Vejam só:
apenas onze anos separam o nascimento de dois dos maiores vates maranhenses e
brasileiros, Gonçalves Dias e Sousândrade. Enquanto o primeiro representa uma tradição
da poesia nacional, um passo além no caminho da construção do fazer poético no
seu tempo e lugar (e talvez por isso, a fama, a glória ainda em vida e que o
perpetuou e o situou historicamente na literatura brasileira), o outro é seu
contrário, é o espelho inverso, mesmo que a poesia tenha semelhanças com a do
poeta caxiense.
Mas o poeta da
Quinta da Vitória permaneceu por muito tempo um quase ilustre desconhecido, por
conta mesmo de suas prolongadas e constantes ausências dos cenários ideais e
permanentes onde a história literária acontecia naqueles instantes, e também
pelo corte poético que seu bisturi causava no romantismo da época, em que sua
inventiva e milagrosa poesia, carregada de neologismos e alguns símbolos que já
apontavam para a modernidade que o viria incensar nos anos sessenta, com a
contracultura, o tropicalismo, o concretismo dos irmãos Campos, e outros
quejandos que tais, não sendo, pois, simplesmente a poesia do tempo presente,
mas já apontava para o futuro e em muitas direções.
Semelhança no
nascedouro, na formação de conteúdos líricos, na influência do índio como um
valor de coisa concreta a ser trabalhada como presença material do verso, as
corredeiras poéticas dessa fonte singram leitos diferentes. Se em Gonçalves
Dias, o índio é tido como um ideal a ser perseguido pelo homem branco, no que
ele tem de força, coragem, lealdade, valores humanos de grande dimensão
espiritual, em Sousândrade é apenas o mito que fala e se circunscreve no que
ele não é como ser, no que ele tem de espoliado e roubado, principalmente pelos
espanhóis, na sua cultura, nas suas riquezas, na sua vida, na sua alma, enfim.
Mas é
Sousândrade o homenageado deste mês, e continuamos com sua saga poética, agora
trazendo trechos do seu Canto Primeiro daquela que é a sua obra prima, O Guesa
Errante, composta de 13 cantos, embora alguns tenham ficado inacabados. Guesa
significa errante, mas não é redundância chamar-se assim, com uma palavra no
nosso idioma que explica a outra em idioma diverso. A essência de ambas é a poesia
pura (RF).
Autor de vasta
obra, seu trabalho mais importante é fruto de suas viagens, responsáveis pelo
contato com realidades diferentes ao redor do mundo. O aspecto que mais o
diferencia dos outros poetas brasileiros é a originalidade da sua poesia,
principalmente com relação à ousadia de vocabulário com o uso de palavras em
inglês e neologismos, bem como de palavras indígenas. Além disso, a sonoridade
dos poemas também rompe com a métrica e com o ritmo tradicionais, o que
despertou a atenção da crítica literária do século XX.
Seu trabalho,
então esquecido, foi resgatado na década de 1960 pela crítica literária,
principalmente pelos poetas Haroldo e Augusto de Campos, responsáveis pela
análise de sua obra.
Seu poema mais
famoso é o Guesa Errante,
escrito entre 1858 e 1888, composto por treze cantos e inspirado em uma lenda
andina na qual um adolescente, o Guesa, seria sacrificado em oferecimento aos
deuses. O índio, porém, consegue fugir e passa a morar em uma das maiores ruas
de Nova York, a Wall Street. Os sacerdotes que o perseguiam estão agora
transformados em capitalistas da grande cidade de Nova Iork e ainda querem o
sangue do Guesa, que vê o capitalismo consollidado como uma doença.
Dotada de
pinceladas autobiográficas, o Guesa Errante denuncia o drama dos povos
indígenas à exploração dos povos europeus.
Folga,
imaginação divina! Os Andes
Vulcânicos
elevam os cumes calvos,
Circundados de
gelos, mudos, alvos,
Nuvens
flutuando — que espetáculos grandes!
Lá, onde o
ponto do condor negreja,
Cintilando no
espaço como brilhos
D'olhos, e cai
a prumo sobre os filhos
Do lhama
descuidado; onde lampeja
Rugindo a
tempestade; onde, deserto
O azul sertão,
formoso e deslumbrante,
Arde do sol o
incêndio, delirante
No seio a
palpitar do céu aberto,
Coração vivo! —
Nos jardins da América
Infante
adoração dobrou sua crença
Ante o belo
sinal, que a nuvem ibérica
Em sua noite
envolveu ruidosa e densa.
Cândidos Incas!
Quando já campeiam
Os heróis
vencedores do inocente
Índio nu,
quando os templos incendeiam,
Já sem virgens,
sem ouro reluzente,
Sem as sombras
dos reis filhos de Manco,
Viu-se (que
tinham feito? E pouco havia
A
fazer-se.....) num leito puro e branco
A corrupção,
que os braços estendia!
E da existência
meiga, afortunada,
O róseo fio
nesse albor ameno
Foi destruído.
Como ensangüentada
A terra fez
sorrir o céu sereno!
Foi tal a
maldição dos que caídos
Morderam a face
dessa mãe querida
A contrair-se
aos beijos denegridos,
Que o desespero
imprime ao fim da vida,
Que
ressentiu-se, verdejante e válido,
O floripondio
cem flor; e quando o vento
Mugindo
estorce-o, doloroso e pálido,
Gemidos se
ouvem no amplo firmamento!
E o sol que
resplandece na montanha
As noivas não
encontra, não se abraçam
No puro amor e
os fanfarrões d’Espanha,
Em sangue
edêneo os pés lavando, passam.
Caiu a noite da
nação formosa;
Gervais
romperam por nevado armento,
Quando com a
ave a corte deliciosa
Festejava o
purpúreo nascimento.
II
Assim volvia a
olhar o Guesa Errante
As meneiadas
cimas, como altares
Do gênio
pátrio, que a ficar distante
Voa a alma
beijar além dos ares.
E, enfraquecido
o coração, perdoa
Pungentes males
que lhe deram os seus,
Talvez feridas
setas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.
..................................................................
(Poeteiro Editor Digital)
Pesquisa e texto fina:l
Raimundo Fontenele
Maravilhoso!!!
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