A coluna QUARTA é dia de RF traz hoje
o segundo capítulo do livro CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma série de postagens trazendo
para todos que se interessam pela leitura, pela história e pelo conhecimento a
narrativa em forma de crônicas, relatos, entrevistas dos acontecimentos que se
relacionam com a História do Município de São Domingos do Maranhão, conhecido,
principalmente desde o seu descobrimento até a década de 60. como São Domingos
do Zé Feio. Nesta quarta-feira o foco da história está fixado na minha ida para
São Domingos, alguns relatos familiares, mas sem perder de vista que o alvo
principal é a história dessa cidade tão querida e amada por são-dominguenses da
gema e outros que adotaram como pátria única e verdadeira.
EU
MENINO
Eu não sou filho de São
Domingos, todavia ninguém mais são-dominguense do que eu. Empatamos. Nasci em
Marianópolis, a 28 de agosto de 1948, naquele tempo distrito ou vila, nem sei,
mas pertencente ao município de Pedreiras. E vejam como as coisas se entrelaçam:
a nossa vinda (meus pais, eu e uma irmã) para São Domingos tem a ver com o
surgimento oficial do município.
Como? Com a instalação
de órgãos públicos aqui, entre estes o Cartório de Registro Civil, aconteceu de
uma tia minha, Aleide Fontenelle, ser a dona do cartório por muitos anos. Este
cartório que passou para o Zé Freitas e hoje é comandado pela nossa amiga
Nenzinha. Daí que esta minha tia, solteirona, queixava-se de doença, mas acho
que era a doença da solidão, instava constantemente para que meu pai viesse
ajudá-la a cuidar do Cartório.
Dizia ela que não
suportava aquilo sozinha. Esta minha tia Aleide era uma pessoa bondosa mas
tinha um gênio incomum. Tanto que seu celibato deu-se por birra com seu pai,
meu avô Antônio Fontenele, que não queria seu namoro com um sanfoneiro
colinense. Aliás, a minha família paterna era oriunda do município de Colinas.
E ela retrucou, então, que se não casasse com ele não casaria com mais ninguém
e assim fez. Nunca mais quis saber de homem nenhum.
Puxando o fio do
novelo: os Fontenelle (com dois “eles” que um dia um dono de cartório comeu um)
são descendentes da França. Vieram para o Brasil e se estabeleceram alguns no
Ceará, região de Viçosa e depois, sabem como é, a família cresce e se espalha
mundo afora, e um ramo desta família veio habitar a região do rio Itapecuru, em
Colinas, mais precisamente. Mas, como
todo brasileiro, o resto da minha
genética vem da raça negra, da indígena e portuguesa, pelo lado materno.
No início do povoamento
de São Domingos, além dos imigrantes nordestinos, vieram também muitos
habitantes dos lugares mais próximos: de Colinas, a maior parte: os Torres, os
Brandão, famílias ilustres, minha tia Lizeth Fontenelle Almeida, primeira
professora a ministrar aulas no município, contribuindo para a implantação e
desenvolvimento do sistema educacional são-dominguense. Também de Passagem
Franca, de Buriti Bravo, Pastos Bons. Assim veio gente de tudo que é lado para
formar esta “nação” que o nosso orgulho filial às vezes chama de “princesa” e outras
vezes de “rainha dos cocais”.
Meu pai, José Ribamar
Fontenelle, vulgo Ribinha, era filho único e caçula, estudou as primeiras
letras em Colinas, e devia continuar seus estudos em Caxias, mas sua mãe, minha
avó Nena não quis separar-se dele, deixá-lo ir sozinho, os tempos eram outros,
lá pelos anos 20 e assim ele permaneceu em Colinas. Já rapaz, de espírito
boêmio e aventureiro aprendeu o ofício de alfaiate, e de posse de um belo e bom
cavalo de sela, meteu-se no mundo a farrear, valendo-se da profissão para
sustentar-se.
A família de minha mãe,
Joana Oliveira Fontenele, que atendia por Joca era lá de Marianópolis, interior
de Pedreiras, de gente simples, dedicada mais à lavoura e à criação. Entre uma
pinga e outra, uma festa e outra, meu pai foi parar no Mearim. Era assim que se
chamavam as regiões: aqui nesta região de São Domingos, puro sertão, era
conhecido como japão; lá pra Pedreiras, Bacabal, era o Mearim.
E
lá em Marianópolis, um povoado às margens do rio Mearim, meus pais se
conheceram, namoraram e casaram e lá nasci. Lembro nitidamente, apesar da
grande bruma do tempo e da infinita distância da memória, de que no quintal da
minha casa, cerca de 200 metros, passava o rio. Uma ruazinha principal, uma
igrejinha no alto de um morro, mas desse tempo o que lembro mesmo é da casa e
do quintal, tanto que muitos anos depois, no meu livro VENENOS, publiquei um
poema chamado Rio Mearim, onde
recordo essas vivências e que peço permissão para interromper esta narrativa e
transcrevê-lo:
RIO
MEARIM
névoa
a
névoa que encobre a flor da cidade
seringa
sem fim
rio
que corre em seu fio de prumo
deixo
saltar a vida da infância
que
se esconde entre punhos de rede
e
missais acabados
abre
amargo o véu do desespero
do
menino feroz
sonâmbulo entre ladeiras
flor
primeira
garra
febril de alumínio
margens
mudas do rio
Rio
Mearim sonho verde ao inverso
no
fundo do quintal canta e dança ao sereno
o
tigre de olhos lívidos e de patas amigas
as
bacias os pratos
a
louca possuída
que
gritava na noite
grades
grades grades
aquele
céu confuso
esterco
e miragem
leva-me
rio
banha-me
água clara
para
lá das penumbras
lava-me água clara
Voltemos à narrativa e
a estas CRÔNICAS DO PUCUMÃ. De Marianópolis nos mudamos para um lugarejo mais
atrasado ainda, só uma rua de terra e casas distantes umas das outras 5, 10 e
até mais metros. Poucas eram ligadas, que se chamava parede e meia. Chamava-se
Centrão e pertencia ao município de Barra do Corda.
Eu devia ter uns quatro anos de idade. Lembro que os quintais não tinham cerca; que
lá meu pai exercia as funções de Inspetor de Quarteirão, o chefe policial do
lugar, mas aquilo não era trabalho para ele, um pacifista nato, e polícia
naquele tempo e até hoje tem que ter valentia, ser durão, porque a bandidagem
nunca deu mole.
Num dia de domingo, um valentão do lugar, cheio de
cachaça e confusão andava galopando em seu cavalo rua acima, rua abaixo, e
cravando as esporas na infeliz montaria que até já sangrava nas ilhargas. O
certo é que meu pai, um toquinho de gente como sabem os que o conheceram em
vida, naquele dia falou grosso e colocou o valentão na cadeia que saiu depois
fazendo ameaças.
Pois foi justamente nessa época que começaram a
chegar os convites, as chamadas, os insistentes rogos da minha tia Aleide, sua
irmã, para que meu pai deixasse aqueles cafundós e fosse para São Domingos, que
agora era cidade, e estava progredindo e ela também não estava bem de saúde, e
que se meu pai não fosse era um ingrato, e tralalá e trololó.
Antes que a gente ponha o pé na estrada fazendo o
itinerário Centrão-São Domingos, rebusco a memória procurando retratar algumas
lembranças daqueles primeiros anos de vida que me acompanham até hoje.
Lembro de um dia em que houve um grande alvoroço no
povoado, gritaria, corre-corre: um veado mateiro tinha saído lá do fundão dos
quintais e atravessou a mil uma casa, entrando pela porta da cozinha e saindo
pela porta da rua, crianças correndo, mulheres, homens com espingardas lá se
foram atrás do pobre veadinho.
Outro dia, de triste memória, foi ver na vizinhança
um homem morto, o rosto dilacerado, estava irreconhecível: parte da pele da sua
face tinha sido arrancada. Ele estava caçando em companhia de amigos e
tocaiaram uma onça que havia entrado numa espécie de gruta. Ele ficou ali com a
espingarda na mão e os companheiros foram cavar do outro lado pra enxotarem a
fera. Num piscar de olhos a onça avançou sobre ele, atacando-o mortalmente e
sumindo no mato.
E lembro, ainda, que certas noites ficava horas a fio sem conseguir
dormir, olhando uma enorme jibóia que caminhava do oitão da nossa casa até a
casa do vizinho e vice-versa, pois nem existia uma divisória que separasse as
casas uma da outra.
Isso era uma vida muito real, homem e natureza, sem nenhuma
sofisticação, sem enfeites, bijuterias, adornos, miçangas, selfies,
enquadramentos ou retoques, nada: vida concreta demais, verdadeira demais para
não temermos, mas também misteriosa demais para com ela não nos encantarmos.
Acho que aquele episódio em que meu pai se envolveu com o valentão que
esporeou o cavalo até sangrar, fez com que ele se decidisse atender os apelos
da sua irmã e, apesar da minha mãe não desejar sair de perto dos seus
familiares e aventurar-se por uma terra estranha e longínqua, naquele tempo,
como era o tal “japão”, resolveu picar a mula e vir de mala e cuia para São
Domingos.
Tudo resolvido, meu pai contratou
um tropeiro, cuja tropa de animais, burros e um jumentinho que meu pai comprou
pra mim, faria a nossa mudança. O jumentinho era castrado, pois havia sido um
jumento pastor, que era como chamavam o que na verdade era um bom reprodutor e,
por ser muito arisco, tiveram que castrá-lo para poder servir de montaria.
No dia marcado, ali estavam uns
cinco ou seis animais com os jacás cheios dos nossos teres e haveres: panelas,
redes, lençóis, todo tipo de mantimento que íamos precisar naquela viagem que
durava dias. Café, açúcar, carne de sol, tudo o que possuíamos de necessário ia
conosco, como na fala humilde e sábia de São Paulo: “Todas as minhas coisas eu
carrego comigo”.
As águas de março ainda não haviam
fechado o verão e nos colocamos em movimento, rumo ao nosso destino: pai, mãe,
irmã, dois tropeiros e eu. A sorte estava lançada e a viagem seria longa e
difícil. Mas a hora havia soado e lá íamos nós em direção a São Domingos do Zé
Feio, São Domingos do Maranhão, Princesa dos Cocais, a eterna Rainha do Pucumã,
dos nossos sonhos, dores, alegrias, sofrimentos, amores.
(NÃO PERCA! NA
PRÓXIMA QUARTA-FEIRA: CHEGADA A SÃO DOMINGOS E O GRANDE CARNAVAL DE 1952)
Raimundo
Fontenele
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