Nesta
nossa coluna das quartas-feiras vamos hoje de Carlos Soares, um poeta gaúcho de
quatro costados. Bagual, maragato, e não um chimango desses que fazem versos de
mulherzinha (sem ofendê-las, claro). A poesia do Soares possui essa estranheza
que a torna única e original, tanto nos seus contornos metafóricos quanto
conteudisticamente falando, ou pensando ou escrevendo. Pois, se é para sermos
doidos sejamos doidos por inteiro e não pela metade como o faz a maioria dos
homens. É contra o impeachment porque é a favor da democracia petista. É contra
a corrupção mas gostaria de ver o Sergio Moro na cadeia. É a favor de que se
prenda os ladrões mas quer ver o Lula ministro. De preferência, Ministro da
Justiça pra acabar com a Lava Jato. São a favor de Deus mas acendem vela pro
Diabo.
Com o poeta Carlos Soares não tem gre-gre pra dizer
gregório, não se chama urubu de meu louro e se manda tudo que é vil, vão,
nefasto pra PQP e para o lixo da história. O que é nobre e digno permanece. A
humildade, a bem-aventurança, a solidariedade permanecem. E a sua poesia que é
infinita e ímpar também permanece.
Paráfrase de Vinte Poemas de Amor e Uma Canção
Desesperada de Pablo Neruda, os poemas a seguir do poeta Soares, 4 Poemas de
Desamor e Uma Canção ( Des) Esperada, é o nosso menu recheado de símbolos e
mitos cristãos e humanos:
1
TARDE
esta
tarde escorre pela boca
do
homem separado em núpcias e venenos.
tarde-borboleta-de-segunda-feira.
ovo
de horas e bacilos.
placa
de mudez automotora.
tarde
com seus dentes de afiar
no
coração do homem separado.
esta
tarde escorre pela muita ferocidade
que
tem o homem (em cio?),
pela
inorgânica fluidez de sua túnica:
sua
única lucidez é não chorar.
esta
tarde não existe no jornal
nem
no café que todos fumam e defloram.
ela
está no sangue do homem separado.
com
ele caminha feito um verme automático.
2
ECLESIASTES COTIDIANO
o
homem abriu um buraco em Deus
e
deus entrou dentro do Homem
hoje
elEs se confundem
mas
nunca se fundem
3
COTIDIANO MUNICIPAL
o
prefeito tocava saxofone numa banana
e
piscava de meio em meio século
a
secretária vestia mini-saia de papel
e
coçava o nariz com dinamite
o
porteiro ouvia música no revólver de ouvido
o
poeta que ali passava
achou
melhor não acender seu cigarro siamês
4
CRISTO BIZARRO
(ao catolicismo inoperante)
minha
Missão na Terra é só ululo:
quem
é que me adivinha a pregação?
cristo
de barro que, de pulo em pulo,
não
arrasta ninguém na multidão.
pregador
irritado, sempre fulo,
mastigo
peixes e defeco pão:
minha
Mãe fecundada por um Mulo,
foi
Virgem, sim, numa outra encarnação.
ninguém
me crê: meu povo, convertido,
por
profetas de rock e cocaína,
é
pilatos, é judas, é o bandido.
meu
discípulo fiz essa Menina
que
fornicam ali, atrás da Igreja,
que
construí quando vendi cerveja.
5
A CANÇÃO (DES)
ESPERADA
morrer morrer morrer e ficar vivo
sempre, eternamente vivo, tatuado
em flor,
sentir pelos cabelos o nascer de
um mundo,
de uma cidade, de uma planta sem
fim, ozônica
viver no transparente, entre o bem
e o mal
e não desperdiçar o último beijo
nem a 1a. palavra
ou não tornar a ser sobre essas pétalas
o que ninguém sonhou, nem sonha
mais
viver mais que morrer, queimar em
cheiros
soprar-se ao vento do hoje-amanhã,
cair na eternidade do pão verde de
Deus
da deusa sem cabeça e olhos verdes
morrer mais que viver, aguar os
dedos
com pérolas e olfatos e maçãs
e crer que cada dia é erva e luz
viver viver e viver até que a vida
me percorra
com seu focinho de lantejoula
e abra na noite um túnel só de giz
Pesquisa e edição:
Raimundo
Fontenele
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