Bendita
literatura. Ela nos permite fundar países, criar animais fantásticos, redimensionar
a terra, tornando-a quadrada, redonda, oblíqua, perpendicular. Viajar para
províncias geladas, ou consumirmo-nos num verão em Bagdá. E, sobretudo, afastar-nos
dessa incontável soma de processos e inquéritos policiais e administrativos
contra políticos. Deixar esse Brasil à deriva, mergulhado em crises que não
terminam e concentrar-nos, junto com essa turma de pirralhos, em torno de uma
pista de skate. Mas, se somos humanos, não há como fugirmos dos seus dramas sociais.
– É nóis na fita, mano!
– É, mas fica esperto. Olha
lá os homens...
O carro da polícia
contornou lentamente a pracinha, quase parou, pegou uma rua à direita e seguiu
sua ronda. Antes, os policiais conversaram entre si:
– E aí, vamos chegar na
garotada – falou um militar de cor
clara, barba feita, bigodinho aparado, sentado no banco do carona.
O motorista da viatura, um
gordo de cabelos negros e divisas de sargento, foi quem respondeu:
– Esses manés não estão com
nada. Tão só fumando crack. Vamos pra vila.
A garotada eram os seis
jovens que ali na praça se entupiam da droga. Neneca roubava a própria mãe. O
Zé Carlos tinha saído da cadeia há dois meses. Ficara só quinze dias em cana, a
polícia deu um flagrante nele traficando maconha.
Esse outro aqui tem o
apelido de Sabiá. Fica andando de um lado para outro, sempre inquieto e
angustiado. Nestes momentos, solta uma espécie de assovio, daí o apelido.
O Toupeira, coitado, estava
se acabando. Foi expulso de casa pelo pai. O cara tinha roubado joias e
dinheiro da avó e da mãe. Agora estava dormindo debaixo da marquise de uma
escola do bairro. Durante o dia ele e o Mendigo batiam pernas pelas ruas.
Catavam latinhas, plásticos, papelão, sucatas de todo tipo pra vender. Também iam
às bocas de fumo da vila comprar maconha e crack pra si e para outros viciados
com algum dinheiro.
Outro dia, Topeira e
Mendigo estavam voltando da vila. Traziam uma buchinha de maconha, coisa de uns
vinte reais, quando um carro da polícia entrou na viela em que se encontravam.
Os dois se entreolharam amedrontados e olharam para o beco sem saída.
Os policiais eram quatro.
Dois desceram do carro e, encontrando o bagulho com os babacas, obrigaram o
Toupeira engolir o fumo, cobriram o Mendigo de porrada, e o coitado saiu de lá
em companhia do Toupeira quase se arrastando, enquanto a viatura policial se
foi cantando pneus.
Completava o grupo uma
menina meio barra pesada, a Mari. Nem aparentava os quinze anos, sua idade
verdadeira, parecia mais velha. Várias vezes entrou em locais só permitidos aos
maiores de dezoito anos. O Zé Carlos, Toupeira, Mendigo, Sabiá, o Neneca e a
Mari. Neneca, Zé Carlos, Sabiá, Mendigo, Toupeira e a Mari. Essa turma estava
sempre junta e só aprontava.
Onze da noite de uma
sexta-feira de setembro a pracinha está fervendo. Chovera bastante à tarde, e
agora havia um friozinho gostoso inspirando aquela turma suficientemente
inspirada de tanta ânsia e sofreguidão.
Rolava um fuminho, de leve.
O mais era vodca com energético. E curtição, o maior sarro. Aquela patota de
seis agora somava mais de trinta garotos e garotas. A maioria havia chegado na
última meia hora. Skatistas com seus ditos cujos debaixo dos braços que se
aproximavam e se atracavam em tudo o que estava rolando: fumo, álcool, garotas.
Quem chegava ia trazendo
isso e mais aquilo. Até carne, salsichão e frango pintaram no pedaço. Do nada
fizeram um fogo, como nossos ancestrais, e assaram um churrasco de responsa.
Ficavam espalhados na pista de skate, nos bancos da praça, na grama do chão.
– Pô, Rafa, aquela mina era
demais.
– Nem te conto. Deu o maior
caô com o velho da Glori.
– É, a mina é uma princesa,
cara.
– Só se for do funk.
Às vezes passava uma
viatura da polícia, devagarinho, os milicos no carro só olhavam, também estavam
curtindo a deles e seguiam em frente.
– Tu deixou apagar o
bagulho, lóki? – isso era o Toupeira falando, com essa sua maldita mania de
encerrar as frases sempre com um lóki interrogativo.
– Tu tá louco, mané? Os
homens passando bem aí, tu queria o que? – quem respondeu foi o Sabiá, e
assoviou enquanto falava.
– Ah, vão se catar.
– Não conversa, cara, tá
aqui o fogo, acende logo essa ponta.
Zé Carlos acendeu uma ponta
mixuruca, deu umas duas tragadas e passou em frente. O Mendigo segurou com as
pontas dos dedos: era quase só brasa o que antes era um respeitado cigarro de
maconha.
Alguém tinha ligado um som
nas alturas. Umas bandas podres faziam um barulho de britadeira. Todo mundo
bebendo, fumando, falando alto, uma doideira só.
Mais que chapado, o Mendigo
aproveitou um skate emprestado e ficou fazendo firulas na pista. O Sabiá, esse
sim, fazia manobras radicais. Todos ficaram admirando sua evolução na pista:
ele tirou de letra um no grab e
depois emendou um fakie to fakie 900
sensacional que fez a galera delirar e aplaudir.
– Que manero, mano!
– Uau!, essa foi demais.
– Arrasou, fiufiu!
Foi o que bastou para o
Sabiá ganhar a Glori que, pra lá de bêbada, veio com uns meios soluços se
grudando no cara.
– Bah!, Sabi, tu é fera
mesmo...
– Puta que pariu, lá vem o
Subvinte.
O Subvinte chegou
sacolejando sua grade de ossos. Ninguém sabia como uma pessoa podia secar tanto
em tão pouco tempo. Mas todo mundo sabia e comentava que aquilo só podia ser o
efeito do crack. E o apelido pegou porque quando perguntaram sua idade foi
assim que respondeu:
– Minha idade? Subvinte...
O Sub tinha vindo da
Paraíba, mas estava na cara que ele tinha mais ou menos uns vinte e dois ou
vinte e três anos de idade, e trabalhava numa obra como ajudante de pedreiro.
Era um cara contente e satisfeito com seu skate de segunda mão debaixo do
braço, mesmo arfando e sumindo era feliz, bebia e comia uma coxa de frango,
assada pela moçada naquele fogo de chão improvisado numa pracinha com pista de
skate que, a cada dia, bombava mais.
Tinha ali neguinho da Vila
Jardim e do IAPI, do Passo da Areia e da Chácara das Pedras, era o pessoal da
Zona Norte, da Baltazar e do Jardim Itu-Sabará...
Duas da matina e nenhum
sossego à vista. A galera, ali na pracinha, continuava pintando e bordando. Uma
verdadeira democracia de prazeres fugazes e de paixões passageiras, mas
avassaladoras, da droga da moda nessas camadas de desvalidos.
Não tão longe de nossos
bairros de classe média e alta a guerra do tráfico é como um rastilho de
pólvora. A gente sente que vai tudo ser queimado. Não importa. O garotão
matusca e bem vestido, que chega pilotando uma Hilux, novinha, doidão,
fissurado, fala trêmulo:
– Deixa eu dar um
peguinha...
– Aí ó, sem grana não tem
fumo, malandro.
O pinta bate as mãos nos
bolsos e arranca de lá uma nota de vinte mangos
que vai parar na mão do Toupeira e este lhe alcança o fumo para um
baseado. Baseado não, um fino de cadeia.
– E agora sai fora, meu
irmão, esse teu carro é muito bandeiroso – disse o Zé Carlos, dando um tapa na
vodca com energético direto do gargalo. Naquela hora avançada ninguém se
importava mais com copo nem com porra nenhuma.
– É, se os homens passam
por aqui e vêem um carro desse vão pensar que a gente puxou a máquina – era o
Mendigo falando com ares de sabedoria.
O Neneca quase não falava,
mas agora também achou por bem se manifestar:
– Fecha essa matraca,
Mendigo. Vai lá no mocó e vê se cata uma pedra ou um fumo lá pra gente.
– Que pedra, mano, já
queimamos tudo...
Em seguida, na roda, passam
uma guimba da erva queimando os dedos, cada um dá dois ou três pegas e já era.
O nevoeiro da quase manhã silencia o lugar. Só restam garrafas quebradas,
cinzas, tocos de cigarro, maços vazios, um ou dois escornados nos bancos da
praça.
Tipo o Mendigo. De manhã, aí
por volta das nove horas, ele se dana a bater pernas pelas ruas do bairro,
juntando tudo o que encontra pela frente e que possa ser transformado.
Primeiro, em dinheiro. E depois em rango, e droga. Papelão, latinhas, garrafas
pet, fios de cobre, arame, ferro. Comida do lixo, não. Ao Mendigo ainda lhe
sobra um pouco, mas só um pouco mesmo, de dignidade humana.
Espera sair daquela vida. É
instruído. Conversa sobre vários assuntos. Já poderia ter deixado aquela vida
de cachorro vira-lata, ou nem teria entrado não fosse o vício da pedra maldita.
Por isso é bem aceito no
grupo. Faz pequenos favores, corre ali, corre pra lá, vai nas bocas descolar um
fuminho pra alguém, quase sempre em troca de um mísero baseado.
Passam das três da
madrugada. Já tem nego capotado no banco da praça. Caiu cedo. A Glori se grudou
no Sabiá e lá se foram sabe Deus pra onde.
Jovenzinho louro, com cara
de bebê, sentava ali curtindo o som da Família Sarará no seu mp3. Garotas
descoladas, magrinhas, ficavam com os olhos avermelhados com dois ou três pegas
no mato santo. É. Uns chamam de erva maldita; outros, de mato santo.
E segue a madrugada. E rola
o som. E desce a birita. E sobe a fumaça da maconha.
A Suzi tem vinte e dois
anos e é a garota do Zé Carlos. Mora sozinha num quarto de pensão. Depois que
seus pais se separaram, ficou em companhia da mãe até esta arranjar um novo
parceiro. Ela não estava se dando bem com o padrasto e achou melhor procurar o
seu rumo. Sua mãe chorou e esperneou para ela não fazer aquilo, não sair de
casa.
– Mãe, não faz drama, pô.
Eu só estou mudando de casa. Só isso. E, depois, mesmo morando aqui a gente
quase não se vê e não se fala, que diferença faz?
– Está bem, Suzana, a casa
é tua também e quando quiser voltar a porta está sempre aberta.
Suzana, chamada pelos
colegas de Suzi, logo logo estaria sendo chamada de Su e, quem sabe, depois só
de S. A juventude em breve não precisará mais de palavras para se comunicar. E
para que se comunicar? Isto também não faz mais muito sentido. Até porque não
se tem nada para falar, uma vez que quase nunca se cumpre o que se fala. Uma
vida apenas virtual, e com ícones. E isso basta.
Quem fica pensando essas
coisas é o coitado de um pé rapado que atende pela alcunha de Poeta e que, vira
e mexe, se chega na pracinha e fica vendo e ouvindo aquela turma de jovens
bagunceiros. Conversa com eles. Até dá uns tapas no bagulho, mas só de vez
quando. E o Poeta fala:
– E aí, Su, tranquila? Você
está aonde agora?
– Ah, Poeta, aluguei um
quarto de pensão e estou me virando, trabalhando pra ser exata.
– É, a vida está dura...
– Só. Dura e foda.
O Subvinte apontou a rua
com o queixo, dizendo:
– Ih!, sujou, olha a
viatura, ela vem nessa.
Dito e feito. Um carro da
polícia parou ali defronte a pista de skate e desceram quatro meganhas. Chegaram
de boa, disseram que os moradores do condomínio de luxo estavam incomodados com
a altura do som e a barulheira que a turma fazia.
Mas como não havia nem arma
nem droga pesada com aquela molecada, exceto uns dois ou três baseados que
foram confiscados, eles deram uma bronca de agá e mandaram os carinhas sair
fora e também se foram.
O dia estava amanhecendo
entre o nevoeiro, no pico das cinco da matina, o Zé Carlos falou, animado,
levantando o astral da moçada, que havia caído um pouco com a presença da polícia:
– Pô!, galera, tem uma rave
malucaça no Sítio do Jonas. Tá rolando desde ontem. Três dias de zoeira, só vai
terminar amanhã, se não pintar sujeira.
No que ele terminou a
frase, foi aquele auê. As garotas pulavam, rindo, se abraçavam, ficou todo mundo
ouriçado de novo.
– Vamos lá!
– É isso aí...
– Tamo esperando o quê?
– Vai tá estouradaça essa
rave!
Saíram todos a um só tempo
no maior agito e falação. Uns de moto com as gatas na carona, outros de bike e
alguns deslizando em seus skates no asfalto negro e o resto saiu a pé, de
arrasto, como deu, e sumiram naquela névoa da manhã. E ainda era setembro.
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