Um dedo de prosa
Com a iminência desse país virar
uma podridão pior que a Venezuela de Chaves e a Cuba dos irmãos Castro, só me
resta tentar consolar-me com a literatura. Isto enquanto não chega o dia 30
para voltarmos às ruas, desta vez inflamados de indignação e de revolta. Vamos
parar o Brasil com a uma Greve Geral.
Nesta quarta feira trago para
vocês o mestre italiano Giovanni Boccaccio, escritor que retratou os usos e
costumes da sociedade italiana, aí pelo século XIV,
Boccaccio nasceu em 1313 e morreu
em 1375. Foi poeta, prosador e humanista de grande força, tendo influenciado
(como Petrarca) toda a literatura europeia. Pode ser considerado como um dos
pion eiros da arte de “contar estórias”. Sua obra de maior vulto é mesmo o Decameron, que se constitui de cem
novelas divididas em dez jornadas, conforme indica a palavra grega que dá nome
à obra.
Poético algumas vezes, outras
irreverente, satírico, amargo, otimista, amoroso e cruel, todas essas
personalidades são notadas em suas prodigiosas narrativas que comprovam o
invulgar talento do escritor.
Numa época cheia de salamaleques,
metalinguagens, neoconcretismo, obras abertas e outros modismos, nada melhor do
que ler um clássico como Boccaccio, para quem basta a memória e a imaginação,
além do seu dom natural, para se escrever uma boa história. Com toda a
simplicidade deixar fluir as aventuras próprias da alma humana e de que é feito
o nosso cotidiano: amor, sexo, ódio, traição, vingança, perdão, e muita
sacanagem como nos atestam os últimos acontecimentos da política brasileira.
“Pobre vai pra cadeia. Ladrão vira ministro” (escritor Lula da Silva).
A seguir, uma das saborosas e
picantes novelas de Boccaccio: (RF)
O SALTÉRIO DA ABADESSA
Existe na Lombardia um mosteiro
famoso por sua santidade e pela austeridade da regra que aí observam. Uma
mulher, chamada Isabel, que aliava a nobreza à formosura, habitava-o havia
algum tempo, quando, certo dia, um de seus parentes foi vê-la na grade em
companhia de um amigo, que era jovem e elegante. A monja percebeu-o e desde
esse momento sentiu-se loucamente apaixonada. Uma feliz simpatia agiu sobre o
coração do rapaz, e ele não ficou mais insensível aos encantos de Isabel, do
que ela aos dele. Mas durante longe tempo não obtiveram deste mútuo amor outros
frutos senão os tormentos da privação.
Entretanto, como ambos só pensavam
nos meios de se verem e de se reunirem, o jovem, mais fecundo em recursos,
achou um expediente seguro para introduzir-se furtivamente na cela de sua
amada. Todos dois, igualmente radiantes por tão venturoso descobrimento,
desforraram a prolongada espera, e gozaram por muito tempo sua felicidade, sem
que fossem perturbados. Mas por fim a fortuna traiu os seus prazeres: Isabel
possuía demasiados encantos, e seu amante era excessivamente guapo, para que
ela não se visse exposta aos ciúmes das outras religiosas. Várias delas
espiavam todas as suas ações, e desconfiando da intriga, quase não a perdiam de
vista. Em determinada noite, uma freira, sem ser notada, viu sair o cavalheiro
de sua cela, e comunicou a descoberta a algumas outras. Resolveram todas denunciar
a companheira à superiora. Chamada Madre Usimbalda, e que passava no espírito
da totalidade das monjas, e de quem quer que a visse, pela bondade e santidade
em pessoa. A fim de que não recusassem seu testemunho, e para que a culpada não
o pudesse recusar, combinaram fazer de maneira que a abadessa deparasse a
freira deitada com seu amante.
Decidido este projeto, cada qual
por seu lado montou guarda, se pôs à escuta com o intuito de surpreender a
pobre enamorada, que vivia na maior despreocupação. Uma noite em que ela fizera
vir o amante, as pérfidas sentinelas o viram entrar em seu quarto. Longe de
fazerem barulho, elas lhe dão tempo para desfrutar os prazeres do amor, e
dividem-se em dois grupos: um vigia o aposento de Isabel, o outro corre ao da
abadessa. Batem à porta, exclamando: “Vinde depressa, senhora, correi: a irmã
Isabel está com um rapaz no quarto”. A esta algazarra, a estes gritos, a superiora,
assustada e receando que por demasiado entusiasmo as freiras arrombassem a
porta e descobrissem em seu leito um padre que com ela o partilhava, e que com
o auxílio de um cofre ela introduzira no convento, levantou-se às pressas,
vestiu-se o melhor que pôde, e pensando cobrir a cabeça com um véu denominado
saltério, cobriu-se com as calças do padre. E assim grotescamente paramentada –
o que não foi notado pelas monjas, por demais preocupadas – berrava devotamente
a superiora: “Onde está essa maldita filha de Deus?”, chegam a sua porta,
arrombam-na, entram, e encontram os dois amantes nos braços um do outro. O
espanto, o embaraço os imobilizam. Mas as freiras, furiosas, arrebatam sua
jovem colega, e, por ordem da priora, a conduzem ao capítulo. O rapaz continua
na cela, vestiu-se e quis aguardar o desenlace da aventura, firmemente
resolvido a vingar-se, nas que pudesse apanhar, dos maus tratos que sua querida
sofresse, no caso de não a respeitarem, e decidido a raptá-la e fugir com ela.
Madre Usimbalda chega ao capítulo
e toma o seu lugar. Todas as religiosas lá se acham, com os olhos fixos na
pobre Isabel. Principia a abadessa a sua repreensão, que ela condimenta com as
mais picantes injúrias, trata a infeliz culpada como uma mulher que, por suas
ações abomináveis, tivesse manchado e sujado a reputação de santidade de que o
mosteiro gozava. Isabel, tímida e envergonhada, guardando o silêncio da culpa,
não ousa levantar os olhos, e seu tocante embaraço inspira piedade às suas
próprias inimigas. A priora continua sempre suas invectivas, e a monja, como
que animada pelo excesso de tal assomo, atreve-se a levantar os olhos, pousa-os
na cabeça da superiora e vê as calças do sacerdote pendurada de um lado. Essa
visão a reconforta.
– Madre – diz-lhe então – que Deus venha em
vosso auxílio; dizei-me tudo quanto vos aprouver, mas, por favor, endireitai vossa
coifa.
A abadessa, que nada compreendia
daquelas palavras, perguntou:
– De que coifa estás a falar,
descarada? Tens a audácia de querer zombar de mim? Parece-te que fizeste algo
de engraçado?
– Madre, ainda uma vez, dizei-me
tudo quanto quiserdes, mas, suplico-vos, endireitai a vossa coifa.
Este pedido singular, repetido com
afetação, fez volverem-se todos os olhares para a prelada, e decidiu-a por fim
levar a mão à cabeça. Viu-se então por que falara Isabel daquela maneira. A
abadessa, desconcertada, e sentindo que era impossível disfarçar sua aventura,
mudou de linguagem e concluiu seu discurso fazendo ver quanto era difícil opor
uma contínua resistência aos agulhões da carne. E tão doce naquele instante,
quanto a princípio se mostrara severa, permitiu a suas ovelhas que
continuassem, como tinham feito até aquele dia, a aproveitar todas as ocasiões
de se divertirem em segredo; e voltou para seus aposentos, depois de perdoar
Isabel. Esta foi de novo para junto de seu amigo, fê-lo retornar diversas
vezes, e foi muito feliz a despeito da inveja das suas irmãs.
Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele
Nenhum comentário:
Postar um comentário