A coluna QUARTA É DIA DE RF traz mais
um capítulo das CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma
série de postagens trazendo para todos que se interessam pela leitura, pela
história e pelo conhecimento a narrativa em forma de crônicas, relatos e
entrevistas acerca dos acontecimentos que se relacionam com a História do
Município de São Domingos do Maranhão, conhecido, principalmente desde o seu
descobrimento até a década de 60, como São Domingos do Zé Feio. Nesta
quarta-feira conto a viagem que fiz, em companhia da minha família, do povoado
Centrão, em Barra do Corda, até a cidade de São Domingos e principio a narrar
alguns fatos interessantes da história são-dominguense como, por exemplo, os
grandes carnavais das décadas de 50 e 60. Hoje vamos falar sobre o carnaval de
1952 e ressalto aqui a colaboração da nossa amiga Socorro Brandão, também ela
memória vida de tudo que se passou em São Domingos.
TRAVESSIA
DAS ÁGUAS
Difícil fixar tudo na memória e trazer isto agora
depois de mais de 65 anos. Mas do que mais me lembro na viagem feita do
Centrão-Barra do Corda para São Domingos são das águas.
Chuvas intermináveis que, às vezes, nos faziam
procurar abrigo embaixo de árvores mais frondosas, mais cheias de galhos, que
nos servissem de teto, quando não havia uma casa por perto. Mesmo assim
ficávamos encharcados.
E os lamaçais depois das chuvas. E os igarapés, os
atoleiros, os sapos coaxando no escuro, nas grandes poças dágua que se formavam
à beira da estrada, e nós avançando sobre o lombo dos animais noite adentro,
praticamente no escuro quando a lua já não estava mais iluminando o nosso
caminho.
E com que alegria saudávamos uma luz que se
avistava ao longe, e o tropeiro guia nos animava, “vamos mais rápido, olha lá
uma luz, deve ter uma casinha, gente que pode nos abrigar o resto da noite”,
assim dizia e atiçávamos nossas montarias em direção àquela luz que para nós
tinha o mesmo significado da estrela de Davi, nos apontando o caminho da
salvação.
Veredas, sem nenhuma marca de pneus de carro, nada
disso havia, eram estradas sinuosas, de chão batido, dois metros de largura, às
vezes mais, às vezes menos, verdadeiras picadas, e de repente, dávamos de cara
com atoleiro. Os animais caíam ali como se fosse um pântano de areias
movediças. Meu pai e os tropeiros, agora lembrei que eram dois, tinham que
tirar a carga dos animais ali dentro do lamaçal mesmo, e depois puxá-los e em
seguida colocarem a carga de volta. Várias vezes essa operação foi feita
durante a nossa viagem que deve ter durado de três a quatro dias.
Cobras, lagartos,
tatus, preás, tudo isso a gente via atravessando a estrada. E canto de
pássaros, e tarde da noite, madrugada afora, silvos, assovios do vento, sons
misteriosos e ameaçadores que chegavam da mata virgem, me deixavam com o
coração aos pulos. E me aninhava no colo de minha mãe até cair no sono, ali na
estrada mesmo, debaixo de uma árvore protetora que nos acolhia e assim
descansávamos, dormíamos, recuperando forças para o resto da jornada.
Quando não eram as
chuvas havia o sol escaldante, os animais cansavam mais rápidos, a sede batia,
mas a gente trazia bilhas dágua para essas ocasiões, e quando a fome batia
parávamos sempre ao pé de alguma árvore, improvisava-se um fogo de chão, minha
mãe cozinhava o arroz e assava uma saborosa e bem temperada carne de sol,
farinha seca, alguma banana e após um breve descanso pé na estrada outra vez.
E
recordando essa viagem, muitos anos depois, também transformei aquela vivência
em um poema chamado ALDEIA que reproduzo aqui e que se encontra também no livro
VENENOS:
ALDEIA
foi-se a cavalo
um brilho de sapo-estrela
nas barbas distantes
do meu pai afundando
e a mãe sobre sonhos
foi-se a pé
o orvalho o frio orvalho
numa cópula sagrada
pousávamos em cabanas de antigas
estradas
um milímetro de sopa
o mundo nos bastava
ir-se em barcos em jumentos
em lagos de madrepérola
sugar a manga verde
pássaros e pássaras
cantos daquela aldeia
perdida entre brumas
a névoa de toda a infância
névoa barba canseira
as mãos do velho pai
rondando sobre esferas
o peito da triste mãe
uma lágrima amarela
fui a cavalo a pé
no terreiro os galos
para sempre da aldeia
na névoa sem mistérios
caminho vida afora
entre sonhos e feras
Assim chegamos a São
Domingos e ficamos morando na casa da minha tia Aleide, na Rua Major Delfino
Calvo, antiga Rua de Colinas, e que servia de residência e com um salão onde
funcionava o Cartório do Registro Civil. Esta casa hoje é um comércio mas é de
propriedade do senhor Chiquinho Crente, figura muito conhecida e respeitada em
nosso São Domingos.
Moramos
ali até que fosse construída uma casinha de alvenaria, coberta de telha, com
calçada, mas sem reboco e sem luxo algum, cujos cômodos eram a sala da frente,
chamada sala de visitas, um corredor, um quarto de dormir, um corredor, e cozinha e localizada na Rua
Nova, uma rua realmente nova e que não tinha mais que 20 moradias. Defronte a
nossa casa morava a família do senhor Manoel Tamburi, sua esposa dona Izabel,
seus filhos Joaquim, o Zuza, Irene e mais outra cujo nome não lembro agora.
Seu Manoel Tamburi
vivia praticamente de uma atividade que os jovens são-dominguenses jamais
pensaram existir. Ele comprava couro de gado no matadouro e esticava esses
couros, colocava no sol para secar lá mesmo no quintal de sua casa e depois
vendia para um curtume que havia no rumo do Alto do Fogo ou Boa Vista da
família do senhor Xandu.
Falo do senhor Manoel
Tamburi porque foi a primeira família de quem ficamos amigos e próximos, de
vivermos uns na casa do outro, e o seu filho Zuza foi o meu primeiro amigo de
infância.
E até hoje ao lembrar, essas recordações são como
uma coisa viva da qual não nos afastamos apesar de tanto tempo já se haver
passado. E suspiro saudoso por uma época de ingenuidade, amizades puras, mas a
vida é assim, um cavalo veloz no qual vamos montados e não há tempo para se
olhar para trás, temos que nos concentrar no que vem pela frente: um obstáculo
a transpor ou uma esquina a dobrar.
OS ANTIGOS
CARNAVAIS SÃO-DOMINGUENSES
(Entrevistas com a senhora Socorro Brandão num
programa radiofônico na Rádio FM Comunitária de São Domingos do Maranhão)
Vamos falar um pouco dos carnavais e festas populares a partir
do ano de 1952, que é o ano da criação oficial do município de São Domingos do
Maranhão. Segundo relato da senhora Socorro Brandão, filha do ex-Prefeito e
Líder Político Aluízio Silva Brandão, o primeiro bloco carnavalesco do qual tem
lembrança é o bloco CONTE COMIGO, organizado pela
srta. Aleide Fontenelle, já falecida.
Falamos aqui que a partir de 1952 passamos a
registrar lances e acontecimentos carnavalescos que devem ser preservados na
memória do povo. Até para não repetirmos os erros do passado, nem nos
orgulharmos, nos envaidecermos de algo que pensamos ser criação nossa, da nossa
época, e no entanto se formos revolver o passado encontraremos sempre
surpresas, testemunhos, rastros, sinais do que houve, do que se construiu e
vivenciou muito antes de nós.
O relato mais antigo trata da disputa de dois
blocos CONTE COMIGO, organizado por Aleide Fontenelle, e o COMIGO NINGUÉM PODE,
organizado pela sra. Doca Brandão. Sigamos o relato de nossa amiga Socorro
Brandão.
Ainda conforme a Socorro Brandão, o Bloco CONTE COMIGO era um
bloco de rua, muito bonito, e sua fantasia era decorada como se fosse Cartas de
Baralho. A roupa era branca e as várias cartas e naipes do baralho bordadas em
ouro.
O bloco possuía cerca de 30 componentes e como uma das irmãs
mais velhas da Socorro Brandão era pequena e foi colocada, pelo seu tamanho,
num dos últimos lugares do bloco, sua mãe, Dona Doca Brandão, ficou bastante
chateada, achando que era uma humilhação e resolveu criar outro bloco e assim
fez.
Foi
então que o Bloco CONTE COMIGO (da sra. Aleide) saiu no domingo e o bloco da
dona Doca, o COMIGO NINGUÉM PODE, saiu na terça-feira de
carnaval. Perguntei pra Socorro se aquilo se constituiu numa espécie de
pirraça e eis o seu relato:
"Era
pra pirraçar mesmo, porque naquele tempo não tinha diversão e nem disputa
política ainda. Foi mais uma rixa pessoal entre tua tia Aleide e a minha mãe
Doca, sendo que o senhor Jofran Torres apoiou o bloco organizado pela minha
mãe, e o sr. Raimundo Almeida apoiou o Bloco da Dona Aleide".
Comentei
sobre as fantasias em forma de baralho e pedi que ela falasse mais detalhes,
como as cores das fantasias, por exemplo:
"Era
branco bordado de preto e vermelho. O Sr. Jofran Torres deu duas peças de
tecido laquê e a outra peça de acetinado amarelo com preto. O centro (ou fundo)
do pano era preto com bolas amarelas. Então foi isso. E tinha a disputa dos
blocos aqui na Praça Getúlio Vargas, um passando pelo outro, com muita música,
barulho e a algazarra própria das festas populares."
Falaste
que o bloco CONTE COMIGO tinha mais ou menos 30 integrantes, e o COMIGO NINGUÉM
PODE chegou a atingir o mesmo número, considerando que àquela época não
existiam tantos jovens assim...
"Somou
mais pessoas ainda porque vieram duas moças de Colinas, mamãe mandou buscar mais
moças e rapazes da família dela no Angical e Presidente Dutra, que naquele
tempo se chamava Curador. E também algumas moças que não estavam participando
do bloco de dona Aleide vieram participar do Bloco COMIGO NINGUÉM PODE".
Socorro,
importante é se a gente lembrar o nome de alguns desses rapazes e moças
participantes desses blocos. Pois na verdade representam uma espécie de segunda
geração são-dominguense no processo civilizatório, agora como município. E são
aquilo que se pode chamar o núcleo da sociedade mais abastada ou
representativa, posição que alcançavam também alguns funcionários públicos..
"Era
a Maria Lobão, Alice Lobão, Joana Marica, Nenenzinha, Heloísa Cazé, Fábio
Brandão, Belchior Zezinho, José Elias, e assim teve aquela disputa. Como o senhor
Raimundo Almeida cedeu a sua residência para as festas do bloco CONTE COMIGO, o
senhor Elidônio Aprígio do Nascimento, forte comerciante da cidade e mais tarde
chefe político, cedeu a sua para as festas do bloco COMIGO NINGUÉM PODE. Nesse
Carnaval tinha aqui em São Domingos o Dr. Pacheco que era namorado da Heloísa
Cazé, e que deu seu apoio ao bloco da minha mãe. Sendo ele, Dr. Pacheco,
inclusive, coroado Rei Momo do Carnaval de São Domingos do Maranhão".
Em síntese, foi um grande Carnaval. E
a Socorro completa:
"Sim, foi um grande Carnaval
aquele de 52, com dois blocos disputando, a presença de um Rei Momo, um
carnaval muito bem organizado e que chamou a atenção, inclusive, dos municípios
vizinhos como Colinas, Presidente Dutra, etc."
Eu era garoto, mas a beleza da
Heloísa Cazé botava essas guriaszinhas da Globo no chinelo. Todo menino, todo
rapaz, quer dizer, todo ser pensante não tinha como não se apaixonar pela sua
beleza.
Raimundo Fontenele



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