11 de fev. de 2019

IRMANDADE DOS POETAS VIVOS


     
      Voltamos com o nosso FOLHETIM DA SEMANA do nosso blog  LITERATURA LIMITE (acesse-o no link www.literaturalimite.blogspot.com.br), hoje com um trabalho excepcional do meu grande amigo poeta maranhense Fernando Braga. Fernando pertence à mesma geração a qual pertenço, a dos anos 60/70, assim como o nosso conterrâneo Lauro Leite, que publicaram seus primeiros livros uns dois ou três anos antes de mim.
         Também o poeta pernambucano Jamerson Lemos, mas que estreou com livro em São Luís, onde residiu alguns anos, fazia parte daquele momento de renovação da poesia maranhense, com uma geração que seria a substituta natural dos poetas Nauro, Tribuzzi, Zé Chagas, um tríduo barra pesada, já com uma obra poética densa e consolidada como a grande poesia maranhense de então.
         Mas o Fernando Braga não se tornou apenas um grande poeta e sim um ótimo escritor, que escreve prosa com a mesma facilidade com que faz seus primorosos poemas.
         Daí surgiu sua antologia Toda Prosa, com textos abordando crítica, memória, reportagem, enfim um caleidoscópio cultural e literário dos escritores mais representativos de qualquer época, pois o Fernando não se atém a períodos ou escolas, e sim aos artistas da palavra com os quais tem alguma afinidade, ou pelos quais nutre admiração, respeito, reconhecimento.
         Com sua permissão e autorização, pra deixar tudo com os pingos nos is, recolhi de sua série de Conversas Vadias uma que trata de um poeta que me é extremamente caro: Mário Faustino. Um poeta certamente desconhecido do público e, o que é pior e triste, frustrante e decepcionante, mesmo jovens poetas e literatos em geral, aliás a militância política aboliu tais denominações: agora são todos intelectuais, termo que também vai sendo substituído por especialistas; então, não conhecem o Mário Faustino, no máximo, citam um Drummond,  Manuel Bandeira. Mas ninguém leu nada, ninguém sabe nada. Todos soltaram as mãos de todos e caíram num abismo de incultura e ignorância. (RF)
         Com vocês,

FERNANDO BRAGA E SUAS “CONVERSAS VADIAS”
Poeta Fernando Braga
 MÁRIO FAUSTINO E “O HOMEM E SUA HORA

         Na segunda metade do século passado, nasciam os primeiros gritos da nossa geração, a de 60, marcada por muita claridade. Apesar das mortes violentas de John Kennedy e Martin Luther King, surgiam no mundo, com grande estrondo, o movimento ‘Hip’ e os ‘Beatles’, e junto deles, em nosso país, as premonições de ‘Brasil, o País do Futuro’, escrito pelo judeu-austríaco Stefan Zweig; a inauguração de Brasília; a nacionalização da indústria automobilística; a era romântica do ‘Fusca’; o modelo econômico de Roberto Campos; a magia do nosso futebol a encantar o mundo; a revolução do cinema novo através do talento de Glauber Rocha; o ‘movimento concretista’ a se projetar nas artes, juntamente com os movimentos musicais da ‘Bossa Nova’, ‘Jovem Guarda’ e ‘Tropicália’, bem como os grandes festivais, em todos os níveis de arte, a revelar uma juventude brilhante egressa das Universidades. Ante essa luminosidade toda, o poeta e contista Mário Luna Filho, ainda jovem estudante de medicina e já laureado pela Academia Maranhense de Letras em concursos literários, chamava-me atenção, com o brilho de sua inteligência, para a grandeza e a simbologia imagística da poética de um outro Mário, o Faustino, recém-falecido em desastre aéreo.
         Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina-Piauí, em 22 de outubro de 1930 e faleceu em Lima-Peru, em 27 de novembro de 1962, com apenas 32 anos de idade, num desastre aéreo. Realizou a maior parte de seus estudos em Belém, onde se tornou redator e cronista de ‘A Província do Pará’ e, em seguida, de ‘A Folha do Norte’, onde foi chefe de redação; foi nesse período que Mário reuniu uma plêiade de jovens escritores, poetas e críticos, seus contemporâneos da ‘Geração de 45’, como Haroldo Maranhão [1927-2004], Oliveira Bastos [1933-2006], Benedito Nunes [1929-2011], Max Martins [1926-2009], Rui Barata [1920-1990], o norte-americano Robert Stock [1923-1981] e a ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector [1925-1977], estes dois últimos residentes também, à época, em Belém do Pará, para colaborarem no suplemento, o qual mantinha intensa conexão com os intelectuais do eixo Rio-São Paulo. Como se viu, esses jovens intelectuais, todos contemporâneos de Mário Faustino, hoje descansam nos resplendores da luz perpétua, infelizmente, para perca da nossa história literária, não mais são lembrados... Com exceção de Clarice que vez por outra é alvo de estudos e citações.
         Juntamente com os afazeres jornalísticos, Faustino cursou a Faculdade de Direito, abandonando-a no terceiro ano, período em que mereceu uma bolsa de estudos do ‘Institute of International Education’ para estudar Teoria Literária e literatura norte-americana, no Pomona ‘College, Claremont’, nos Estados Unidos, onde viveu dois anos. Em 1955, publicou seu primeiro e único livro de poemas, ‘O Homem e sua Hora’, mudando-se no ano seguinte para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como professor-assistente na ‘Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas’- FGV. Tornou-se editorialista do ‘Jornal do Brasil’, assinando nesse suplemento dominical, a página ‘Poesia-Experiência’, dedicada exclusivamente à reflexão sobre a tradição, a teoria e a prática poéticas, principalmente sobre o concretismo, grande foco ao tempo, onde ganhou notoriedade.
         Em fins de 1959, decepcionado com os rumos tomados pelo suplemento, desistiu da militância literária e passou a dedicar-se exclusivamente à redação e ao editorial do jornal. Com a interrupção da página, surgiram várias propostas de trabalho no país, mas Mário optou pelo posto de jornalista no ‘Departamento de Informação da Organização das Nações Unidas’ [ONU], em Nova York, entre 1960 e 1962; de retorno ao Brasil, assumiu, por curto período, o cargo de editor-chefe da ‘Tribuna da Imprensa’, logo vendido para o próprio Jornal do Brasil..
         Vejamos Mário Faustino nesse ‘Soneto’, publicado em ‘Os melhores poemas’, 2ª ed. São Paulo, Global, 1988:

SONETO
“Necessito de um ser, um ser humano
que me envolva de ser
contra o não ser universal, arcano
impossível de ler
à luz da lua que ressarce o dano
cruel de adormecer
a sós, à noite, ao pé do desumano
desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu braço
escuro e palpitante
necessito de um ser dormente e lasso
contra meu ser arfante:
necessito de um ser sendo ao meu lado
um ser profundo e aberto, um ser amado”.

         Em ‘Alma que Foste Minha’, publicado em ‘Antologia Poética’, Faustino transcende a beleza imagística:

ALMA QUE FOSTE MINHA
“Alma que foste minha,
desprendida de meu corpo e de meu espírito,
leque de palma sem raízes, sem tormentas
que gênero esta noite te distingue,
que metro te organiza, por que dogmas,
que signos te orientam — rumo a quê?
— Mestre, qual é o sexo das almas? Desmarcada e sem cordas
alma que foste minha
sem cravos e sem espinhos
que trigo milenar te mata a fome divina
que pirâmide encerra tua essência nudíssima
que corpo te defende de ti mesma do espaço
que idade, quantas eras, contra o tempo alma anárquica
desmarcada e sem cravos
sem precisão de estar
ou de ficar
— Que te vale Bizâncio?
ou de mudar
ou de fazer, ou de ostentar
 — Que te vale este verso?
apoética, absurda
como chamar-te alma, de quê, quando.
para quê, alma de morto, para onde?”
Poeta Mário Faustino e capa do seu livro
          Em ‘Vida Toda Linguagem’, Mário, grande poeta que o era e com total domínio do verso e do idioma, mergulha no universo lírico-sintático e apura essa essência do verbo, enfeixado em 'Antologia Poética’:

VIDA TODA LINGUAGEM
“Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há, entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjectivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará — oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sémen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem —
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem,
nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la eterna — como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
a vida que é perfeita
língua eterna”.

         Por fim, ouçamos o poeta em ‘Viagem’, publicado no livro ‘Poesia’, em 1966, poema integrante da série ‘Esparsos e Inéditos’. Terá sido este poema o ‘Canto de Cisne’ de Mário Faustino a prever o que iria acontecer quando sobrevoava os Andes?

VIAGEM
“Apago a vela, enfuno as velas: planto
um fruto verde no futuro, e parto
de escuna virgem navegante, e canto
um mar de peixe e febre e estirpe farto —
e ardendo em festas fogo-embalsamadas
amo em tropel, corcel, centauramente,
entre sudários queimo as enfaixadas
fêmeas que me atormentam, musamente —
e espuma desta vaga danço e sonho
com címbalo e símbolos, harmônio
onde executo a flor que em mim se embebe,
centro e cetro, curvando-se ante a sebe
divina — a própria morte hoje defloro
e vida eterna engendro: gero, adoro”.

         Ou neste ‘Romance’, publicado em 'Antologia Poética'? Talvez tenha sido este o canto derradeiro de Mário Faustino:

ROMANCE
“Para as Festas da Agonia
vi-te chegar, como havia
sonhado já que chegasses:
vinha teu vulto tão belo
em teu cavalo amarelo,
anjo meu, que, se me amasses,
em teu cavalo eu partira
sem saudade, pena, ou ira;
teu cavalo, que amarraras
ao tronco de minha glória
e pastava-me a memória,
feno de ouro, gramas raras.
era tão cálido o peito
angélico, onde meu leito
me deixaste então fazer,
que pude esquecer a cor
dos olhos da Vida e a dor
que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
tão fino o Anjo, e a Besta
onde montei tão serena,
que posso, Damas, dizer-vos
e a vós, Senhores, tão servos
de outra Festa mais terrena —
não morri de mala sorte,
morri de amor pela Morte”.

         Além de seu único livro O HOMEM E SUA HORA, Faustino traduziu Ezra Pound e Robert Stock para o português.

         “Com os Andes não se brinca”, escreveu um dia Dom Pablo Neruda, amigo querido de Mário Faustino, e foi justamente lá, a sobrevoar as neves eternas, que o homem viu sua hora e não chegou ao seu destino. O poeta infelizmente estava naquele último ‘Voo 810, da Varig’.
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Fernando Braga, in ‘Toda prosa’, antologia de textos do autor.
Ilustração: Capa do livro com foto do poeta Mário Faustino.

Texto final:
Raimundo Fontenele

2 comentários:

  1. Raimundo Fontenelle, meu poeta, acabo de ganhar o dia pela generosidade das tuas palavras a meu respeito contidas no 'nariz de cera' deste trabalho sobre o fantástico poeta piauiense Mário Faustino... Sigamos fazendo nossa parte por mais que nos pareça pouca. Belíssima tua página! Beijos n'lama do Fernando Braga"

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  2. Sem dúvida, que o nosso solo é terra fértil de vultosos e célebres dons como esses magníficos textos relatam! A nossa literatura não seria a mesma sem a contribuição de nossos patrícios. Obrigada Fontenelle e tantos outros, obrigada!

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