22 de jul. de 2016

DE CARA SUJA

          Estamos aqui, de novo, Com a coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF, neste nosso Blog LITERATURA LIMITE, que graças aos amigos leitores está indo de vento em popa, Vamos pras cabeças. Fiquem de olho. Depois de DE CARA SUJA, vem aí CRÔNICAS DO PUCUMÃ, histórias e casos passados na cidade e no município de São Domingos do Maranhão, a partir de sua emancipação nos anos 50. Aguardem!!!


Capítulo 5

(Resumo: Em companhia de Neguinho Robert, ZL e Beto Reis, Carlos se mete num táxi e Robert passa a narrar como arranjou tanto dinheiro que eles iam torrando com drogas e bebidas e sabe-se lá mais o quê)

– É, cara. Só tem peixe. Peixe e coco da praia, não dá pra ti. Teu caso não se dar bem com filha de fazendeiro? – disse ZL, em mais uma de suas brincadeiras tão sem graça.
– E aí, Robert? Conta o resto, cara, conta logo... – Beto Reis estava impaciente, agora.
– Peguei minha garrafa de cerveja e fui até a mesa do “jacu”. Pedi licença, ele não só consentiu que eu sentasse na sua mesa, como ficou todo faceiro. Afinal de contas, eu era um cara da cidade grande, da capital, sentado ali de igual pra igual com ele, um coitado do interior, como o pobre infeliz devia achar diante de mim – Neguinho Robert se dirigiu ao taxista, que parecia sem saber que itinerário seguir: – Segue para a Ponta d`Areia, meu chapa. Vamos comer um peixe frito com limão, ma praia, que é o máximo.
E a gente ficou todo mundo com a boca cheia dágua, esperando por aquele bendito peixe frito! Robert continuou falando:
– Quando eu disse que era sobrinho do Governador e morava com ele no Palácio do Leões, o desgraçado não só acreditou como queria porque queria beijar minha mão ali mesmo na mesa do bar. Tentou se ajoelhar aos meus pés, apesar de se dizer o cara mais rico de Cedral, dono de não sei quantos barcos pesqueiros e terra que não acabava mais. Pedi mais uma cerveja e quando ele se descuidou coloquei uns comprimidos de Valium no copo do Zé-da-Pesca, como ele fazia questão de ser chamado, pois foi com a pesca que tinha ficado rico. Disse que seu nome era José Gonçalves Oliveira, mas não se importava e até preferia ser chamado pelo apelido.
– É, esse negócio de nome é coisa complicada. O Brequista também não gostava do nome dele – meio tímido, arrisquei abrir a boca, o que quase nunca fazia.
– Cala a boca, Carlos, deixa o Brequista pra lá. Dá até azar ficar falando em quem está numa pior. Sabe como é, cara, desgraça atrai desgraça. Deixa o Robert falar – ZL e sua matraca não davam moleza pra ninguém.
– Antes que o Valium começasse a fazer efeito e o Zé-da-Pesca capotasse ali na mesa, paguei a conta e convidei o idiota pra ir até minha casa. O cara saiu cambaleando, amparado por mim, todo satisfeito da vida, pois estava certo de que ia apertar a mão do Governador. Peguei um táxi, sentei com ele no banco traseiro, e fui depenando o pato, enquanto ele ferrava no sono. A carteira recheada de dinheiro, relógio, cordão de ouro, tudo mudou de dono numa fração de segundos. O motorista do táxi nem notou nada.
Neguinho Robert acendeu um cigarro, deu uma tragada e continuou:
– Quando chegamos na Avenida Magalhães de Almeida, pedi parada. Desci e expliquei que aquele ali era um tio que morava no interior e que bebera além da conta, caindo no sono. Dei um endereço fictício, inventado na hora, no Bairro do João Paulo, pedindo que o motorista levasse meu tio até lá. O motorista, antes de zarpar, ainda perguntou “E a conta”, ao que respondi no ato “Quando chegar lá o tio paga”.
A essa altura nosso táxi estava chegando na Ponta d´Areia e Neguinho Robert mandou que o taxista parasse num restaurante que tinha o curioso e exótico nome de “Peixe Sem Nariz”.
Saltamos do táxi, Neguinho Robert pagou a corrida, e sentamos bebendo cerveja à espera do peixe frito.
– E aí, Robert, quanto foi a grana que você conseguiu do tal Zé-Pescado? – ZL queria mais detalhes.
– Zé-da-Pesca, ô mané, e por acaso tu é da Receita Federal? – era o Beto rosnando.
– Fica na tua, Beto, e vê se não enche, tá?
Neguinho Robert teve de acalmar Beto e ZL que discutiam sem nenhum motivo. Bastava o efeito das drogas ir passando para a gente ficar tenso, nervoso, discutindo e, às vezes, até sair na porrada.
De repente, tudo ficou em paz. O garçom estava trazendo o peixe numa travessa de porcelana, serviço de primeira. Aquele era um restaurante, no mínimo, três estrelas. Passava das duas da tarde e a chuva se fora. O céu, porém, era chumbo. A chuva ia voltar, com certeza.
– E a grana, Robert, quanto foi? V ZL voltou à carga.
– Contar dinheiro pra quê, rapaz? O meu negócio é gastar até acabar. Nem quero saber quanto é. Olha aqui – e Neguinho Robert est5endeu a mão direita, mostrando um maço enorme de dinheiro, só de cédulas graúdas.
Os olhos de ZL brilharam rápidos e instantâneos, iguais ao Cometa Haley. Nenhum de nós ali, com exceção do Robert, tinha chegado perto de tanta grana. Era justo que aquele dinheiro gerasse em nós alguma emoção mais forte e violenta.
Estávamos naquele sábado sem um centavo, abrigados da chuva nas escadarias da Biblioteca e, de repente, pimba!, caiu um otário do céu por descuido e logo bem nas nossas cabeças. Era justo, era honesto, era verdadeiro o que Robert fizera? Isso a gente não queria saber. O que nos importava era a ilusão da coisa fácil e o sabor daquela tainha assada na brasa.
 Agora estávamos posando de milionários no “Peixe sem Nariz”, um dos restaurantes mais chiques e caros da cidade. Durante dois ou três dias a gente ia chacoalhar de táxi para cima e para baixo. Bebida, drogas, muçheres, comida, o que a gente quisesse ia ter com toda a facilidade que o dinheiro permite.
Quando o dinheiro acabasse e passasse o efeito maluco dos muitos coquetéis de drogas que a gente tivesse tomado, Cai-se no poço profundo da depressão total. Voltava-se ao fuminho nosso de cada dia, nosso tediozinho diário e à nossa monumental preguiça. À nossa incapacidade de fazer outra coisa que não fosse arrastar-nos da Praça Deodoro para a Gonçalves Dias e vice-versa.
Dei uma desculpa esfarrapada qualquer e deixei-os ali mesmo na praia. Eles iam virar a tarde e a noite bebendo e se picando e eu não estava a fim disso. Caminhei até a parada de ônibus aspirando aquele cheiro bom de maresia. Como dizem, amanhã é outro dia.
Mas, Neguinho Robert está mortinho da silva e essa foi a única vez em que estive em uma farra com ele. Era um cara alegre, brincalhão, mesmo que a gente soubesse que tudo aquilo era um disfarce para esconder sua verdadeira natureza. Robert era um revoltado por causa de sua condição de filho bastardo. Não só por isso, mas sobretudo porque nunca teve amor ou afeto. E esses são sentimentos que quando faltam, faltam para sempre.
Não sei se foi coincidência, ou se mãe tem mesmo uma espécie de premonição e é adivinha. O certo é que por aqueles dias que eu estava quase a ponto de fazer minha estreia nas drogas pesadas, recebi uma carta da minha mãe.
Uma carta comum, igual às outras que ela mandava uma vez por mês. As mesmas apreensões, os mesmos cuidados, os mesmos conselhos. Só que nesta última veio uma folhinha daquelas que se arrancava dos antigos calendários anuais, com dia mês e ano, e um pensamento. No caso, um pensamento de Vitor Hugo: “A virtude tem um véu, o vício tem uma máscara”. Não sei ela sabia que eu estava metido com drogas, acredito que não, mas foi uma forma original de manifestar-se, premonitoriamente.
A sentença me atingiu como um raio. Foi um verdadeiro soco no estômago. Senti que estava entrando por um caminho quase sempre sem volta. Brequista e Robert não eram provas mais que suficientes?
O ano estava no fim e eu estava reprovado mais uma vez. O pior era no emprego, onde eu quase não aparecia. Falta em cima de falta. Já fora suspenso duas vezes e não contava mais as em que havia sido advertido verbalmente pelo mesmo motivo.
O que me salvava a pele é que o deputado Ulis Aroch tinha interesse nos votos da região em que vivia minha família, que era numerosa. E, assim, enquanto o deputado fosse sendo bem votado na cidade em que meus pais viviam, meu empreguinho estava sendo garantido.
Por isso, podia faltar à vontade, desde que estas faltas não ultrapassassem o número de trinta, quando seria considerado abandono de emprego.
Mas, pensando bem, não posso ser injusto com este deputado e atribuir-lhe, no caso de minhas faltas, mero interesse eleitoreiro. Ele tinha amizade e afeto por mim, de forma verdadeira, o que eu viria a comprovar muitos anos depois destes acontecimentos que agora descrevo.
Na pensão de tia Júlia eu era um verdadeiro hóspede-fantasma. Saía cedinho e retornava por volta da meia-noite. Eu podia ir no fogão e servir-me, caso estivesse com fome, pois sempre deixavam as refeições para mim.
Sábados e domingos eu sumia. Dormia na casa de colegas. Ou então passava a noite nas festas e amanhecia na praia. Ou dormindo num banco de praça. Uma vida desregrada, sem nenhum controle, nada de disciplina. Uma liberdade dessas é perigosa, porque acaba se voltando contra a gente. E nos prendendo em suas malhas de chumbo, que nos arrastam para o fundo.
E foi o que aconteceu. A primeira picada a gente nunca esquece.

(NA PRÓXIMA SEMANA, O NARRADOR CARLOS SUCUMBE ÀS DROGAS PESADAS, ADOECE, E VAI SE CURAR  NA CASA DOS PAIS, NO INTERIOR, DISPOSTO A LARGAR PRA SEMPRE AQUELA VIDA)


Raimundo Fontenele

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