16 de jun. de 2016

CAIXA DE SONETOS


            Nesta  Quarta-feira é dia de RF, tradicional coluna deste Blog vamos de soneto. Esta forma poética, segundo o que se sabe, apareceu aí por volta do Século XII, na Sicília, região da Itália, famosa também pela Cosa Nostra. Máfia e Soneto é uma mistura pra lá de explosiva. Uma, a Máfia, explode a vida e a outra, o Soneto, explode apenas o coração. O que vem a dar no mesmo.
            Forma poética fixa, 14 versos, de dez sílabas cada, e que eram distribuídos em 4 estrofes. As duas primeiras de 4 versos cada, formando os quartetos e as duas últimas de 3 versos cada, os tercetos.  Quem aperfeiçoou e o difundiu por toda a Europa foi o poeta italiano Petraca, com seu livro Il Canzoniere, composto de 317 sonetos e que exerceu enorme influência sobre toda a literatura ocidental.
            Há quem afirme, porém, que o soneto metrificado teria aparecido por volta do ano 630 a.C., pelas mãos da poetisa grega Safo (a famosa da ilha de Lesbos, patrona da sapataria ilimitada que se difunde hoje na nossa sociedade pra lá de avançadinha. Epa, não sou lesbofóbico, bravas feministas do grelo duro!).
            Não importa. Sofreu modificações. Alteraram-se os números de sílabas, mandou-se muitas vezes a métrica e a rima pra escanteio e seguindo este “barco ébrio” a la Rimbaud, também estou cometendo uns pobres sonetos ou dando minhas cacetadas (Didi Mocó fez escola) na poesia.
            Apresento-lhes, assim, 7 sonetos de um livro ainda inédito composto só de sonetos e que chamei justamente como no título desta coluna, lá em cima, Caixa de Sonetos.  Modestos e envergonhados sonetos, é vero.


1


De noite a vida tarda e o coração,
esse porão de angústias e silêncios,
não teme mais a dona sem mistérios
que me leva pela mão ao grande abismo.

Que bom!,  estou aqui, e ainda hoje
pressinto as sutilezas deste dia
em que herdarei o fruto cobiçado
da grande deusa, mãe das alegrias.

És, então, o pequeno grão de areia
que, na terra, entregue ao abandono
de si mesmo, rastejou feito cobra

pelas ilhas desertas e o mar bravio,
e agora chora o porto já perdido:
de onde se afastou sem haver ido.

2


Um vulto apaga a sombra que deixaste
mover-se ao sol, na tarde cristalina.
Teus olhos são dois rios; corredeiras
que lavam tuas lágrimas na neblina.

O resto é pose, curva do caminho
em que te perdeste rumo ao norte,
sem saberes que a estrada é sinuosa
e tanto leva pra vida ou para a morte.

Assim caminharás, a fronte erguida,
passos trôpegos, e  ombros curvados
sob o peso do fardo que é tua sina.

Nem vulto ou sombra que ao sol se mova
na tarde de areias  movediças:
apenas uma ausência que caminha.

3


Ah, que a tarde vai alta e o dia vem
com seus medos, anseios e desejos
pra nos fazer sofrer e é só loucura
o que se sente nestas horas mudas.

Que venha logo a noite e o seu escuro
é só o que desejamos nestas horas:
um véu que nos esconda deste mundo
até que esta tristeza vá embora.

Não me falta amor e nem dinheiro;
não estou nem doente, nem sozinho.
Essa angústia é sem nome, prenuncia

tempestades ou morte, ou nem isso,
falta apenas o cantar de um passarinho
que anuncie o raiar de mais um dia.

4


No barco de Caronte em mar bravio
fui ter depois à praia ensolarada,
igual a estar fugindo do inferno
até o Brasil, a pátria desejada.

Mas tudo era confuso entre a neblina:
anjos da treva barravam meu caminho
pra que eu não visse mais a luz divina.
Luz sagrada pra quê, neste país de otários?

De pilantras, vagabundos e falsários?
Governantes cruéis ferrando o povo,
como se o próprio povo fosse o gado

abatido e vendido aí aos montes.
Malditos usurpadores do poder!,
eles, e não eu, na barca de Caronte.

5


Chovia no meu céu, e só chovia
a tarde inteira em mim ao desabrigo.
Luzes da ribalta, na urbe entorpecida
e vendilhões do templo nas calçadas.

Veio da Itália o verso de Petrarca,
da Grécia antiga o pensamento puro
e nós, aqui, numa pátria de nada
sem futuro, sem glória, sem la plata.

Privados do orgulho de ser gente,
sem um Moisés que nos guie na jornada,
para fora dos círculos infernais

de dor e fúria, fome e tirania.
Assim é nossa vida, assim é a tarde
nesta pátria de infames e covardes.

6


Onde eu estiver por certo ouvirei
um aviso no canto de alguns pássaros.
Tudo passou e a vida também passa
qual alquimia de algum feiticeiro

que transforma o ouro em prataria,
e a prata em ouro, e o cego passa a ver
aquilo que aqui antes não havia.
As mãos em concha sobre o peito aberto

ao vento e à solidão, ao amor e tudo
traz de novo o sofrimento  de viver
ansiando outra vida mais completa

que esta, debulhada como milho,
sem paz e sem futuro e nenhum brilho,
só  relva e sono na manhã quieta.

7

Ouro e prata ficarão na memória do poema.
São Luís e Ítaca,  que já  foram, não são mais.
Ali bem perto ou longe, beira-mar a dentro,
a vida é pura solidão de espuma e sais.

As caravelas de pedra, e todos os guerreiros
noturnos, cantos de espadas e infindos ais
dormem aqui, onde outrora, luso-brasileiros
se lançavam a este mar por onde agora vais.

Esquinas, navios, barcas de pão e peixes,
lonas cobrindo o escambo e tudo isto
que o sol revela e expõe no dia pleno.

Os marujos cochilam. Ébria, la nave cega vai
no turbilhão de ondas rumo ao naufrágio:
Ítaca, sou teu rei!, coberto de andrajos.


Raimundo Fontenele

Um comentário:

  1. Só os grandes poetas se aventuram na proeza de criar versos na forma de sonetos. Parabéns poeta belíssimos sonetos.

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