18 de abr. de 2016

O GUESA ERRANTE, UMA MÍTICA AVENTURA INDÍGENA QUE SOUSÂNDRADE CONSTRUIU PARA SI MESMO

Vejam só: apenas onze anos separam o nascimento de dois dos maiores vates maranhenses e brasileiros, Gonçalves Dias e Sousândrade. Enquanto o primeiro representa uma tradição da poesia nacional, um passo além no caminho da construção do fazer poético no seu tempo e lugar (e talvez por isso, a fama, a glória ainda em vida e que o perpetuou e o situou historicamente na literatura brasileira), o outro é seu contrário, é o espelho inverso, mesmo que a poesia tenha semelhanças com a do poeta caxiense.
Mas o poeta da Quinta da Vitória permaneceu por muito tempo um quase ilustre desconhecido, por conta mesmo de suas prolongadas e constantes ausências dos cenários ideais e permanentes onde a história literária acontecia naqueles instantes, e também pelo corte poético que seu bisturi causava no romantismo da época, em que sua inventiva e milagrosa poesia, carregada de neologismos e alguns símbolos que já apontavam para a modernidade que o viria incensar nos anos sessenta, com a contracultura, o tropicalismo, o concretismo dos irmãos Campos, e outros quejandos que tais, não sendo, pois, simplesmente a poesia do tempo presente, mas já apontava para o futuro e em muitas direções.
Semelhança no nascedouro, na formação de conteúdos líricos, na influência do índio como um valor de coisa concreta a ser trabalhada como presença material do verso, as corredeiras poéticas dessa fonte singram leitos diferentes. Se em Gonçalves Dias, o índio é tido como um ideal a ser perseguido pelo homem branco, no que ele tem de força, coragem, lealdade, valores humanos de grande dimensão espiritual, em Sousândrade é apenas o mito que fala e se circunscreve no que ele não é como ser, no que ele tem de espoliado e roubado, principalmente pelos espanhóis, na sua cultura, nas suas riquezas, na sua vida, na sua alma, enfim.
Mas é Sousândrade o homenageado deste mês, e continuamos com sua saga poética, agora trazendo trechos do seu Canto Primeiro daquela que é a sua obra prima, O Guesa Errante, composta de 13 cantos, embora alguns tenham ficado inacabados. Guesa significa errante, mas não é redundância chamar-se assim, com uma palavra no nosso idioma que explica a outra em idioma diverso. A essência de ambas é a poesia pura (RF).
Autor de vasta obra, seu trabalho mais importante é fruto de suas viagens, responsáveis pelo contato com realidades diferentes ao redor do mundo. O aspecto que mais o diferencia dos outros poetas brasileiros é a originalidade da sua poesia, principalmente com relação à ousadia de vocabulário com o uso de palavras em inglês e neologismos, bem como de palavras indígenas. Além disso, a sonoridade dos poemas também rompe com a métrica e com o ritmo tradicionais, o que despertou a atenção da crítica literária do século XX.
Seu trabalho, então esquecido, foi resgatado na década de 1960 pela crítica literária, principalmente pelos poetas Haroldo e Augusto de Campos, responsáveis pela análise de sua obra.
Seu poema mais famoso é o Guesa Errante, escrito entre 1858 e 1888, composto por treze cantos e inspirado em uma lenda andina na qual um adolescente, o Guesa, seria sacrificado em oferecimento aos deuses. O índio, porém, consegue fugir e passa a morar em uma das maiores ruas de Nova York, a Wall Street. Os sacerdotes que o perseguiam estão agora transformados em capitalistas da grande cidade de Nova Iork e ainda querem o sangue do Guesa, que vê o capitalismo consollidado como uma doença.
Dotada de pinceladas autobiográficas, o Guesa Errante denuncia o drama dos povos indígenas à exploração dos povos europeus.

 

Folga, imaginação divina! Os Andes
Vulcânicos elevam os cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando — que espetáculos grandes!

Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja

Rugindo a tempestade; onde, deserto
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
No seio a palpitar do céu aberto,

Coração vivo! — Nos jardins da América
Infante adoração dobrou sua crença
Ante o belo sinal, que a nuvem ibérica
Em sua noite envolveu ruidosa e densa.

Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heróis vencedores do inocente
Índio nu, quando os templos incendeiam,
Já sem virgens, sem ouro reluzente,

Sem as sombras dos reis filhos de Manco,
Viu-se (que tinham feito? E pouco havia
A fazer-se.....) num leito puro e branco
A corrupção, que os braços estendia!

E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruído. Como ensangüentada
A terra fez sorrir o céu sereno!

Foi tal a maldição dos que caídos
Morderam a face dessa mãe querida
A contrair-se aos beijos denegridos,
Que o desespero imprime ao fim da vida,

Que ressentiu-se, verdejante e válido,
O floripondio cem flor; e quando o vento
Mugindo estorce-o, doloroso e pálido,
Gemidos se ouvem no amplo firmamento!

E o sol que resplandece na montanha
As noivas não encontra, não se abraçam
No puro amor e os fanfarrões d’Espanha,
Em sangue edêneo os pés lavando, passam.

Caiu a noite da nação formosa;
Gervais romperam por nevado armento,
Quando com a ave a corte deliciosa
Festejava o purpúreo nascimento.

II
Assim volvia a olhar o Guesa Errante
As meneiadas cimas, como altares
Do gênio pátrio, que a ficar distante
Voa a alma beijar além dos ares.

E, enfraquecido o coração, perdoa
Pungentes males que lhe deram os seus,
Talvez feridas setas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.
..................................................................
(Poeteiro Editor Digital)
Pesquisa e texto fina:l

Raimundo Fontenele

Um comentário: