8 de jul. de 2016

DE CARA SUJA

AVISO: ALÔ, AMIGOS! PROBLEMAS TÉCNICOS NO BLOG ATRASARAM ESTA POSTAGEM EM 2 DIAS. MAS PARA UM PAÍS QUE ESTÁ, NO MÍNIMO, 100 ANOS ATRASADO ISSO É NADA. HE HE HE

Você continua acompanhando, todas as quartas feiras, os acontecimentos que envolvem uma turma de jovens e amigos, na São Luís do Maranhão nos anos setenta, entregues ao vício das drogas e as consequências que vão afetando cada um, de forma diferente, é certo, mas que  no fundo também possuem alguma semelhança: o vazio sem perspectivas que aquela vida lhes proporcionava, tudo isso saído das páginas do livro de nossa autoria De Cara Suja, da editora paulista DCL- Difusão Cultural do Livro.
            Não deixe de ler a coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF aqui neste Blog LITERATURA LIMITE, uma ponte entre a babaquice e a sabedoria. Inté.
Capítulo 3
(Resumo: Louro troca relógio da mãe por drogas, e a turma segue pra Santa Bárbara procurar cogumelos no pasto, doideira das brabas)

– Ih, Louro, olha lá tua mãe. Se manda, bicho.
– Sujeira... – Louro falou baixinho e apressou o passo ao encontro de dona Zélia.
Sumiram os dois numa curva da Rua Rio Branco, ela gesticulando com os dois braços, Louro de cabeça baixa, olhando para os lados, um cacoete seu, quando estava numa situação difícil. Quando estava mentindo, por exemplo.
Depois a gente ficou sabendo que o Brequista  não tinha voltado para casa naquele dia, como o Zé Carlos galhofara, nem voltou nos dias seguintes, nem nos meses seguintes, nem nos anos seguintes... o Brequista ficou lá, preso entre paredes de clínicas e hospitais. Mas, sobretudo, preso nas grades da sua loucura. E tudo por causa de um punhado de drogas...
Pô, logo o Brequista, um cara alegre. Onde ele estava a alegria chegava e ficava, não saía por nada desse mundo. Do verdadeiro nome, Melchíades, ele não gostava nem um pouco. Achava mais legal seu apelido.
Acontece que ele era um pouco gago. Não o gago tipo padrão. Não. A gagueira dele era de outra natureza. Imaginem um samba-de-breque, que é um samba que se canta fazendo umas paradas estratégicas. O cantor carioca Moreira da Silva é um dos bambas nesse tipo de samba. De breque veio Brequista, porque ele falava como se imitasse o cantor de um desses sambas.
– Ttcchhau, Brequista, é só o que posso dizer. Fazer o quê, né? – foi o que eu falei, baixinho, muito mais para dentro de mim mesmo.
Embora isso em nada altere a história – que hoje, afora atualizações, seria rigorosamente igual ­–, insisto em dizer que tudo se passou no final dos anos 60 e começo dos 70. Pelo menos preservo assim esta viagem ao tempo, lamentavelmente sem surpresas.
Naquele domingo em que o Brequista pirou, voltei para casa um tanto deprimido. Disposto a não fumar mais maconha de jeito nenhum. Jurava em voz alta, para mim mesmo, como no poema do corvo de Edgar Allan Poe, “nunca mais, nunca mais, nunca mais!”.
Eu rinha dezessete anos e morava na Rua Jacinto Maia, na casa da tia Júlia, viúva e com cinco filhos para sustentar. O marido dela, tio Onofre, qualquer horas dessas ia empacotar. Vivia numa cadeira de rodas, consequência de um derrame, dois anos antes. Quer dizer, viúva de marido vivo.
Para que ele vivia naquela cadeira de rodas, eu nunca entendi direito. Tinha ficado paralítico de uma forma tal, que o único movimento mais constante que fazia era limpar com o dorso da mão esquerda, o braço todo torto, a baba que lhe escorria permanentemente queixo abaixo.
E nenhum dos filhos, nem nós outros, parentes e hóspedes, íamos dar uma mãozinha para tio Onofre. E ele ficava lá, jogado num canto, ou em qualquer outro lugar, quarto, corredor, cozinha, esquecido, largado sozinho sobre aquelas rodas quase totalmente inúteis.
Tia Júlia teve de fazer da casa uma pensão para moças e rapazes. Somente pessoas conhecidas, estudantes todas elas. Para poder segurar a barra, pois o marido ficara inválido e com uma aposentadoria que não passava de titica de galinha.
Fazia uns dois anos que eu vivia ali. E há mais de um ano tinha experimentado maconha pela primeira vez.
Lembro tintim por tintim como a coisa aconteceu.
Um cara chamado Hélio, com que eu tinha ido ao Estádio Municipal Nhôzinho Santos assistir um daqueles sensacionais Moto Clube X Sampaio Corrêa. O futebol nessa região é modesto. Nem se compara com o futebol milionário dos craques do centro-sul do país. Mas o fanatismo das torcidas é o mesmo. A algazarra e a festa, as mesmas.  Os mesmos gritos de “juiz ladrão”, “filho de uma p. que te...” É o grande clássico maranhense. O nosso Fla-Flu, o nosso Grenal, o nosso Corinthias X Palmeiras.
Tanto eu quanto o Hélio éramos motenses. E o Moto tinha feito 3 X 1 n equipe boliviana, como é chamado o Sampaio Corrêa F. C. Suas cores são as cores da bandeira da Bolívia.
Terminado o jogo, o Hélio me convidou para tomar uma cerveja,
Uma, duas, lá pela terceira cerveja, o cara chama a minha atenção, me manda olhar para baixo da mesa. Olho e vejo em sua mão uns galhos. Sei que é planta, mas não tenho a menor idéia de que planta seja.
E ele:
– Sabe o que é isso?
Depois que ele perguntou, alguma voz interior me fez sinal de perigo, mas já com alguns copos de cerveja na cabeça, o raciocínio não é mais o mesmo.
– O que é? – perguntei com alguma ansiedade.
– É maconha, rapaz. Você vai ver como é bom. Vamos lá na Praça Gonçalves Dias. Vamos... – o Hélio foi falando e levantando-se, nem deu tempo para que eu argumentasse.
– Mas não é perigoso, a gente não enlouquece? – ainda tentei falar, mas ele me interrompeu:
– Que nada, cara. Você me acha louco? – perguntou, enquanto entrávamos no táxi.
Falei que não achava e era verdade. Pelo contrário. Até admirava o cara. Ele era bem mais velho do que eu, e lecionava Matemática em colégios de primeiro e segundo graus.
O táxi parou, a pedido de Hélio, na Praça Deodoro. Saltamos, no justo momento em que começava a cair uma chuvinha de nada, mas refrescante. Domingo, sete e meia da noite, a praça estava quase deserta. Uns dois ou três casais de namorados, algum ou outro bebum andando em ziguezague, um cãozinho perdendo-se na noite.
Subimos as escadarias da Biblioteca Pública Estadual Benedito Leite e nos metemos por entre as colunas de mármore que enfeitavam a sua fachada frontal, onde ficávamos mais protegidos de olhares curiosos. O Hélio já havia feito o tal cigarro e depois de fumar, prendendo a fumaça com o polegar e o dedo indicador sobre o nariz, me passou para que eu experimentasse.
Dei umas três ou quatro tragadas profundas e foi o bastante. Em menos de cinco minutos comecei a passar mal. Além de náuseas violentas, uma angustia e um medo mortal apossaram-se de mim. Pensei em minha mãe, naquele momento. Hélio, notando que eu não estava bem, chegou perto e perguntou:
– Tudo bem, Carlos?
– Tou mal, cara. Vou morrer... quero vomitar. Pô, cara, tou supermal... – era só o que eu falava. Saí meio cambaleando na chuva, que aumentara, o Hélio me seguiu e tomamos a Rua Rio Branco em direção à Praça Gonçalves Dias.
Andar na chuva, que se tornara uma chuva verdadeira, grossos pingos lavando e levando embora o terror inicial, me fez bem. Pelos menos, passou a vontade de vomitar, me sentia seguro e mais tranquilo.
Na Praça Gonçalves Dias, o Hélio ficou falando e falando, dizendo que a primeira vez era assim mesmo, “pintava uns bodes”, que era a mesma coisa que baixo-astral. A seguir, me mandou caminhar um pouco.
Fiz o que ele pediu. Caminhei sentindo um bem-estar imenso, totalmente relaxado, livre de qualquer angústia, sorrindo por dentro, feliz mesmo. O diabo é que essa sensação de paz e tranquilidade é passageira. E estava começando a “pintar outro bode”, como Hélio falava, quando este chegou pra mim e foi dizendo:
– É isso aí, Carlos. Tenho de ir agora.
– Espera aí, Hélio. Como é que vou pra casa? – Eu estava meio assustado, com medo de que aquelas náuseas voltassem.
– Fica tranquilo, cara. Você está bem. Tenho de ir me encontrar com a namorada. Já estou atrasado. – E correu, acenando para um táxi que passava naquele instante. Escorregou para dentro do automóvel e tchau para mim, que fiquei entregue à própria sorte.
Durou mais ou menos duas horas o efeito da droga. E eu fui para casa, dizendo a mesma coisa que disse um ano depois, por ocasião da doideira do Brequista: “Nunca mais eu fumo isso, nunca mais!”
Agora fazia uns três meses que eu fumava quase diariamente. Trabalhava de dia, estudava à noite. Mas o ano escolar estava perdido. O número de faltas que eu tinha dava para me reprovar por uns três anos seguidos.
Eu só me segurava naquele emprego, porque era uma função pública, e um deputado a amigo da minha família segurava as pontas.
Durante vários dias fiquei trancado no quarto lendo sem parar: romances, poesia, filosofia. Muita filosofia. Schopenhauer e Nietzsche, principalmente. Dom Quixote e A Divina Comédia. Paraíso Perdido, de Milton e Os Lusíadas também. Li tanto este último que guardei de cor suas estrofes iniciais, que são:
“As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
            Mas foram só uns vinte dias longe da turma. Apenas uns vinte dias longe da droga.
            O pior da droga é que ela cria seus próprios horários e nos domina completamente. Às cinco da tarde eu já estava que não me segurava mais no serviço. Ansioso, angustiado, louco por um fuminho. Às seis batia o cartão-ponto e me mandava para a Deodoro.
            Dois meses passados, ninguém falava mais no Brequista. Era assunto encerrado. A grande notícia do momento era o assassinato de Neguinho Robert.

(NA PRÓXIMA SEMANA  O ASSASSINATO DE NEGUINHO ROBERT, OCORRIDO NUM CABARÉ, DEIXA TODO MUNDO COM UM GRILO NA CUCA)


Raimundo Fontenele

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