17 de jan. de 2019

SÃO DOMINGOS REVISITADA


          Voltamos com o nosso FOLHETIM DA SEMANA do nosso blog  LITERATURA LIMITE (acesse-o no link www.literaturalimite.blogspot.com.br), com uma novidade neste ano de 2019: o segundo livro sobre minhas memórias conectadas à história de São Domingos.
         SÃO DOMINGOS REVISITADA é o título da obra que deve ser editada e lançada ainda este ano, e vamos nesta página do nosso blog oferecendo aos leitores saborosos aperitivos dessa obra que poderá ser degustada posteriormente in  totum.

RECORDANDO UM AMIGO
      Convivi com o padre Manoel da Penha Oliveira durante vários anos, quase diariamente. Primeiro como sacristão, nos meus 12 anos de idade, viajando por todos os povoados de São Domingos, onde ele rezava missa, casava e batizava. Achava bom, pois, gozando saúde, todo menino é um pouco guloso. E o padre era muito bem tratado. Sempre faziam bolos, matavam gordos capões, saborosos assados, doces variados. Era uma festa para o meu estômago.
      E depois, como amigo, durante sua campanha política, e nos anos seguintes, em São Luís, onde sempre visitava-o em sua residência ou na Assembléia. E mais tarde, ao encontrá-lo aqui por São Domingos, em sua casa na Consolação, com o seu inseparável piano.
      Sempre preocupado com a Educação, padre Manoel chegando em São Domingos deparou-se com uma triste realidade. Com exceção dos filhos da família Torres, dos filhos do meu tio e padrinho Raimundo Almeida, do senhor João Henrique, seu Álvaro Bezerra, seu Antoizinho Rodrigues, da família Cazé e mais uns poucos, a maioria dos pais não podiam custear os estudos de seus filhos fora de São Domingos.
      Havíamos terminado o primário. Para que não ficássemos sem estudar, e esperando pelo milagre da providência divina, ele criou um Curso de Exame de Admissão, um curso preparatório para ingressarmos no ginásio. Era uma prática escolar àquela época. Ficamos estudando e talvez por que tenha notado minha inteligência e interesse pelos estudos, falou com meus pais sobre a possibilidade de mandarem-me para um seminário para seguir os seus passos, ou seja, tornar-me padre.
      Imaginem. Padre Raimundo Fontenele. Só rindo. Aceitei o convite, minhas tias convenceram minha mãe a deixar-me partir e em janeiro de 1962, graças ao Padre Manoel, lá fui eu, levado pelo meu pai, o “grande” Ribinha, com destino a São Luís e lá ingressei no Seminário de Santo Antônio onde só permaneci um ano.
      No fim de 1962, após um balanço da minha vida no seminário naquele ano, os padres chegaram à conclusão que eu não devia permanecer lá. Eu tinha acumulado vários pontos no quesito matérias. Fui o melhor aluno, com as notas mais altas, após uma disputa com um aluno de nome Ribamar, de Pedreiras.
      Mas pesavam contra mim notas baixas no comportamento ou disciplina. Porém, nada de grave. Faltinhas, molecagens, brincadeiras, pequenas rebeldias. Tipo ficar imitando os padres, sentando na cadeira do professor, lá na frente da turma, imitando o padre dizendo a missa, etc., e, ou era flagrado por um padre, ou então sempre existem aqueles dedos-duros, fofoqueiros, o popular fuxiqueiro.
      Resolveram me desligar do seminário. Mas São Domingos pertence à Diocese de Caxias, e aqui entra o caráter humanitário do Padre Manoel, além de caxiense era muito admirado pelo bispo dom Luiz Gonzaga Marelim, o chefe da Diocese. Pois ele conseguiu que eu tivesse uma segunda chance e, assim, fui transferido para o Seminário da Prainha, em Fortaleza.
      Fosse outro, o padre Manoel simplesmente lavaria as mãos como Pilatos e eu que fosse cuidar da minha vida. Mas, não. Quando ele assumia um compromisso ele ia até o fim. Corresse o risco que corresse. Era um homem de caráter forte, decidido. E lutava por aquilo em que acreditava.
      Enquanto isso, padre Manoel resolveu fazer da Educação em São Domingos o seu segundo grande apostolado. O primeiro era a Igreja. O segundo era a Escola. Assim, criou a Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino, tornando-se, cada vez mais, empenhado no desenvolvimento espiritual de seu rebanho adulto e a cuidar com zelo e amor do ensino e da educação da juventude são-dominguense.
      Esta Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino foi o embrião de outra, a futura Escola Pio XII, responsável pela formação de tantos jovens que se tornariam mais tarde, médicos, advogados, engenheiros, enfermeiros, enfim, ilustres cidadãos são-dominguenses.
      Os nomes das Escolas: uma homenageava um dos grandes doutores da Igreja, filósofo e teólogo da maior importância no desenvolvimento e formulação da doutrina da Igreja Católica: São Tomás de Aquino que era, junto com Santo Ambrósio e Santo Agostinho, a trindade de doutores da Igreja Católica muito admirada pelos estudiosos desse ramo da religião cristã. A Escola Pio XII tomou esse nome em homenagem ao Papa Pio XII, cujo pontificado vai de 1939 até sua morte em 1958.
      Entretanto, falando em Educação, em nome de escolas, não podemos esquecer o espírito, a alma, a coisa mais importante, aquilo sem o qual a Educação não existe, que são os professores e professoras.
      Por isso cito aqui, pedindo desculpas pelos lapsos de memória, aqueles mestres e mestras que nunca esqueci e que construíram a base educacional de São Domingos. Sejam professoras particulares ou professores do ensino público.
      Minha tia Lizeth Fontenele Almeida, dona Judith Torres, pioneiras do ensino em nosso município. Minha tia Nini, professora particular e a dona Zilda, a professora Maria Luiza Brandão, professora Edelves, as irmãs colinenses, professoras Delza e Elza, Dona Olga, professora Edelves, o dublê de caminhoneiro e professor, José Alberto, a professora Eunice, seu Zé Carlos, primeiro gerente da Pernambucana em São Domingos e sua esposa, ótima professora de português. Esses os nomes que me vieram à mente ao escrever estas reminiscências.
      O ano de 1963, passei-o quase todo no Seminário da Prainha, em Fortaleza. Em outubro daquele ano fui desligado de vez do Seminário. Era muito mais rígido do que o Seminário de São Luís. Sofri muito, por ser ainda novo, filho único, longe de casa, não me sentia integrado, acho que os padres não iam com a minha cara.
      Enfim, me aconselharam a sair, uma forma mais branda do que expulsão, visto que eu não havia cometido nenhuma falta grave.
      Enquanto isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em São Domingos, dedicado à Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a todos, resolvendo problemas de toda sorte, confortando e consolando todos que lhe procuravam, se interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa comunidade.
      Desligado do seminário, para a igreja e para alguns padres a gente passa a ser um proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz de se adaptar ao rebanho.
      Tanto que, quando o reitor me chamou em sua sala para me comunicar a minha dispensa, já estava com minha passagem de volta comprada, mas só até Teresina. Depois eu que me virasse.
      Mesmo sendo menor, havia recém completado quinze anos, naquele tempo não havia essa preocupação de juizado de menor, de não poder viajar sem acompanhamento, o certo é que dois dias depois peguei o ônibus da Empresa Expresso de Luxo, Fortaleza-Teresina, e me mandei de lá, mais ansioso de gozar a liberdade do que preocupado com a reação da família e do próprio padre Manoel.
      Naquele início dos anos sessenta na maioria das cidades nordestinas não havia esse negócio de rodoviária. Chegando em Teresina, desci do ônibus na Agência que ficava na Praça Saraiva, peguei minha maleta e saí procurando onde passar a noite.
      Numa ruazinha ali mesmo perto da Praça descobri um Hotel, coisa simples, onde ficaria hospedado. A dona chamou um empregado pra ir me mostrar o quarto, e o cara era um pretinho homossexual, maranhense de São Luís, e se mostrou disposto a conversar.
      Eu já tinha decidido que ia aproveitar um pouco a liberdade antes de chegar em casa. E perguntei pra ele sobre as novidades. Ele disse que era um show do cantor cubano Bievenido Granda, um cantor de boleros, tangos e ritmos cubanos. Por portar um grande bigode, no cartaz que anunciava seus shows, após seu nome, acrescentavam “El bigode que canta”!
      Sua música Perfume de Gardênia era um sucesso em toda a América Latina, inclusive em todo o território brasileiro. Falei para o carinha do hotel arranjar uma amiga que a gente ia assistir o show no dia seguinte. Eu pagava tudo. Tinha um pouco de dinheiro, e um relógio da marca “Hernavin”, novo em folha, que eu entreguei pra o camareiro do hotel vender para nós.
      Não apenas o show, mas fiquei uns três dias aproveitando a vida e gastando a grana da venda do relógio, e quando dei um balanço vi que o dinheiro mal dava para comprar passagem até Caxias.
      De Teresina pra Caxias é um pulo, e eu cheguei à Casa Paroquial na Praça São Benedito na hora do café da manhã. Os responsáveis pela paróquia eram os monsenhores Clóvis e Gilberto e, conforme disse antes, quando a gente é dispensando do seminário passa a ser olhado com outros olhos.
      Fui tratado friamente pelos monsenhores, senti como se eles me dissessem “olha, a gente não tem mais nenhuma obrigação para contigo, te vira!”, pois nem para o café me convidaram.
      Pedi para deixar minha maleta ali que em seguida voltaria para buscá-la, e me danei a bater pernas pelas ruas, com os pensamentos mais sombrios agora me acossando e me dando um aperto no coração. Praticamente expulso do seminário, sem saber como enfrentar pais e tios, envergonhado perante o padre Manoel, e, o pior, faminto e sem um tostão no bolso.
      Naquela aflita caminhada fui parar na beira do rio Itapecuru e até pensei como seria bom se aquelas águas me levassem e acabassem com todo aquele sofrimento. Mas a fome falou mais alto.
      Caminhei até a Praça do Mercado, cheia de movimento, de caminhoneiros, de gente andando apressada pra lá e pra cá. Resolvi entrar numa lanchonete e comer e depois, sem dinheiro para pagar, sair no pinote, correndo mesmo e fosse o Deus quisesse. E foi o que fiz.
      Comi um pastel e uma fatia de bolo e fiquei bebericando o resto do café com leite, devagar, devagarinho, criando coragem pra pegar o embalo e correr dali e daquela situação deveras vexatória, humilhante. Nem sei direito os sentimentos que me afligiam tantos e tão diversos eram.
      O certo é quando cheguei no limite do suportável, coloquei a xícara no balcão e comecei a tomar impulso pra me pírulitar dali, quando, mandado por Deus, vejo entrando na lanchonete um conhecido, amigo do meu pai, o senhor Zuca da Totonha. Ele era caminhoneiro, casado com dona Totonha irmã da dona Alvina e da dona Santana do Sebastião Mota.
      Joguei-me nos braços do seu Zuca, até alguma lágrima deve ter rolado, e lhe contei rapidamente minha situação. Ele disse que não me preocupasse, ele ia carregar o carro e depois ia para São Domingos. Nem acreditei. Salvo, eu estava salvo, meu coração agora pulava de alegria. Até esqueci que tinha caído fora do colégio e isso era mais uma bronca a enfrentar.
      Ele pagou a minha despesa e disse que ia ficar ali mesmo na Praça do Mercado e eu fui à casa dos padres buscar minha maleta, saí excomungando-os mentalmente.
De volta à Praça do Mercado, encontrei seu Zuca ao lado do caminhão que estava terminando de ser carregado com produtos vários, tais como açúcar, sabão, querosene, café, óleo e outros que seriam revendidos no comércio são-dominguense.
      Almoçamos uma galinha ao molho pardo num desses restaurantes populares, depois refrigerante, cafezinho, tudo pago pelo santo homem e, em seguida, pegamos a estrada para São Domingos.
      Entrei em casa sobressaltado, mas fui logo dando a real para a minha mãe que, apesar de brava, era muito compreensiva, e me lembro que ela disse que se era para ser um padre sem vocação, quer dizer um mau sacerdote, era melhor ter saído.
         E acho que ela ficava também contente em me ter perto dela, mãe a gente sabe como é, e além do mais eu era filho único, apesar de ter uma irmã de criação, registrada como filha, a Gracinha, que Deus também levou em 2014, como já levara meu pai em 1987 e minha mãe em 2011.

(Continua no próximo Folhetim, com novas aventuras e episódios que marcaram a vida da nossa cidade).

Texto final:
Raimundo Fontenele

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