– Está bem, Suzana, a casa é tua também e quando quiser voltar a porta está sempre aberta.
Suzana, chamada pelos colegas de Suzi, logo logo estaria sendo chamada de Su e, quem sabe, depois só de S. A juventude em breve não precisará mais de palavras para se comunicar. E para que se comunicar? Isto também não faz mais muito sentido. Até porque não se tem nada para falar, uma vez que quase nunca se cumpre o que se fala. Uma vida apenas virtual, e com ícones. E isso basta.
Quem fica pensando essas coisas é o coitado de um pé rapado que atende pela alcunha de Poeta e que, vira e mexe, se chega na pracinha e fica vendo e ouvindo aquela turma de jovens bagunceiros. Conversa com eles. Até dá uns tapas no bagulho, mas só de vez quando. E o Poeta fala:
– E aí, Su, tranquila? Você está aonde agora?
– Ah, Poeta, aluguei um quarto de pensão e estou me virando, trabalhando pra ser exata.
– É, a vida está dura...
– Só. Dura e foda.
O Subvinte apontou a rua com o queixo, dizendo:
– Ih!, sujou, olha a viatura, ela vem nessa.
Dito e feito. Um carro da polícia parou ali defronte a pista de skate e desceram quatro meganhas. Chegaram de boa, disseram que os moradores do condomínio de luxo estavam incomodados com a altura do som e a barulheira que a turma fazia.
Mas como não havia nem arma nem droga pesada com aquela molecada, exceto uns dois ou três baseados que foram confiscados, eles deram uma bronca de agá e mandaram os carinhas sair fora e também se foram.
O dia estava amanhecendo entre o nevoeiro, no pico das cinco da matina, o Zé Carlos falou, animado, levantando o astral da moçada, que havia caído um pouco com a presença da polícia:
– Pô!, galera, tem uma rave malucaça no Sítio do Jonas. Tá rolando desde ontem. Três dias de zoeira, só vai terminar amanhã, se não pintar sujeira.
No que ele terminou a frase, foi aquele auê. As garotas pulavam, rindo, se abraçavam, ficou todo mundo ouriçado de novo.
– Vamos lá!
– É isso aí...
– Tamo esperando o quê?
– Vai tá estouradaça essa rave!
Saíram todos a um só tempo no maior agito e falação. Uns de moto com as gatas na carona, outros de bike e alguns deslizando em seus skates no asfalto negro e o resto saiu a pé, de arrasto, como deu, e sumiram naquela névoa da manhã. E ainda era setembro.

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