24 de ago. de 2016

CRÔNICAS DO PUCUMÃ

           A coluna QUARTA é dia de RF traz hoje o segundo capítulo do livro CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma série de postagens trazendo para todos que se interessam pela leitura, pela história e pelo conhecimento a narrativa em forma de crônicas, relatos, entrevistas dos acontecimentos que se relacionam com a História do Município de São Domingos do Maranhão, conhecido, principalmente desde o seu descobrimento até a década de 60. como São Domingos do Zé Feio. Nesta quarta-feira o foco da história está fixado na minha ida para São Domingos, alguns relatos familiares, mas sem perder de vista que o alvo principal é a história dessa cidade tão querida e amada por são-dominguenses da gema e outros que adotaram como pátria única e verdadeira.
EU MENINO

            Eu não sou filho de São Domingos, todavia ninguém mais são-dominguense do que eu. Empatamos. Nasci em Marianópolis, a 28 de agosto de 1948, naquele tempo distrito ou vila, nem sei, mas pertencente ao município de Pedreiras. E vejam como as coisas se entrelaçam: a nossa vinda (meus pais, eu e uma irmã) para São Domingos tem a ver com o surgimento oficial do município.
            Como? Com a instalação de órgãos públicos aqui, entre estes o Cartório de Registro Civil, aconteceu de uma tia minha, Aleide Fontenelle, ser a dona do cartório por muitos anos. Este cartório que passou para o Zé Freitas e hoje é comandado pela nossa amiga Nenzinha. Daí que esta minha tia, solteirona, queixava-se de doença, mas acho que era a doença da solidão, instava constantemente para que meu pai viesse ajudá-la a cuidar do Cartório.
            Dizia ela que não suportava aquilo sozinha. Esta minha tia Aleide era uma pessoa bondosa mas tinha um gênio incomum. Tanto que seu celibato deu-se por birra com seu pai, meu avô Antônio Fontenele, que não queria seu namoro com um sanfoneiro colinense. Aliás, a minha família paterna era oriunda do município de Colinas. E ela retrucou, então, que se não casasse com ele não casaria com mais ninguém e assim fez. Nunca mais quis saber de homem nenhum.
            Puxando o fio do novelo: os Fontenelle (com dois “eles” que um dia um dono de cartório comeu um) são descendentes da França. Vieram para o Brasil e se estabeleceram alguns no Ceará, região de Viçosa e depois, sabem como é, a família cresce e se espalha mundo afora, e um ramo desta família veio habitar a região do rio Itapecuru, em Colinas, mais precisamente.  Mas, como todo brasileiro,  o resto da minha genética vem da raça negra, da indígena e portuguesa, pelo lado materno.
            No início do povoamento de São Domingos, além dos imigrantes nordestinos, vieram também muitos habitantes dos lugares mais próximos: de Colinas, a maior parte: os Torres, os Brandão, famílias ilustres, minha tia Lizeth Fontenelle Almeida, primeira professora a ministrar aulas no município, contribuindo para a implantação e desenvolvimento do sistema educacional são-dominguense. Também de Passagem Franca, de Buriti Bravo, Pastos Bons. Assim veio gente de tudo que é lado para formar esta “nação” que o nosso orgulho filial às vezes chama de “princesa” e outras vezes de “rainha dos cocais”.
            Meu pai, José Ribamar Fontenelle, vulgo Ribinha, era filho único e caçula, estudou as primeiras letras em Colinas, e devia continuar seus estudos em Caxias, mas sua mãe, minha avó Nena não quis separar-se dele, deixá-lo ir sozinho, os tempos eram outros, lá pelos anos 20 e assim ele permaneceu em Colinas. Já rapaz, de espírito boêmio e aventureiro aprendeu o ofício de alfaiate, e de posse de um belo e bom cavalo de sela, meteu-se no mundo a farrear, valendo-se da profissão para sustentar-se.
            A família de minha mãe, Joana Oliveira Fontenele, que atendia por Joca era lá de Marianópolis, interior de Pedreiras, de gente simples, dedicada mais à lavoura e à criação. Entre uma pinga e outra, uma festa e outra, meu pai foi parar no Mearim. Era assim que se chamavam as regiões: aqui nesta região de São Domingos, puro sertão, era conhecido como japão; lá pra Pedreiras, Bacabal,  era o Mearim.
            E lá em Marianópolis, um povoado às margens do rio Mearim, meus pais se conheceram, namoraram e casaram e lá nasci. Lembro nitidamente, apesar da grande bruma do tempo e da infinita distância da memória, de que no quintal da minha casa, cerca de 200 metros, passava o rio. Uma ruazinha principal, uma igrejinha no alto de um morro, mas desse tempo o que lembro mesmo é da casa e do quintal, tanto que muitos anos depois, no meu livro VENENOS, publiquei um poema chamado Rio Mearim, onde recordo essas vivências e que peço permissão para interromper esta narrativa e transcrevê-lo:
RIO MEARIM
                                               névoa
                                               a névoa que encobre a flor da cidade
                                               seringa sem fim
                                               rio que corre em seu fio de prumo
                                               deixo saltar a vida da infância
                                               que se esconde entre punhos de rede
                                               e missais acabados
                                               abre amargo o véu do desespero
                                               do menino feroz
                                                sonâmbulo entre ladeiras
                                               flor primeira
                                               garra febril de alumínio
                                               margens mudas do rio
                                               Rio Mearim sonho verde ao inverso
                                               no fundo do quintal canta e dança ao sereno
                                               o tigre de olhos lívidos e de patas amigas
                                               as bacias os pratos
                                               a louca possuída
     que gritava na noite
                                               grades grades grades
                                               aquele céu confuso
                                               esterco e miragem
                                               leva-me rio
    banha-me água clara
    para lá das penumbras
    lava-me água clara

            Voltemos à narrativa e a estas CRÔNICAS DO PUCUMÃ. De Marianópolis nos mudamos para um lugarejo mais atrasado ainda, só uma rua de terra e casas distantes umas das outras 5, 10 e até mais metros. Poucas eram ligadas, que se chamava parede e meia. Chamava-se Centrão e pertencia ao município de Barra do Corda.
Eu devia ter uns quatro anos de idade.  Lembro que os quintais não tinham cerca; que lá meu pai exercia as funções de Inspetor de Quarteirão, o chefe policial do lugar, mas aquilo não era trabalho para ele, um pacifista nato, e polícia naquele tempo e até hoje tem que ter valentia, ser durão, porque a bandidagem nunca deu mole.
Num dia de domingo, um valentão do lugar, cheio de cachaça e confusão andava galopando em seu cavalo rua acima, rua abaixo, e cravando as esporas na infeliz montaria que até já sangrava nas ilhargas. O certo é que meu pai, um toquinho de gente como sabem os que o conheceram em vida, naquele dia falou grosso e colocou o valentão na cadeia que saiu depois fazendo ameaças.
Pois foi justamente nessa época que começaram a chegar os convites, as chamadas, os insistentes rogos da minha tia Aleide, sua irmã, para que meu pai deixasse aqueles cafundós e fosse para São Domingos, que agora era cidade, e estava progredindo e ela também não estava bem de saúde, e que se meu pai não fosse era um ingrato, e tralalá e trololó.
Antes que a gente ponha o pé na estrada fazendo o itinerário Centrão-São Domingos, rebusco a memória procurando retratar algumas lembranças daqueles primeiros anos de vida que me acompanham até hoje.
Lembro de um dia em que houve um grande alvoroço no povoado, gritaria, corre-corre: um veado mateiro tinha saído lá do fundão dos quintais e atravessou a mil uma casa, entrando pela porta da cozinha e saindo pela porta da rua, crianças correndo, mulheres, homens com espingardas lá se foram atrás do pobre veadinho.
Outro dia, de triste memória, foi ver na vizinhança um homem morto, o rosto dilacerado, estava irreconhecível: parte da pele da sua face tinha sido arrancada. Ele estava caçando em companhia de amigos e tocaiaram uma onça que havia entrado numa espécie de gruta. Ele ficou ali com a espingarda na mão e os companheiros foram cavar do outro lado pra enxotarem a fera. Num piscar de olhos a onça avançou sobre ele, atacando-o mortalmente e sumindo no mato.

E lembro, ainda, que certas noites ficava horas a fio sem conseguir dormir, olhando uma enorme jibóia que caminhava do oitão da nossa casa até a casa do vizinho e vice-versa, pois nem existia uma divisória que separasse as casas uma da outra.
Isso era uma vida muito real, homem e natureza, sem nenhuma sofisticação, sem enfeites, bijuterias, adornos, miçangas, selfies, enquadramentos ou retoques, nada: vida concreta demais, verdadeira demais para não temermos, mas também misteriosa demais para com ela não nos encantarmos.
Acho que aquele episódio em que meu pai se envolveu com o valentão que esporeou o cavalo até sangrar, fez com que ele se decidisse atender os apelos da sua irmã e, apesar da minha mãe não desejar sair de perto dos seus familiares e aventurar-se por uma terra estranha e longínqua, naquele tempo, como era o tal “japão”, resolveu picar a mula e vir de mala e cuia para São Domingos.
Tudo resolvido, meu pai contratou um tropeiro, cuja tropa de animais, burros e um jumentinho que meu pai comprou pra mim, faria a nossa mudança. O jumentinho era castrado, pois havia sido um jumento pastor, que era como chamavam o que na verdade era um bom reprodutor e, por ser muito arisco, tiveram que castrá-lo para poder servir de montaria.
No dia marcado, ali estavam uns cinco ou seis animais com os jacás cheios dos nossos teres e haveres: panelas, redes, lençóis, todo tipo de mantimento que íamos precisar naquela viagem que durava dias. Café, açúcar, carne de sol, tudo o que possuíamos de necessário ia conosco, como na fala humilde e sábia de São Paulo: “Todas as minhas coisas eu carrego comigo”.
As águas de março ainda não haviam fechado o verão e nos colocamos em movimento, rumo ao nosso destino: pai, mãe, irmã, dois tropeiros e eu. A sorte estava lançada e a viagem seria longa e difícil. Mas a hora havia soado e lá íamos nós em direção a São Domingos do Zé Feio, São Domingos do Maranhão, Princesa dos Cocais, a eterna Rainha do Pucumã, dos nossos sonhos, dores, alegrias, sofrimentos, amores.




(NÃO PERCA! NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA: CHEGADA A SÃO DOMINGOS E O GRANDE CARNAVAL DE 1952)


Raimundo Fontenele

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