1 de set. de 2016

CRÔNICAS DO PUCUMÃ

A coluna QUARTA É DIA DE RF traz mais um  capítulo das CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma série de postagens trazendo para todos que se interessam pela leitura, pela história e pelo conhecimento a narrativa em forma de crônicas, relatos e entrevistas acerca dos acontecimentos que se relacionam com a História do Município de São Domingos do Maranhão, conhecido, principalmente desde o seu descobrimento até a década de 60, como São Domingos do Zé Feio. Nesta quarta-feira conto a viagem que fiz, em companhia da minha família, do povoado Centrão, em Barra do Corda, até a cidade de São Domingos e principio a narrar alguns fatos interessantes da história são-dominguense como, por exemplo, os grandes carnavais das décadas de 50 e 60. Hoje vamos falar sobre o carnaval de 1952 e ressalto aqui a colaboração da nossa amiga Socorro Brandão, também ela memória vida de tudo que se passou em São Domingos.
  
TRAVESSIA DAS ÁGUAS

Difícil fixar tudo na memória e trazer isto agora depois de mais de 65 anos. Mas do que mais me lembro na viagem feita do Centrão-Barra do Corda para São Domingos são das águas. 
Chuvas intermináveis que, às vezes, nos faziam procurar abrigo embaixo de árvores mais frondosas, mais cheias de galhos, que nos servissem de teto, quando não havia uma casa por perto. Mesmo assim ficávamos encharcados.
E os lamaçais depois das chuvas. E os igarapés, os atoleiros, os sapos coaxando no escuro, nas grandes poças dágua que se formavam à beira da estrada, e nós avançando sobre o lombo dos animais noite adentro, praticamente no escuro quando a lua já não estava mais iluminando o nosso caminho.
E com que alegria saudávamos uma luz que se avistava ao longe, e o tropeiro guia nos animava, “vamos mais rápido, olha lá uma luz, deve ter uma casinha, gente que pode nos abrigar o resto da noite”, assim dizia e atiçávamos nossas montarias em direção àquela luz que para nós tinha o mesmo significado da estrela de Davi, nos apontando o caminho da salvação.
Veredas, sem nenhuma marca de pneus de carro, nada disso havia, eram estradas sinuosas, de chão batido, dois metros de largura, às vezes mais, às vezes menos, verdadeiras picadas, e de repente, dávamos de cara com atoleiro. Os animais caíam ali como se fosse um pântano de areias movediças. Meu pai e os tropeiros, agora lembrei que eram dois, tinham que tirar a carga dos animais ali dentro do lamaçal mesmo, e depois puxá-los e em seguida colocarem a carga de volta. Várias vezes essa operação foi feita durante a nossa viagem que deve ter durado de três a quatro dias.
            Cobras, lagartos, tatus, preás, tudo isso a gente via atravessando a estrada. E canto de pássaros, e tarde da noite, madrugada afora, silvos, assovios do vento, sons misteriosos e ameaçadores que chegavam da mata virgem, me deixavam com o coração aos pulos. E me aninhava no colo de minha mãe até cair no sono, ali na estrada mesmo, debaixo de uma árvore protetora que nos acolhia e assim descansávamos, dormíamos, recuperando forças para o resto da jornada.
            Quando não eram as chuvas havia o sol escaldante, os animais cansavam mais rápidos, a sede batia, mas a gente trazia bilhas dágua para essas ocasiões, e quando a fome batia parávamos sempre ao pé de alguma árvore, improvisava-se um fogo de chão, minha mãe cozinhava o arroz e assava uma saborosa e bem temperada carne de sol, farinha seca, alguma banana e após um breve descanso pé na estrada outra vez.

            E recordando essa viagem, muitos anos depois, também transformei aquela vivência em um poema chamado ALDEIA que reproduzo aqui e que se encontra também no livro VENENOS:
ALDEIA
foi-se a cavalo
um brilho de sapo-estrela
nas barbas distantes
do meu pai afundando
e a mãe sobre sonhos
foi-se a pé
o orvalho o frio orvalho
numa cópula sagrada
pousávamos em cabanas de antigas estradas
um milímetro de sopa
o mundo nos bastava
ir-se em barcos em jumentos
em lagos de madrepérola
sugar a manga verde
pássaros e pássaras
cantos daquela aldeia
perdida entre brumas
a névoa de toda a infância
névoa barba canseira
as mãos do velho pai
rondando sobre esferas
o peito da triste mãe
uma lágrima amarela
fui a cavalo a pé
no terreiro os galos
para sempre da aldeia
na névoa sem mistérios
caminho vida afora
entre sonhos e feras
            Assim chegamos a São Domingos e ficamos morando na casa da minha tia Aleide, na Rua Major Delfino Calvo, antiga Rua de Colinas, e que servia de residência e com um salão onde funcionava o Cartório do Registro Civil. Esta casa hoje é um comércio mas é de propriedade do senhor Chiquinho Crente, figura muito conhecida e respeitada em nosso São Domingos.
            Moramos ali até que fosse construída uma casinha de alvenaria, coberta de telha, com calçada, mas sem reboco e sem luxo algum, cujos cômodos eram a sala da frente, chamada sala de visitas, um corredor, um quarto de dormir,  um corredor, e cozinha e localizada na Rua Nova, uma rua realmente nova e que não tinha mais que 20 moradias. Defronte a nossa casa morava a família do senhor Manoel Tamburi, sua esposa dona Izabel, seus filhos Joaquim, o Zuza, Irene e mais outra cujo nome não lembro agora.
            Seu Manoel Tamburi vivia praticamente de uma atividade que os jovens são-dominguenses jamais pensaram existir. Ele comprava couro de gado no matadouro e esticava esses couros, colocava no sol para secar lá mesmo no quintal de sua casa e depois vendia para um curtume que havia no rumo do Alto do Fogo ou Boa Vista da família do senhor Xandu.
            Falo do senhor Manoel Tamburi porque foi a primeira família de quem ficamos amigos e próximos, de vivermos uns na casa do outro, e o seu filho Zuza foi o meu primeiro amigo de infância.
E até hoje ao lembrar, essas recordações são como uma coisa viva da qual não nos afastamos apesar de tanto tempo já se haver passado. E suspiro saudoso por uma época de ingenuidade, amizades puras, mas a vida é assim, um cavalo veloz no qual vamos montados e não há tempo para se olhar para trás, temos que nos concentrar no que vem pela frente: um obstáculo a transpor ou uma esquina a dobrar. 


OS ANTIGOS CARNAVAIS SÃO-DOMINGUENSES
(Entrevistas com a senhora Socorro Brandão num programa radiofônico na Rádio FM Comunitária de São Domingos do Maranhão)

Vamos falar um pouco dos carnavais e festas populares a partir do ano de 1952, que é o ano da criação oficial do município de São Domingos do Maranhão. Segundo relato da senhora Socorro Brandão, filha do ex-Prefeito e Líder Político Aluízio Silva Brandão, o primeiro bloco carnavalesco do qual tem lembrança é o bloco CONTE COMIGO, organizado pela srta. Aleide Fontenelle, já falecida.
Falamos aqui que a partir de 1952 passamos a registrar lances e acontecimentos carnavalescos que devem ser preservados na memória do povo. Até para não repetirmos os erros do passado, nem nos orgulharmos, nos envaidecermos de algo que pensamos ser criação nossa, da nossa época, e no entanto se formos revolver o passado encontraremos sempre surpresas, testemunhos, rastros, sinais do que houve, do que se construiu e vivenciou muito antes de nós.
O relato mais antigo trata da disputa de dois blocos CONTE COMIGO, organizado por Aleide Fontenelle, e o COMIGO NINGUÉM PODE, organizado pela sra. Doca Brandão. Sigamos o relato de nossa amiga Socorro Brandão.

Ainda conforme a Socorro Brandão, o Bloco CONTE COMIGO era um bloco de rua, muito bonito, e sua fantasia era decorada como se fosse Cartas de Baralho. A roupa era branca e as várias cartas e naipes do baralho bordadas em ouro.
O bloco possuía cerca de 30 componentes e como uma das irmãs mais velhas da Socorro Brandão era pequena e foi colocada, pelo seu tamanho, num dos últimos lugares do bloco, sua mãe, Dona Doca Brandão, ficou bastante chateada, achando que era uma humilhação e resolveu criar outro bloco e assim fez. 
Foi então que o Bloco CONTE COMIGO (da sra. Aleide) saiu no domingo e o bloco da dona Doca, o COMIGO NINGUÉM PODE, saiu na terça-feira de carnaval. Perguntei pra Socorro se aquilo se constituiu numa espécie de pirraça e eis o seu relato:
"Era pra pirraçar mesmo, porque naquele tempo não tinha diversão e nem disputa política ainda. Foi mais uma rixa pessoal entre tua tia Aleide e a minha mãe Doca, sendo que o senhor Jofran Torres apoiou o bloco organizado pela minha mãe, e o sr. Raimundo Almeida apoiou o Bloco da Dona Aleide".
Comentei sobre as fantasias em forma de baralho e pedi que ela falasse mais detalhes, como as cores das fantasias, por exemplo:
"Era branco bordado de preto e vermelho. O Sr. Jofran Torres deu duas peças de tecido laquê e a outra peça de acetinado amarelo com preto. O centro (ou fundo) do pano era preto com bolas amarelas. Então foi isso. E tinha a disputa dos blocos aqui na Praça Getúlio Vargas, um passando pelo outro, com muita música, barulho e a algazarra própria das festas populares."
Falaste que o bloco CONTE COMIGO tinha mais ou menos 30 integrantes, e o COMIGO NINGUÉM PODE chegou a atingir o mesmo número, considerando que àquela época não existiam tantos jovens assim...
"Somou mais pessoas ainda porque vieram duas moças de Colinas, mamãe mandou buscar mais moças e rapazes da família dela no Angical e Presidente Dutra, que naquele tempo se chamava Curador. E também algumas moças que não estavam participando do bloco de dona Aleide vieram participar do Bloco COMIGO NINGUÉM PODE".
Socorro, importante é se a gente lembrar o nome de alguns desses rapazes e moças participantes desses blocos. Pois na verdade representam uma espécie de segunda geração são-dominguense no processo civilizatório, agora como município. E são aquilo que se pode chamar o núcleo da sociedade mais abastada ou representativa, posição que alcançavam também alguns funcionários públicos..
"Era a Maria Lobão, Alice Lobão, Joana Marica, Nenenzinha, Heloísa Cazé, Fábio Brandão, Belchior Zezinho, José Elias, e assim teve aquela disputa. Como o senhor Raimundo Almeida cedeu a sua residência para as festas do bloco CONTE COMIGO, o senhor Elidônio Aprígio do Nascimento, forte comerciante da cidade e mais tarde chefe político, cedeu a sua para as festas do bloco COMIGO NINGUÉM PODE. Nesse Carnaval tinha aqui em São Domingos o Dr. Pacheco que era namorado da Heloísa Cazé, e que deu seu apoio ao bloco da minha mãe. Sendo ele, Dr. Pacheco, inclusive, coroado Rei Momo do Carnaval de São Domingos do Maranhão".
Em síntese, foi um grande Carnaval. E a Socorro completa:
"Sim, foi um grande Carnaval aquele de 52, com dois blocos disputando, a presença de um Rei Momo, um carnaval muito bem organizado e que chamou a atenção, inclusive, dos municípios vizinhos como Colinas, Presidente Dutra, etc."
Eu era garoto, mas a beleza da Heloísa Cazé botava essas guriaszinhas da Globo no chinelo. Todo menino, todo rapaz, quer dizer, todo ser pensante não tinha como não se apaixonar pela sua beleza.


Raimundo Fontenele


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