24 de mar. de 2016

JAMERSON LEMOS, O POETA-INVENTOR

É o seguinte: a primeira vez que ouvi esta expressão neomalditismo foi quando o poeta Jamerson Lemos chegou com este papo:
             – É, poeta, sabes como é!... O negócio é ser poeta neomaldito.
            E realmente havia saído uma antologia da poesia francesa assim denominada: os novos malditos. Pertenciam à herança cultural que nos legaram Villon, Baudelaire, Verlaine e o genial Rimbaud.
Isso era no Maranhão dos anos sessenta e nove e eu estava embalado pelo sonho de também me tornar poeta, pois, apesar da pouca idade, já havia tentado de tudo para encaminhar-me profissionalmente na vida, e sempre dera com os burros nágua.
O poeta pernambucano Jamerson Lemos viera de Recife com seu pai, o Sr. Lemos, corretor imobiliário e em São Luís se estabeleceram. Seu pai enviuvara, era isso, e lhe dava uma mesada com a qual o poeta resolvia as necessidades mais prementes.
Na Praça Deodoro a gente se reunia, uma patota de malucos, pra queimar um fumo e jogar conversa fora. O Cafeteira, quando prefeito, fizera na praça uma espécie de arena, com vários degraus, a qual chamávamos de Senado. Foi ali que vi o poeta Jamerson pela primeira vez. Parou, deu uns pegas num baseado, fomos apresentados um ao outro e fiquei de lhe mostrar alguns poemas meus.
Lembro que no nosso próximo encontro, quando lhe mostrei alguns poemas ele disse: “ainda és um poeta verde”, mas me incentivou deveras. Ele já havia publicado seu primeiro livro de poesia, o Superfície do Vento, bem recebido pela crítica e leitores. Fora também membro da Academia Maranhense dos Novos, movimento de fôlego curto e vida efêmera, que contara com, entre outros, o poeta Fernando Braga, hoje radicado em Brasília.
Poesia enxuta, liberta, sem máculas estéticas, herdeira da tradição da grande poesia greco-latina, mas que trazia em si os signos contemporâneos, com uma dicção poética própria, inaugurando tudo que é novo, na forma e no conteúdo, com um estilo original e único.
E o poeta em si, um andarilho, um inconformado, avesso a qualquer tipo de trabalho e de ação que burocratiza, robotiza e nos torna secos e vazios, de fé e de alma, de consciência e renovação constante, mudanças, transmutações psíquicas e experimentação essencial na busca do ser que somos, embora nunca saibamos o quê, nunca estejamos onde devíamos estar. E por isso a busca. E por isso o andarilho incansável dentro de si mesmo, que era isso que o saudoso Jamerson Lemos era e foi. O caminhante fazedor de caminhos.
Um dia o poeta meteu na cabeça que devia levar uma mala cheia de maconha de São Luís pra Recife. Com o dinheiro publicaria seu novo livro. Era uma boa grana. Coitado, quando desceu no aeroporto na capital pernambucana a polícia já o esperava. Ele nunca me disse como, mas alguém havia dedurado. O poeta amargou seis meses na prisão de Itamaracá.
Voltou pra São Luís apenas para uma breve passagem e mudou-se para Tersina onde viveu até 2008, quando faleceu, prematuramente, aos 63 anos de idade. Falo prematuramente porque certos amigos nós gostaríamos que fossem iguais a Matusalém.
Jamerson Lemos é um poeta único no panorama da poesia brasileira. Sem mídia, isolado numa região atrasada e esquecida como sempre foi o nordeste brasileiro durante muitos anos, sua poesia se iguala à melhor poesia publicada no Brasil a partir dos anos 70.
O Jamerson que conheço é esse: um maldito como eu, segundo a tradição poética francesa do que esta palavra significa. É o gauche de Drummond. O deslocado, o que não se adapta a uma sociedade medíocre, desalmada, empobrecida pela burrice e a hipocrisia. E assim nos acostumamos a navegar no barco ébrio, navio negreiro dos apátridas como nós para quem o porto seguro está longe, não existe, ou é só miragem.
A seguir o poeta Jamerson Lemos visto do ponto de vista formal, na biografia homenagem que lhe dedica o escritor piauiense Francisco Miguel de Moura. E cinco momentos da mais alta e inventiva poesia que, felizmente, frutificou entre nós (RF).




JAMERSON LEMOS – BIOGRAFIA
Por Francisco Miguel de Moura

Jamerson Moreira de Lemos nasceu em Recife (PE), em 22-12-1945 e faleceu recentemente em Teresina (5-8-2008). Filho de José Batista Moreira de Lemos e Ornila Moreira de Lemos. Poeta, deixando sua terra, viveu alguns anos em São Luís (MA), onde certamente se contaminou com a boa poesia daquela Província iluminada, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, pra não falar nos mais novos. Tanto é verdade que o seu primeiro livro foi editado pelo Governo do Maranhão, com a participação da Academia Maranhense de Letras, no final da década de 60, século XX. Sempre o parto do primeiro livro é longo, por vários fatores que não cabe aqui explicar. Não poderia ser diferente com Jamerson Lemos. Saiu com o nome da “Superfície do Vento”, 1968, seleção de um calhamaço que me mostrara antes, com o título provisório de “Cerca de Arame”. Depois publicaria ainda “Sábado Árido” (1985) e “Nos Subúrbios do Ócio” (1996), ambos em Teresina. Deixou muitos inéditos, entre os quais “Istmo Soledad”, ao qual dei um prefácio já publicado aqui e alhures, situando sua poesia e seu fazer poético entre os melhores cultores da poesia-práxis, uma corrente derivada do concretismo, cujos poetas brasileiros mais conhecidos são Mário Chamie, Armando Freitas Filho, Mauro Gama e Adailton Medeiros (este natural de Caxias-MA). Esse modo de fazer poesia valoriza o ato racional de compor e busca um sentido intercomunicante entre versos e palavras, tudo integrado ao real quotidiano, objetivo, ou seja, o dado social-histórico vai de braços dados com a poesia e a pesquisa semântica ou semiológica. Quem mais se celebrizou neste “sertão-vereda” foi o João Cabral de Melo Neto, pernambucano como Jamerson Lemos. A preocupação maior com letras, sílabas e palavras do que com o espaço em branco ou preto da página faz da poesia de Jamerson um antilirismo que a muitos preguiçosos assusta. Mas, se bem observada, sua poesia é de um apaixonado das coisas belas, dos sentimentos mais puros e da riqueza na expressão, num estilo que parece desinteressado da vida e do real, deixando visível a veia do bom humor em todos os poemas.
A poesia-práxis é do Brasil dos anos 60. O CLIP – Circulo Literário Piauiense, movimento daquela década, de certa forma enquadra bem a poesia deste poeta que entrou para a convivência dos clipianos. Se do CLIP não fez parte oficialmente, foi por ter chegado ao Piauí pouco depois. Mas, de tal maneira integrou-se aos criadores do CLIP (Hardi Filho, Chico Miguel e Herculano Moraes), que seria pecado não incluí-lo nessa geração cujos efeitos ainda ressoam.
Casado com dona Maria das Dores de Morais Lemos, funcionária dos Correios já aposentada, Jamerson Lemos deixa órfãos seus dois filhos: Juninho e Ceres Josiane.
Duas vidas: uma, a familiar e sentimental como poucos; outra, a profissional, onde se desdobra para conciliar o vendedor de imóveis com o poeta. Reconhece Alberoni Lemos que não foi fácil ao poeta Jamerson Lemos. Daí que é impossível saber bem de sua poesia sem o conhecimento do homem, que se dizia descendente de judeu, em seus conflitos filosóficos e existenciais – acrescenta o grande homem de imprensa, Alberoni Lemos.

 (in “O Estado”. 04-10-87, Teresina, PI).





5 POEMAS DE JAMERSON LEMOS

ARMADILHA

a música escorre pela noite
como estreito regato.
Igualmente minha mente
escorre pela noite.
isso ou aquilo, antes, depois,
uma rua tortuosa,
pequena cidade a ferver
distante.
quanto tempo fui tolo?
a música escorre pela noite,
pulsa como um coração.


DO MOVIMENTO À NOUTE

O mistério da espuma do mar
é não haver mistério algum.
Fundo longilíneo
maravilhoso o mar não se sabe um
convite à morte ao amor à
vida. Há mistério, há?

A espuma do mar longe de ser algo
incógnito, transcendental, flora
estrelinhas nas algas, águas,
sargaços e areia, namora
da luz às conchas, à lua minguante
e permanente se renova.

Do mar o mistério da espuma
inexiste – bolhitas ou escumas –
existe o mistério à bruma
de noite à noute uma a uma
a onda virada serpente
engole a solidão da gente.


NAS RUAS

não mais voltarei aqui
seguirei as curvas do vento
tentar não tendo
assim eu me perdi

nada do que vi vi
nisso me acalento
foi bom todo momento
vivi

subida descida
noite amanhecida
espuma do Mar

tempo sem bruma
lua me luma
ar

SONETO DA TERÇA

quando você se entristece
uma coisa qualquer se me entrista.
um gole de rum a mais que eu insista
é coisa pouca e você não esquece.

quando, porém, se nada teça
vida minha e pobre de artista
você me toca e me diz: desista
meu bom amor, amo-te na terça.

muito bem, tento-te de novo
alma de pombo, espírito de corvo,
sobras-te-me na estação.

volvo-me a ti amor em praia,
soluço de sol, sal de caia –
da casa, só a luz e verão.


UM SONETO

vou fazer pra você um soneto
rimado, consoante o seu olhar
de avenca e musgo do pomar —
mestiço escuro noturno preto.
um soneto solto, lírico no ar,
pétala-ninfa, luz no alto-mar,
lâmpada azul a clarear do teto
à cama — lâmpada-luz-objeto. 
Pra você e esses seus cabelos.
               belos.

Pra você.
um soneto rimado de sorrisos,
pequenina barca — S.O.S.
Estou nu,                             Vê?


Pesquisa e texto final:

Raimundo Fontenele


Comentário do poeta Carlos Soares:

"Vai, Jamerson, ser gauche na vida", frase do mineiro Drummond de Andrade autoreferindo-se, cabe feito uma luva ao caso do poeta pernambucano, pelo tipo de vida que teve e foi. Poeta maldito? Neomaldito? Creio que não. Creio que todos os poetas, mesmo os "malditos", são benditos. E isso por um fato muito simples: o jornalista Roberto Rech, ao noticiar a publicação do livro de poesia ANTOLOGIA POÉTICA IMPUBLICADA, de Carlos Soares (Imprensa Livre Editora, Porto Alegre, 1995), disse: "Certamente, agradará a todos, menos os tiranos de plantão e os invejosos incompetentes. Os primeiros, segundo Armando Valladares, `não toleram e odeiam os poetas por que são as vozes deles que se erguem e denunciam suas infâmias'. Os segundos, porque são energúmenos de nascença. E assim permanecerão até o fim dos tempos..." Dono de uma poesia simples, mas não simplória, como podemos constatar - pelo menos nos versos exemplares trazidos no artigo de Raimundo Fontenele - Jamerson não teve os ofuscantes holofotes da glória literária voltados para ele, nem o apreço dos vendilhões da crítica, nem sequer - talvez - o seu "minuto de fama", mas uma coisa ele obteve com sucesso: viveu a vida que quis viver, escolheu seu caminho com os próprios pés, e manteve-se firme diante das vergonhosas escórias do poder que a tudo compra, corrompe e destrói no mais íntimo de sua pureza: a dignidade de ser fiel a si mesmo! Carlos Soares, em Porto Alegre, 24/03/2016.


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