24 de fev. de 2016

A TRILOGIA DO INFERNO




Entre os anos de 1994 e 2012 escrevi e publiquei apenas quatro livros de poemas. Destes, três pertencem ao que chamei de A Trilogia do Inferno e são eles: Venenos, Marginais e Amores. Refletem anos de andar em círculos, muitas vezes perdido num mundo agressivo e estranho, mas eu mesmo tantas vezes estranho, agressivo e autodestrutivo. Foi uma longa jornada com passagens terríveis, cômicas, trágicas, ridículas. Fiz e vivi tudo. Mas era meu destino sobreviver e chegar neste ano da graça de 2016, esperando agosto, quando farei 68 anos de experiências, que, se não me tornaram um homem bom, pelo menos me fizeram mais humano. Escolhi 9 poemas, para publicar aqui nesta coluna, 3 de cada um dos três livros que compõem essa Trilogia mais que maldita, no velho conceito do maudit francês. Boa leitura, amigos e companheiros desta jornada terrena.



Do livro Venenos:


PRA LÁ DE DOIM

tomemos um itinerário qualquer
mares do sul
fronteiras do Mato Grosso:
a gente só vê autopistas de sangue
barzinhos decrépitos na beira das estradas
índios “aculturados” vagam
e ficam sentados em sacas de arroz
bebendo pinga
cuspindo no chão
a gente sacava as gurias servindo nos restaurantes
loucas pra darem uma trepada genial
com um cara que as amasse cem por cento
e nós ali de bobeira
na esquina do Maranhão com o Pará
o céu tão nítido e baixo parecia cair sobre nós
mas nas rodoviárias é só muamba assaltos
também, tanto faz
no mar raivoso se é mais feliz
aqui fora há sempre alguém
empunhando uma arma contra nossa cabeça
(escondido de si com seu silêncio
o mano estava chapado chapado
era um rubi e era uma lesma
aquilo nos seus olhos)
de noite voltava para o quarto
um brilho faiscando na noite
um pôster de Monique Evans
um Picasso cubista
garrafas de vinho&vodca&cerveja&cachaça vazias
um baseado apagado
o mais é tesão pelo ar
orgias sadomasô aqui e agora
muito louco de pó
calientes orgasmos Messalinas e tus
tomemos um itinerário qualquer
onde o tédio não seja tanto
andarilhos sacávamos tudo
aquilo ali é uma vila
vive cheia de bandidos, prostitutas,
bebuns, caras degenerados, sei
se pudessem seriam reis papas governadores
Doim Doim, planeta dos adversos
rasgo e raspo meu couro com giletes
sabonetes existem para isso
perfume depois do horror
tomemos um itinerário qualquer
etc. etc... 
  

VOYAGE

ó meu divino algoz
inumano daqui me vou
às paragens mais bíblicas:
Tietê, Cafarnaum, Inferno
vou-me
sem papas na língua ou freio nos dentes
 só as mãos em concha
só as mãos
só elas
depois na viagem perdi as sementes
paisagem é coisa veloz
um ônibus sem passageiros
descendo ou subindo a Serra do Mar
lagos de mar sol
luz intensa brilhando
rios que descem serras
assim sumiu minha vida

(acompanhar a leitura com a música Cavalaria Rusticana é um barato)


O TOTEM

guardião de palavras, sim
rebanhos não se guardam
rebanhos se desgarram

o totem
o tabu em tudo que se toca
a mulher barbada
o metade isso, o metade aquilo

os anéis a gente perde
a Flauta de Pã não era tudo
um bicho verdadeiro
não ouve certos apelos
é feroz e pronto.

Chove.
Há dois Bonfins: o de Deus
e este aqui.



Do livro Marginais

O ESTRANGEIRO

Eu nunca li os contos de Pablo Picasso,
nunca vi a Estrela de Davi.
Sou um poeta menor
desses que se cata às tontas.
E sou um homem comum
desses que se manda à merda.
Vim comigo, e só,
pregar nos desertos.
Lugar nenhum é meu.
Nem em mim, nem nos outros.
E tudo que ouço é música:
a bastarda dos sentidos.
Perto de um paraíso alheio,
tão longe do meu inferno. 
Estrangeiro, estrangeiro.

OH, JOANA D´ARC, QUE CHAMAS

Corpo de mulher por dentro queimando.
Cristã, eu?; filha de Deus, vivo por arder
amando. 
Vivo por amar ardendo,
com este rosário de ferro e ponta
no centro do coração,
fervendo.

Fogueira nenhuma queima mais do que eu.
Brasas onde ajoelho, olhos turvos, te vendo.
Virgem louca e santa, e pura de coração,
represento.

Partes do fogo azul,
labaredas vermelhas,
cinzas sobem aos céus
para assinar este quadro de Fra Angelico.


FONTENELLE, O ÚLTIMO DOS MOICANOS

Fontenelle era um poeta francês
feito em várias cidades do mundo
e morto em São Domingos do Maranhão.

Viveu mais de trinta vidas em Fortaleza
Curitiba São Luís Brasília
Vitória do Mearim Balneário Paris Camboriú
Porto Alegre
em todas elas à margem de tudo
e às margens do Guaíba bebeu fel.
Ah, aquelas tardes no Parque Barigui!

Chegou ferido na cidade de Pelotas,
chegou babando em São Luís
vestido de I-Juca Pirama
“cercado de troncos – coberto de flores”,
mas isto nem é vida.

Bruxo nas horas vagas
Fontenelle vestiu-se de monge pagão
numa tarde de domingo
e saiu pela Idade Média a passear:
um dia, desiludido e barbudo,
saiu-se a cavaleiro do Rei Arthur,
o da mesa quadrada.

Amou e beijou mulheres,
árabe em Roma mendigo no deserto
todo ele uma lágrima cristalina
no olho do furacão
álcool, hóstias, cigarros,
chás caseiros, um bom vinho,
vícios, vidros, vidas.

Fontenelle foi visto no Carnaval de 1980
no Balneário Camboriú
na esquina das avenidas Atlântica com Brasil
de costas para o mar.
Havia uma oficina conspirando dentro de si
louca para manifestar-se
quebrar as estruturas
estar presente nas constelações celestes
como uma estrela negra, passageira,
vestígios de algum maio de 68.

Além do que esse tal de Fontenelle
Poderia ser o último dos moicanos
dos canelas dos punks
dos drogados dos evangélicos
dos loucos dos santificados
o último membro de qualquer tribo
ou, quem sabe,
o último dos últimos sobre a terra.




Do livro Amores

LOUCO POR VOCÊ

Amo você por é tarde
e o sol está luzindo.

Amo você por amar as estrelas,
amor de chocolate,
e o amor de suas unhas, doces, pintadas.

Amo você porque sou cego de nascença,
não posso andar nas trevas
e a lua e a rua de mim se afastam.
E amo você porque amo você.

Amo você e sua carne trêmula
porque temo , não sei nadar,
a vida é breve e bem de leve
toquei em seus cabelos.

Louco por você   
e se você fosse uma borboleta
ou uma faca no coração, amaria você,
pois eu amo você das seis às dezoito
e das dezoito às seis,
com o mesmo entusiasmo
e sem regras e sem leis,
louco louco louco por você.

Amor você porque o seu amor é dez.
Uma imagem de santa e flores
com pássaros dentro do ouvido ,
e os seus dentes, e o não sei quê,
e o seu umbigo.

Pude ver a marca nos quadris,
o rubor da face, a estima, os outros predicados,
o amor e a amargura, a paixão,
e a delícia da primeira vez.

Pude ver o amor de frente e ferir-me:
sabes o Juca Mulata? A lua e as mandingas?
E mesmo assim amo mais (sofro mais?)

Não sei e não quero saber.
Sei que estou louco quando sinto
la noche com SUS estrellas
açoitarme por dentro.

Subir por seus ombros,
andar pela casa guardada do seu corpo,
tropeçar em móveis,
agitar-me em seus cômodos e segredos.

Ser aquele rapaz de 20
ou este cara de 60
nas ruas que andamos.
Você, uma pérola e tanto,
Você, minha luz e quebranto.
Amo você assim mesmo louco
todos os dias e de vez em quando.

Louco por você
Louco por você
Louco por você   



SONETO 8

Nem preciso dizer o que o seu amor
fez comigo este ano: está na cara.
Revolveu-me como se faz com a raiz
e me deixou mais triste, mas feliz.
Amar e segredar com sua boca,
usar seus dentes, ser doido por um triz,
deixar que essa paixão, que é tão louca,
seja a doçura do doce que provei
quando na tarde de algum domingo
ela era um favo de mel quando a beijei.
Amor avaro, ó Eros da beleza,
rimas a minha vida com a tua.
E eu, sozinho, caminho por aqui
com os pés no chão, e a cabeça na lua.



AMOR FINAL

E então voltou o amor da madureza,
iluminou todo o meu passado.
Sobra de frutos, que farta é a natureza
para quem nela entra desgarrado.

Desde Homero, Ovídio, Dante,
os poetas amaram loucamente.
Os infantes terríveis, beatniks,
e entre nós os Andrades e Souzândrade.

Também saí dessa terra firme
pata perder-me em labirintos de Minotauros.
E, mesmo na mais profunda dor,
Do amor não tive asco,
que esse é mais difícil que os perfumes raros.

Descer até ali
foi como mergulhar desesperado
no escuro da pedra,
nenhuma Beatriz para guiar-me.

Tábuas da salvação:
contêm leis, regras, regulamentos.
tábuas na correnteza dos rios,
tábuas de passar, tábuas da promissão,
tábua-palmatória.
Távola Redonda,
Imensas mesas para a tradição posar.
Isto é amar, e não saber explicar.    

Meus dias em Antares,
na balsa com Ulisses,
as noites cheias de neve
nas estepes urbanas e geladas
como naquele filme do Tema de Lara.
Lobos, arranquem esta lua do coração!

Sonhar contigo todos os dias
e viver pensando: a vida
é só quimera?, num rio antigo
com as magias do Egito?
Nem faraós ou sábios
decifrarão enigmas
ou transarão com Esfinges.
Amar é sonhar com isso.


Raimundo Fontenele

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