Entre os anos de
1994 e 2012 escrevi e publiquei apenas quatro livros de poemas. Destes, três
pertencem ao que chamei de A Trilogia do
Inferno e são eles: Venenos, Marginais e Amores. Refletem anos de andar em círculos, muitas vezes perdido
num mundo agressivo e estranho, mas eu mesmo tantas vezes estranho, agressivo e
autodestrutivo. Foi uma longa jornada com passagens terríveis, cômicas,
trágicas, ridículas. Fiz e vivi tudo. Mas era meu destino sobreviver e chegar
neste ano da graça de 2016, esperando agosto, quando farei 68 anos de
experiências, que, se não me tornaram um homem bom, pelo menos me fizeram mais
humano. Escolhi 9 poemas, para publicar aqui nesta coluna, 3 de cada um dos três
livros que compõem essa Trilogia mais
que maldita, no velho conceito do maudit
francês. Boa leitura, amigos e companheiros desta jornada terrena.
Do livro Venenos:
PRA LÁ DE DOIM
tomemos
um itinerário qualquer
mares
do sul
fronteiras
do Mato Grosso:
a
gente só vê autopistas de sangue
barzinhos
decrépitos na beira das estradas
índios
“aculturados” vagam
e
ficam sentados em sacas de arroz
bebendo
pinga
cuspindo
no chão
a
gente sacava as gurias servindo nos restaurantes
loucas
pra darem uma trepada genial
com
um cara que as amasse cem por cento
e
nós ali de bobeira
na
esquina do Maranhão com o Pará
o
céu tão nítido e baixo parecia cair sobre nós
mas
nas rodoviárias é só muamba assaltos
também,
tanto faz
no
mar raivoso se é mais feliz
aqui
fora há sempre alguém
empunhando
uma arma contra nossa cabeça
(escondido
de si com seu silêncio
o
mano estava chapado chapado
era
um rubi e era uma lesma
aquilo
nos seus olhos)
de
noite voltava para o quarto
um
brilho faiscando na noite
um
pôster de Monique Evans
um
Picasso cubista
garrafas
de vinho&vodca&cerveja&cachaça vazias
um
baseado apagado
o
mais é tesão pelo ar
orgias
sadomasô aqui e agora
muito
louco de pó
calientes
orgasmos Messalinas e tus
tomemos
um itinerário qualquer
onde
o tédio não seja tanto
andarilhos
sacávamos tudo
aquilo
ali é uma vila
vive
cheia de bandidos, prostitutas,
bebuns,
caras degenerados, sei
se
pudessem seriam reis papas governadores
Doim
Doim, planeta dos adversos
rasgo
e raspo meu couro com giletes
sabonetes
existem para isso
perfume
depois do horror
tomemos
um itinerário qualquer
etc.
etc...
VOYAGE
ó
meu divino algoz
inumano
daqui me vou
às
paragens mais bíblicas:
Tietê,
Cafarnaum, Inferno
vou-me
sem
papas na língua ou freio nos dentes
só as mãos em concha
só
as mãos
só
elas
depois
na viagem perdi as sementes
paisagem
é coisa veloz
um
ônibus sem passageiros
descendo
ou subindo a Serra do Mar
lagos
de mar sol
luz
intensa brilhando
rios
que descem serras
assim
sumiu minha vida
(acompanhar
a leitura com a música Cavalaria Rusticana é um barato)
O
TOTEM
guardião
de palavras, sim
rebanhos
não se guardam
rebanhos
se desgarram
o
totem
o
tabu em tudo que se toca
a
mulher barbada
o
metade isso, o metade aquilo
os
anéis a gente perde
a
Flauta de Pã não era tudo
um
bicho verdadeiro
não
ouve certos apelos
é
feroz e pronto.
Chove.
Há
dois Bonfins: o de Deus
e
este aqui.
Do
livro Marginais
O
ESTRANGEIRO
Eu
nunca li os contos de Pablo Picasso,
nunca
vi a Estrela de Davi.
Sou
um poeta menor
desses
que se cata às tontas.
E
sou um homem comum
desses
que se manda à merda.
Vim
comigo, e só,
pregar
nos desertos.
Lugar
nenhum é meu.
Nem
em mim, nem nos outros.
E
tudo que ouço é música:
a
bastarda dos sentidos.
Perto
de um paraíso alheio,
tão
longe do meu inferno.
Estrangeiro,
estrangeiro.
OH,
JOANA D´ARC, QUE CHAMAS
Corpo
de mulher por dentro queimando.
Cristã,
eu?; filha de Deus, vivo por arder
amando.
Vivo
por amar ardendo,
com
este rosário de ferro e ponta
no
centro do coração,
fervendo.
Fogueira
nenhuma queima mais do que eu.
Brasas
onde ajoelho, olhos turvos, te vendo.
Virgem
louca e santa, e pura de coração,
represento.
Partes
do fogo azul,
labaredas
vermelhas,
cinzas
sobem aos céus
para
assinar este quadro de Fra Angelico.
FONTENELLE,
O ÚLTIMO DOS MOICANOS
Fontenelle
era um poeta francês
feito
em várias cidades do mundo
e
morto em São Domingos do Maranhão.
Viveu
mais de trinta vidas em Fortaleza
Curitiba
São Luís Brasília
Vitória
do Mearim Balneário Paris Camboriú
Porto
Alegre
em
todas elas à margem de tudo
e
às margens do Guaíba bebeu fel.
Ah,
aquelas tardes no Parque Barigui!
Chegou
ferido na cidade de Pelotas,
chegou
babando em São Luís
vestido
de I-Juca Pirama
“cercado
de troncos – coberto de flores”,
mas
isto nem é vida.
Bruxo
nas horas vagas
Fontenelle
vestiu-se de monge pagão
numa
tarde de domingo
e
saiu pela Idade Média a passear:
um
dia, desiludido e barbudo,
saiu-se
a cavaleiro do Rei Arthur,
o
da mesa quadrada.
Amou
e beijou mulheres,
árabe
em Roma mendigo no deserto
todo
ele uma lágrima cristalina
no
olho do furacão
álcool,
hóstias, cigarros,
chás
caseiros, um bom vinho,
vícios,
vidros, vidas.
Fontenelle
foi visto no Carnaval de 1980
no
Balneário Camboriú
na
esquina das avenidas Atlântica com Brasil
de
costas para o mar.
Havia
uma oficina conspirando dentro de si
louca
para manifestar-se
quebrar
as estruturas
estar
presente nas constelações celestes
como
uma estrela negra, passageira,
vestígios
de algum maio de 68.
Além
do que esse tal de Fontenelle
Poderia
ser o último dos moicanos
dos
canelas dos punks
dos
drogados dos evangélicos
dos
loucos dos santificados
o
último membro de qualquer tribo
ou,
quem sabe,
o
último dos últimos sobre a terra.
Do
livro Amores
LOUCO
POR VOCÊ
Amo
você por é tarde
e
o sol está luzindo.
Amo
você por amar as estrelas,
amor
de chocolate,
e
o amor de suas unhas, doces, pintadas.
Amo
você porque sou cego de nascença,
não
posso andar nas trevas
e
a lua e a rua de mim se afastam.
E
amo você porque amo você.
Amo
você e sua carne trêmula
porque
temo , não sei nadar,
a
vida é breve e bem de leve
toquei
em seus cabelos.
Louco
por você
e
se você fosse uma borboleta
ou
uma faca no coração, amaria você,
pois
eu amo você das seis às dezoito
e
das dezoito às seis,
com
o mesmo entusiasmo
e
sem regras e sem leis,
louco
louco louco por você.
Amor
você porque o seu amor é dez.
Uma
imagem de santa e flores
com
pássaros dentro do ouvido ,
e
os seus dentes, e o não sei quê,
e
o seu umbigo.
Pude
ver a marca nos quadris,
o
rubor da face, a estima, os outros predicados,
o
amor e a amargura, a paixão,
e
a delícia da primeira vez.
Pude
ver o amor de frente e ferir-me:
sabes
o Juca Mulata? A lua e as mandingas?
E
mesmo assim amo mais (sofro mais?)
Não
sei e não quero saber.
Sei
que estou louco quando sinto
la
noche com SUS estrellas
açoitarme
por dentro.
Subir
por seus ombros,
andar
pela casa guardada do seu corpo,
tropeçar
em móveis,
agitar-me
em seus cômodos e segredos.
Ser
aquele rapaz de 20
ou
este cara de 60
nas
ruas que andamos.
Você,
uma pérola e tanto,
Você,
minha luz e quebranto.
Amo
você assim mesmo louco
todos
os dias e de vez em quando.
Louco
por você
Louco
por você
Louco
por você
SONETO
8
Nem
preciso dizer o que o seu amor
fez
comigo este ano: está na cara.
Revolveu-me
como se faz com a raiz
e
me deixou mais triste, mas feliz.
Amar
e segredar com sua boca,
usar
seus dentes, ser doido por um triz,
deixar
que essa paixão, que é tão louca,
seja
a doçura do doce que provei
quando
na tarde de algum domingo
ela
era um favo de mel quando a beijei.
Amor
avaro, ó Eros da beleza,
rimas
a minha vida com a tua.
E
eu, sozinho, caminho por aqui
com
os pés no chão, e a cabeça na lua.
AMOR
FINAL
E
então voltou o amor da madureza,
iluminou
todo o meu passado.
Sobra
de frutos, que farta é a natureza
para
quem nela entra desgarrado.
Desde
Homero, Ovídio, Dante,
os
poetas amaram loucamente.
Os
infantes terríveis, beatniks,
e
entre nós os Andrades e Souzândrade.
Também
saí dessa terra firme
pata
perder-me em labirintos de Minotauros.
E,
mesmo na mais profunda dor,
Do
amor não tive asco,
que
esse é mais difícil que os perfumes raros.
Descer
até ali
foi
como mergulhar desesperado
no
escuro da pedra,
nenhuma
Beatriz para guiar-me.
Tábuas
da salvação:
contêm
leis, regras, regulamentos.
tábuas
na correnteza dos rios,
tábuas
de passar, tábuas da promissão,
tábua-palmatória.
Távola
Redonda,
Imensas
mesas para a tradição posar.
Isto
é amar, e não saber explicar.
Meus
dias em Antares,
na
balsa com Ulisses,
as
noites cheias de neve
nas
estepes urbanas e geladas
como
naquele filme do Tema de Lara.
Lobos,
arranquem esta lua do coração!
Sonhar
contigo todos os dias
e
viver pensando: a vida
é
só quimera?, num rio antigo
com
as magias do Egito?
Nem
faraós ou sábios
decifrarão
enigmas
ou
transarão com Esfinges.
Amar
é sonhar com isso.
Raimundo
Fontenele
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