É
o seguinte: a primeira vez que ouvi esta expressão neomalditismo foi quando o
poeta Jamerson Lemos chegou com este papo:
– É, poeta, sabes como é!... O negócio é ser
poeta neomaldito.
E realmente havia saído uma
antologia da poesia francesa assim denominada: os novos malditos. Pertenciam à
herança cultural que nos legaram Villon, Baudelaire, Verlaine e o genial
Rimbaud.
Isso
era no Maranhão dos anos sessenta e nove e eu estava embalado pelo sonho de
também me tornar poeta, pois, apesar da pouca idade, já havia tentado de tudo
para encaminhar-me profissionalmente na vida, e sempre dera com os burros
nágua.
O
poeta pernambucano Jamerson Lemos viera de Recife com seu pai, o Sr. Lemos,
corretor imobiliário e em São Luís se estabeleceram. Seu pai enviuvara, era
isso, e lhe dava uma mesada com a qual o poeta resolvia as necessidades mais
prementes.
Na
Praça Deodoro a gente se reunia, uma patota de malucos, pra queimar um fumo e
jogar conversa fora. O Cafeteira, quando prefeito, fizera na praça uma espécie
de arena, com vários degraus, a qual chamávamos de Senado. Foi ali que vi o
poeta Jamerson pela primeira vez. Parou, deu uns pegas num baseado, fomos
apresentados um ao outro e fiquei de lhe mostrar alguns poemas meus.
Lembro
que no nosso próximo encontro, quando lhe mostrei alguns poemas ele disse: “ainda
és um poeta verde”, mas me incentivou deveras. Ele já havia publicado seu
primeiro livro de poesia, o Superfície do
Vento, bem recebido pela crítica e leitores. Fora também membro da Academia
Maranhense dos Novos, movimento de fôlego curto e vida efêmera, que contara
com, entre outros, o poeta Fernando Braga, hoje radicado em Brasília.
Poesia
enxuta, liberta, sem máculas estéticas, herdeira da tradição da grande poesia greco-latina,
mas que trazia em si os signos contemporâneos, com uma dicção poética própria,
inaugurando tudo que é novo, na forma e no conteúdo, com um estilo original e
único.
E
o poeta em si, um andarilho, um inconformado, avesso a qualquer tipo de
trabalho e de ação que burocratiza, robotiza e nos torna secos e vazios, de fé
e de alma, de consciência e renovação constante, mudanças, transmutações
psíquicas e experimentação essencial na busca do ser que somos, embora nunca
saibamos o quê, nunca estejamos onde devíamos estar. E por isso a busca. E por
isso o andarilho incansável dentro de si mesmo, que era isso que o saudoso
Jamerson Lemos era e foi. O caminhante fazedor de caminhos.
Um
dia o poeta meteu na cabeça que devia levar uma mala cheia de maconha de São
Luís pra Recife. Com o dinheiro publicaria seu novo livro. Era uma boa grana.
Coitado, quando desceu no aeroporto na capital pernambucana a polícia já o
esperava. Ele nunca me disse como, mas alguém havia dedurado. O poeta amargou
seis meses na prisão de Itamaracá.
Voltou
pra São Luís apenas para uma breve passagem e mudou-se para Tersina onde viveu
até 2008, quando faleceu, prematuramente, aos 63 anos de idade. Falo
prematuramente porque certos amigos nós gostaríamos que fossem iguais a
Matusalém.
Jamerson
Lemos é um poeta único no panorama da poesia brasileira. Sem mídia, isolado
numa região atrasada e esquecida como sempre foi o nordeste brasileiro durante
muitos anos, sua poesia se iguala à melhor poesia publicada no Brasil a partir
dos anos 70.
O
Jamerson que conheço é esse: um maldito como eu, segundo a tradição poética francesa
do que esta palavra significa. É o gauche de Drummond. O deslocado, o que não
se adapta a uma sociedade medíocre, desalmada, empobrecida pela burrice e a
hipocrisia. E assim nos acostumamos a navegar no barco ébrio, navio negreiro
dos apátridas como nós para quem o porto seguro está longe, não existe, ou é só
miragem.
A
seguir o poeta Jamerson Lemos visto do ponto de vista formal, na biografia
homenagem que lhe dedica o escritor piauiense Francisco Miguel de Moura. E
cinco momentos da mais alta e inventiva poesia que, felizmente, frutificou
entre nós (RF).
JAMERSON LEMOS – BIOGRAFIA
Por Francisco Miguel de Moura
Jamerson
Moreira de Lemos nasceu em Recife (PE), em 22-12-1945 e faleceu recentemente em
Teresina (5-8-2008). Filho de José Batista Moreira de Lemos e Ornila
Moreira de Lemos. Poeta, deixando sua terra, viveu alguns
anos em São Luís (MA), onde certamente se contaminou com a boa poesia daquela
Província iluminada, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, pra não falar nos
mais novos. Tanto é verdade que o seu primeiro livro foi editado pelo Governo
do Maranhão, com a participação da Academia Maranhense de Letras, no final da
década de 60, século XX. Sempre o parto do primeiro livro é longo, por vários
fatores que não cabe aqui explicar. Não poderia ser diferente com Jamerson
Lemos. Saiu com o nome da “Superfície do Vento”, 1968, seleção de um calhamaço
que me mostrara antes, com o título provisório de “Cerca de Arame”. Depois
publicaria ainda “Sábado Árido” (1985) e “Nos Subúrbios do Ócio” (1996), ambos
em Teresina. Deixou muitos inéditos, entre os quais “Istmo Soledad”, ao qual
dei um prefácio já publicado aqui e alhures, situando sua poesia e seu fazer
poético entre os melhores cultores da poesia-práxis, uma corrente derivada do
concretismo, cujos poetas brasileiros mais conhecidos são Mário Chamie, Armando
Freitas Filho, Mauro Gama e Adailton Medeiros (este natural de Caxias-MA). Esse
modo de fazer poesia valoriza o ato racional de compor e busca um sentido
intercomunicante entre versos e palavras, tudo integrado ao real quotidiano,
objetivo, ou seja, o dado social-histórico vai de braços dados com a poesia e a
pesquisa semântica ou semiológica. Quem mais se celebrizou neste “sertão-vereda”
foi o João Cabral de Melo Neto, pernambucano como Jamerson Lemos. A preocupação
maior com letras, sílabas e palavras do que com o espaço em branco ou preto da
página faz da poesia de Jamerson um antilirismo que a muitos preguiçosos
assusta. Mas, se bem observada, sua poesia é de um apaixonado das coisas belas,
dos sentimentos mais puros e da riqueza na expressão, num estilo que parece
desinteressado da vida e do real, deixando visível a veia do bom humor em todos
os poemas.
A
poesia-práxis é do Brasil dos anos 60. O CLIP – Circulo Literário Piauiense,
movimento daquela década, de certa forma enquadra bem a poesia deste poeta que
entrou para a convivência dos clipianos. Se do CLIP não fez parte oficialmente,
foi por ter chegado ao Piauí pouco depois. Mas, de tal maneira integrou-se aos
criadores do CLIP (Hardi Filho, Chico Miguel e Herculano Moraes), que seria
pecado não incluí-lo nessa geração cujos efeitos ainda ressoam.
Casado
com dona Maria das Dores de Morais Lemos, funcionária dos Correios já aposentada,
Jamerson Lemos deixa órfãos seus dois filhos: Juninho e Ceres Josiane.
Duas
vidas: uma, a familiar e sentimental como poucos; outra, a profissional, onde
se desdobra para conciliar o vendedor de imóveis com o poeta. Reconhece
Alberoni Lemos que não foi fácil ao poeta Jamerson Lemos. Daí que é impossível
saber bem de sua poesia sem o conhecimento do homem, que se dizia descendente
de judeu, em seus conflitos filosóficos e existenciais – acrescenta o grande
homem de imprensa, Alberoni Lemos.
(in
“O Estado”. 04-10-87, Teresina, PI).
5
POEMAS DE JAMERSON LEMOS
ARMADILHA
a música escorre pela noite
como
estreito regato.
Igualmente
minha mente
escorre
pela noite.
isso
ou aquilo, antes, depois,
uma
rua tortuosa,
pequena
cidade a ferver
distante.
quanto
tempo fui tolo?
a
música escorre pela noite,
pulsa
como um coração.
DO MOVIMENTO À NOUTE
O mistério da espuma do mar
é não haver mistério algum.
Fundo longilíneo
maravilhoso o mar não se sabe um
convite à morte ao amor à
vida. Há mistério, há?
A espuma do mar longe de ser algo
incógnito, transcendental, flora
estrelinhas nas algas, águas,
sargaços e areia, namora
da luz às conchas, à lua minguante
e permanente se renova.
Do mar o mistério da espuma
inexiste – bolhitas ou escumas –
existe o mistério à bruma
de noite à noute uma a uma
a onda virada serpente
engole a solidão da gente.
NAS RUAS
não
mais voltarei aqui
seguirei
as curvas do vento
tentar
não tendo
assim
eu me perdi
nada
do que vi vi
nisso
me acalento
foi
bom todo momento
vivi
subida
descida
noite
amanhecida
espuma
do Mar
tempo
sem bruma
lua
me luma
ar
SONETO DA TERÇA
quando
você se entristece
uma
coisa qualquer se me entrista.
um
gole de rum a mais que eu insista
é
coisa pouca e você não esquece.
quando,
porém, se nada teça
vida
minha e pobre de artista
você
me toca e me diz: desista
meu
bom amor, amo-te na terça.
muito
bem, tento-te de novo
alma
de pombo, espírito de corvo,
sobras-te-me
na estação.
volvo-me
a ti amor em praia,
soluço
de sol, sal de caia –
da
casa, só a luz e verão.
UM SONETO
vou fazer pra você um soneto
rimado, consoante o seu
olhar
de avenca e musgo do
pomar —
mestiço escuro noturno
preto.
um soneto solto, lírico
no ar,
pétala-ninfa, luz no
alto-mar,
lâmpada azul a clarear do
teto
à cama —
lâmpada-luz-objeto.
Pra você e esses seus
cabelos.
belos.
Pra você.
um soneto rimado de
sorrisos,
pequenina barca — S.O.S.
Estou nu, Vê?
Pesquisa
e texto final:
Raimundo
Fontenele
Comentário do poeta Carlos Soares:
"Vai, Jamerson, ser gauche na vida", frase do mineiro Drummond de Andrade autoreferindo-se, cabe feito uma luva ao caso do poeta pernambucano, pelo tipo de vida que teve e foi. Poeta maldito? Neomaldito? Creio que não. Creio que todos os poetas, mesmo os "malditos", são benditos. E isso por um fato muito simples: o jornalista Roberto Rech, ao noticiar a publicação do livro de poesia ANTOLOGIA POÉTICA IMPUBLICADA, de Carlos Soares (Imprensa Livre Editora, Porto Alegre, 1995), disse: "Certamente, agradará a todos, menos os tiranos de plantão e os invejosos incompetentes. Os primeiros, segundo Armando Valladares, `não toleram e odeiam os poetas por que são as vozes deles que se erguem e denunciam suas infâmias'. Os segundos, porque são energúmenos de nascença. E assim permanecerão até o fim dos tempos..." Dono de uma poesia simples, mas não simplória, como podemos constatar - pelo menos nos versos exemplares trazidos no artigo de Raimundo Fontenele - Jamerson não teve os ofuscantes holofotes da glória literária voltados para ele, nem o apreço dos vendilhões da crítica, nem sequer - talvez - o seu "minuto de fama", mas uma coisa ele obteve com sucesso: viveu a vida que quis viver, escolheu seu caminho com os próprios pés, e manteve-se firme diante das vergonhosas escórias do poder que a tudo compra, corrompe e destrói no mais íntimo de sua pureza: a dignidade de ser fiel a si mesmo! Carlos Soares, em Porto Alegre, 24/03/2016.
Comentário do poeta Carlos Soares:
"Vai, Jamerson, ser gauche na vida", frase do mineiro Drummond de Andrade autoreferindo-se, cabe feito uma luva ao caso do poeta pernambucano, pelo tipo de vida que teve e foi. Poeta maldito? Neomaldito? Creio que não. Creio que todos os poetas, mesmo os "malditos", são benditos. E isso por um fato muito simples: o jornalista Roberto Rech, ao noticiar a publicação do livro de poesia ANTOLOGIA POÉTICA IMPUBLICADA, de Carlos Soares (Imprensa Livre Editora, Porto Alegre, 1995), disse: "Certamente, agradará a todos, menos os tiranos de plantão e os invejosos incompetentes. Os primeiros, segundo Armando Valladares, `não toleram e odeiam os poetas por que são as vozes deles que se erguem e denunciam suas infâmias'. Os segundos, porque são energúmenos de nascença. E assim permanecerão até o fim dos tempos..." Dono de uma poesia simples, mas não simplória, como podemos constatar - pelo menos nos versos exemplares trazidos no artigo de Raimundo Fontenele - Jamerson não teve os ofuscantes holofotes da glória literária voltados para ele, nem o apreço dos vendilhões da crítica, nem sequer - talvez - o seu "minuto de fama", mas uma coisa ele obteve com sucesso: viveu a vida que quis viver, escolheu seu caminho com os próprios pés, e manteve-se firme diante das vergonhosas escórias do poder que a tudo compra, corrompe e destrói no mais íntimo de sua pureza: a dignidade de ser fiel a si mesmo! Carlos Soares, em Porto Alegre, 24/03/2016.
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