Para um jovem poeta, certos livros de poemas são
como as primeiras namoradas de um adolescente. A gente carrega suas lembranças
pela vida afora, e o mais profundo e misterioso é que elas (as lembranças)
agitam o nosso coração, faz-nos sentir aquelas mesmas vibrações de antes, 30,
40, 50 anos depois.
Um desses livros da minha mocidade é o que lhes apresento
hoje na minha coluna Quarta-Feira é dia de RF. Trata-se de Elegias de Duíno, do
poeta Rainer Maria Rilke.
Rilke nasceu no dia 4 de dezembro de 1875, em Praga
(atual capital tcheca), quando a Boêmia integrava o império
austro-húngaro. Sua mãe educou-o dentro
de um rigoroso catolicismo e teve o poeta uma formação cultural essencialmente
germânica. Depois de haver estudado em Linz e Praga, ingressou na Universidade
de Munique, onde estudou história da arte.
Começou a publicar seus livros de poemas a partir
dos 19 anos de idade, sendo o primeiro deles Vida e Canções, seguindo-se alguns
outros considerados menores. Sua primeira grande obra foi O Livro das Horas, ao
qual se juntaram Novos Poemas (1907-1908), a obra prima Elegias de Duíno (1922)
e Sonetos a Orfeu (também de 1922). Porém, seu livro mais famoso, não resta
dúvida, é o Cartas a Um Jovem Poeta, escritas entre 1903 e 1908, mostrando a um
iniciante, o alemão Franz Xaver Kappus, os caminhos do mundo interior do
escritor.
Entre 1902 e 1912 passeia e dá conferências em
vários países europeus, tendo conhecido e se tornado amigo (apaixonado?) da
grande musa de Nietzsche, Lou Salomé, mulher de talento, e bota talento nisso!
Após a Primeira Guerra Mundial fixa residência na Suíça alemã. Alguns meses
depois de publicar seus poemas franceses, fere-se acidentalmente em uma das
mãos. O ferimento agrava a leucemia de que sofria e da qual acaba falecendo em
29 de dezembro de 1926, aos 51 anos de idade, no Sanatório de Valmont. (RF)
A seguir, temos alguns trechos do prefácio de Elegias de
Duíno, do escritor Sérgio Augusto de Andrade, e a Primeira e Terceira Elegias,
numa primorosa tradução de Dora Ferreira da Silva:
“Quando Rainer Maria Rilke começou a escrever suas
elegias no castelo Duíno – uma antiga construção erguida em rochedos sobre o
Mar Adriático, perto de Trieste – a arte estava aprendendo a brincar: era o
destino de Rilke relembrar ao mundo as virtudes da circunspecção. Por mais de
um motivo, seus versos não sorriam com facilidade.
Gloriosamente indiferente ao seu tempo, a poesia de Rilke
era grave, solene e majestosa como mármore grego; enquanto todos pareciam
empenhados em descobrir o lirismo histérico de locomotivas e arranha-céus,
Rilke só se concentrava em inventar anjos. Sua voz soava naturalmente
ancestral: era a voz de um oráculo murmurando segredos sobre a abandono
enquanto sonhava, delirando, sob algum templo perdido. Os segredos de Rainer
Maria Rilke parecem todos reunidos em suas Elegias de Duíno.
É tentador acreditar que o castelo de Duíno tenha
mesmo servido não só para a inspiração de Rilke mas inclusive para a de Dante
Alighieri – que supostamente também teria escrito, em seu interior, parte d´A
Divina Comédia. Talvez seja uma impertinência comparar A Divina Comédia a
rigorosamente qualquer outra criação humana – ou sobre-humana –, mas a verdade
é que, enquanto Dante imaginava um universo irremediavelmente fadado à beatitude,
repleto de luz e de todo tipo de criaturas, seis séculos mais tarde Rilke só
conseguia vislumbrar em seu mundo a noite, a reclusão e o silêncio. Mesmo
assim, fosse situar sua perspectiva sob o compasso da eternidade de Pascal, sua
poesia parecia emanar não de algum centro preciso, mas de toda a
circunferência. Era como se todo o céu estivesse com febre.
O mal-estar de Rilke só não se confundia com o da civilização
porque parecia muito anterior a ela: a bem da verdade, a poesia de Rilke parece
anterior a todos nós. Sua afinidade mais essencial é com as coisas e os
animais: a humanidade não lhe é particularmente preciosa”.
PRIMEIRA ELEGIA
Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?
E mesmo que um
deles me tomasse inesperadamente em
seu
coração,
aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte.
Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que
ainda
suportamos e que admiramos porque,
impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é
terrível. E eu me contenho, pois,
e reprimo o apelo do meu soluço obscuro. Ai, quem
nos
poderia valer? Nem Anjos, nem
homens e o intuitivo
animal
logo adverte , que para nós não há amparo neste mundo
definido. Resta-nos, quem sabe, a árvore de alguma colina,
que podemos rever cada dia; resta-nos a rua de
ontem e o
apego cotidiano de algum hábito que se afeiçoou a nós e
permaneceu. E a noite, a noite, quando o
vento pleno dos
espaços do mundo desgasta-nos a face —
a quem se furtaria
ela, a desejada, ternamente
enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será
mais leve para os que se amam? Ai,
apenas ocultam
eles, um ao outro, seu destino. Não o sabias?
Arroja o vácuo
aprisionado em teus braços para os espaços
que respiramos —
talvez os pássaros sentirão o ar mais
dilatado, num vôo
mais comovido.
Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser
percebidas.
Do passado profundo afluía uma
vaga, ou
quando passavas sob uma janela
aberta,
uma viola d'amore se
abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não
estavas sempre
distraído, à espera, como se
tudo
anunciasse a amada? (Onde
queres abrigá-la,
se grandes e estranhos
pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes,
se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém,
canta as amantes;
ainda não é bastante imortal
sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas
— essas abandonadas
que te pareceram
tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma
infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te:
o herói permanece, sua queda
mesma foi um
pretexto para ser — nascimento supremo.
Mas às amantes,
retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se
as forças lhe faltassem
para realizar duas
vezes a mesma obra.
Com que fervor
lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo
sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada
pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão
afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo
daqueles que amam libertar-se
do
objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim
a flexa ultrapassa a corda, para ser no voo
mais
do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.
Vozes,
vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os
santos ouviam, quando o imenso chamado
os
erguia do chão, eles porém permaneciam ajoelhados,
os
prodigiosos, e nada percebiam,
tão
absortos ouviam. Não que possas suportar
a
voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem
a
incessante mensagem que o silêncio prodiga.
Ergue-se
agora, para que ouças, o rumor
dos
jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas
igrejas de Roma e de Nápoles, não ouvias a voz
de
seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes?
A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O
que pede essa voz? A ansiada libertação
da
aparência de injustiça que às vezes perturba
a
agilidade pura de suas almas.
É
estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar
os hábitos apenas aprendidos,
às
rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não
atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano:
o
que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não
mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como
se abandona um brinquedo partido.
Estranho,
não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver
no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado.
E o estar morto é penoso
e
quantas tentativas até encontrar em seu seio
um
vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o
grande erro de distinguir demasiado
bem.
Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se
caminham entre vivos ou mortos.
Através
das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna
arrasta. E a ambas domina com seu rumor.
Os
mortos precoces não precisam de nós, eles
que
se desabituam do terrestre, docemente,
como
de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos
de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só
através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos
ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música
para lembrar Linos, violentou a rigidez da
matéria
inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase
deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em
vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.
TERCEIRA
ELEGIA
Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai
de mim,
é cantar o culpado e oculto Deus-Rio
do sangue.
Aquele que a amada reconhece de
longe, seu amante, que sabe
ele do Senhor da Volúpia que tantas
vezes o assaltava
em plena solidão, antes que a mulher
amada o abrandasse,
como se nem mesmo ela existisse? Como
o deus emergia
a irreconhecível face gotejante,
invocando a noite
para o delírio infinito! Oh, Netuno
do sangue,
com o hediondo tridente e o vento
obscuro de seu peito,
concha enrodilhada! Ouve como a noite
se escava
e se esvazia. Não se origina em vós,
estrelas, o prazer
que o amante respira no rosto da
amada? A compreensão
[profunda de sua face pura, não a
tomou ele das constelações tranquilas?
Tu não foste, ai, sua mãe não foi,
quem assim
distendeu o arco expectante de suas
sobrancelhas.
Não foi ao teu encontro, jovem terna
e sensível,
que se animaram esses lábios numa
expressão fecunda.
Crês que assim o agitaria teu passo
ligeiro,
ó tu que te moves como a brisa da
manhã?
Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos
terrores nele despertaram a esse
embate.
Chama-o... Não podes arrancá-lo
inteiramente ao
convívio sombrio. Mas ele quer e
se evade; abrandado,
habitua-se à intimidade do teu
coração e toma e se inicia.
Porém, iniciou-se ele alguma vez?
Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o
seu início.
Ele era tão novo... Inclinaste o
mundo amigo
para seus olhos novos e apartaste o
que era estranho.
Onde, onde estão os anos em que tua
forma esbelta
bastava para lhe ocultar o vacilante
caos?
Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão
suspeita
do quarto, tornaste inofensiva; de
teu coração,
refúgio pleno, um espaço mais humano
retiraste,
para uni-lo ao espaço de suas noites.
Não nas trevas,
mas em tua presença mais próxima
pousaste a luz noturna,
como luz de amizade. Nenhum ruído que
não explicasses,
sorrindo, como se há muito soubesses
quando o pavimento
assim se comportava. E ele ouvia,
apaziguado, tal era o poder
da tua suave permanência. Atrás do
armário se ocultava,
num manto enorme, seu destino e as
desordenadas linhas
do futuro inquieto, às dobras da
cortina se amoldavam.
E quando ele jazia, o aplacado, sob
cujas pálpebras sonolentas tua leve
forma
suavemente se perdia, parecia
amparado...
Quem impedia, porém, quem retinha
nas profundezas do seu ser os fluxos
da origem?
Ah, não havia precaução no
adormecido; dormindo,
a sonhar, febril, como se abandonava!
Ele, o novo, o perturbado, como se
enredava
nas garras vegetais do vir-a-ser
interior,
como se emaranhava em primitivas
estruturas, em
formas que fugiam, bestiais,
crescentes
e opressivas! Como ele se entregava!
Amava.
Amava seu mundo interior, caos
selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido,
sobre cujo
silencioso despenhar verde-luz, seu
coração
se erguia. Amava. Abandonado, as próprias
raízes mergulhou
na origem poderosa, onde sobrevivia
seu pequeno nascimento.
Desceu, amando, ao
sangue mais antigo, ao abismo
onde jaz o
Espanto, regurgitado pelos ancestrais.
E cada sobressalto
o reconhecia e acenava, conivente.
Sim, o Horror
sorriu-lhe... Poucas vezes com tal ternura sorriste,
mãe. Como não amaria
ele o que assim lhe sorria? Antes de ti
ele o amou, pois
quando o trazias, estava dissolvido
na água que torna
mais leve a semente.
Não amamos como as
flores, depois de uma
estação: circula
em nossos braços, quando amamos
a seiva imemorial.
Ó jovem, amávamos em nós,
não um ser futuro,
mas o fermento inumerável:
não uma criança,
entre todas, mas os pais,
ruínas de montanhas
repousando em nossas
profundezas; e o
seco leito fluvial das mães
de outrora; e toda
a paisagem silenciosa,
sob o destino puro
ou nebuloso –
eis aqui, jovem, o
que adveio antes de ti.
E tu mesma, que
sabes? Conjuraste
no amado a
pré-história obscura... Que
sentimentos, em
seres desaparecidos agitaste!
Que mulheres,
nele, te odiaram! Que homens
Sombrios em suas
veias jovens despertaste!
Crianças mortas
para ti se volveram...
Oh, retoma diante
dele, docemente,
uma tranquila tarefa
cotidiana – dá-lhe a paz
dos jardins e o
contrapeso das noites...
Retém-no...
Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele
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