7 de abr. de 2016

RAINER MARIA RILKE E SEUS TERRÍVEIS ANJOS DE DUÍNO


Para um jovem poeta, certos livros de poemas são como as primeiras namoradas de um adolescente. A gente carrega suas lembranças pela vida afora, e o mais profundo e misterioso é que elas (as lembranças) agitam o nosso coração, faz-nos sentir aquelas mesmas vibrações de antes, 30, 40, 50 anos depois.
Um desses livros da minha mocidade é o que lhes apresento hoje na minha coluna Quarta-Feira é dia de RF. Trata-se de Elegias de Duíno, do poeta Rainer Maria Rilke.


Rilke nasceu no dia 4 de dezembro de 1875, em Praga (atual capital tcheca), quando a Boêmia integrava o império austro-húngaro.  Sua mãe educou-o dentro de um rigoroso catolicismo e teve o poeta  uma formação cultural essencialmente germânica. Depois de haver estudado em Linz e Praga, ingressou na Universidade de Munique, onde estudou história da arte.
Começou a publicar seus livros de poemas a partir dos 19 anos de idade, sendo o primeiro deles Vida e Canções, seguindo-se alguns outros considerados menores. Sua primeira grande obra foi O Livro das Horas, ao qual se juntaram Novos Poemas (1907-1908), a obra prima Elegias de Duíno (1922) e Sonetos a Orfeu (também de 1922). Porém, seu livro mais famoso, não resta dúvida, é o Cartas a Um Jovem Poeta, escritas entre 1903 e 1908, mostrando a um iniciante, o alemão Franz Xaver Kappus, os caminhos do mundo interior do escritor.
Entre 1902 e 1912 passeia e dá conferências em vários países europeus, tendo conhecido e se tornado amigo (apaixonado?) da grande musa de Nietzsche, Lou Salomé, mulher de talento, e bota talento nisso! Após a Primeira Guerra Mundial fixa residência na Suíça alemã. Alguns meses depois de publicar seus poemas franceses, fere-se acidentalmente em uma das mãos. O ferimento agrava a leucemia de que sofria e da qual acaba falecendo em 29 de dezembro de 1926, aos 51 anos de idade, no Sanatório de Valmont. (RF)
            A seguir, temos alguns trechos do prefácio de Elegias de Duíno, do escritor Sérgio Augusto de Andrade, e a Primeira e Terceira Elegias, numa primorosa tradução de Dora Ferreira da Silva:

            “Quando Rainer Maria Rilke começou a escrever suas elegias no castelo Duíno – uma antiga construção erguida em rochedos sobre o Mar Adriático, perto de Trieste – a arte estava aprendendo a brincar: era o destino de Rilke relembrar ao mundo as virtudes da circunspecção. Por mais de um motivo, seus versos não sorriam com facilidade.
            Gloriosamente indiferente ao seu tempo, a poesia de Rilke era grave, solene e majestosa como mármore grego; enquanto todos pareciam empenhados em descobrir o lirismo histérico de locomotivas e arranha-céus, Rilke só se concentrava em inventar anjos. Sua voz soava naturalmente ancestral: era a voz de um oráculo murmurando segredos sobre a abandono enquanto sonhava, delirando, sob algum templo perdido. Os segredos de Rainer Maria Rilke parecem todos reunidos em suas Elegias de Duíno.
É tentador acreditar que o castelo de Duíno tenha mesmo servido não só para a inspiração de Rilke mas inclusive para a de Dante Alighieri – que supostamente também teria escrito, em seu interior, parte d´A Divina Comédia. Talvez seja uma impertinência comparar A Divina Comédia a rigorosamente qualquer outra criação humana – ou sobre-humana –, mas a verdade é que, enquanto Dante imaginava um universo irremediavelmente fadado à beatitude, repleto de luz e de todo tipo de criaturas, seis séculos mais tarde Rilke só conseguia vislumbrar em seu mundo a noite, a reclusão e o silêncio. Mesmo assim, fosse situar sua perspectiva sob o compasso da eternidade de Pascal, sua poesia parecia emanar não de algum centro preciso, mas de toda a circunferência. Era como se todo o céu estivesse com febre.
O mal-estar de Rilke só não se confundia com o da civilização porque parecia muito anterior a ela: a bem da verdade, a poesia de Rilke parece anterior a todos nós. Sua afinidade mais essencial é com as coisas e os animais: a humanidade não lhe é particularmente preciosa”.
   

PRIMEIRA ELEGIA

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?
E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu
coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte.
Pois que é Belo senão o grau do Terrível que ainda
suportamos que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível. E eu me contenho, pois,
e reprimo apelo do meu soluço obscuro. Ai, quem nos
poderia valer? Nem Anjos, nem homens e o intuitivo animal
logo adverte que para nós não há amparo neste mundo
definido. Resta-nos, quem sabe, a árvore de alguma colina,
que podemos rever cada dia; resta-nos a rua de ontem e o
apego cotidiano de algum hábito que se afeiçoou nós e
permaneceu. a noite, a noite, quando o vento pleno dos
espaços do mundo desgasta-nos a face — a quem se furtaria
ela, a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam? Ai,
apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino. Não o sabias?
Arroja o vácuo aprisionado em teus braços para os espaços
que respiramos — talvez os pássaros sentirão o ar mais
dilatado, num vôo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
uma viola d'amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas — essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser — nascimento supremo.

Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flexa ultrapassa a corda, para ser no voo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão, eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam.  Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem
a incessante mensagem que o silêncio prodiga.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e de Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano:
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lembrar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

  


TERCEIRA ELEGIA

Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai de mim,
é cantar o culpado e oculto Deus-Rio do sangue.
Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe
ele do Senhor da Volúpia que tantas vezes o assaltava
em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse,
como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia
a irreconhecível face gotejante, invocando a noite
para o delírio infinito! Oh, Netuno do sangue,
com o hediondo tridente e o vento obscuro de seu peito,
concha enrodilhada! Ouve como a noite se escava
e se esvazia. Não se origina em vós, estrelas, o prazer
que o amante respira no rosto da amada? A compreensão
[profunda de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranquilas?
Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim
distendeu o arco expectante de suas sobrancelhas.
Não foi ao teu encontro, jovem terna e sensível,
que se animaram esses lábios numa expressão fecunda.
Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro,
ó tu que te moves como a brisa da manhã?
Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos
terrores nele despertaram a esse embate.
Chama-o... Não podes arrancá-lo inteiramente ao
convívio sombrio. Mas ele quer e se evade; abrandado,
habitua-se à intimidade do teu coração e toma e se inicia.
Porém, iniciou-se ele alguma vez?
Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o seu início.
Ele era tão novo... Inclinaste o mundo amigo
para seus olhos novos e apartaste o que era estranho.
Onde, onde estão os anos em que tua forma esbelta
bastava para lhe ocultar o vacilante caos?
Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão suspeita
do quarto, tornaste inofensiva; de teu coração,
refúgio pleno, um espaço mais humano retiraste,
para uni-lo ao espaço de suas noites. Não nas trevas,
mas em tua presença mais próxima pousaste a luz noturna,
como luz de amizade. Nenhum ruído que não explicasses,
sorrindo, como se há muito soubesses quando o pavimento
assim se comportava. E ele ouvia, apaziguado, tal era o poder
da tua suave permanência. Atrás do armário se ocultava,
num manto enorme, seu destino e as desordenadas linhas
do futuro inquieto, às dobras da cortina se amoldavam.
E quando ele jazia, o aplacado, sob
cujas pálpebras sonolentas tua leve forma
suavemente se perdia, parecia amparado...
Quem impedia, porém, quem retinha
nas profundezas do seu ser os fluxos da origem?
Ah, não havia precaução no adormecido; dormindo,
a sonhar, febril, como se abandonava!
Ele, o novo, o perturbado, como se enredava
nas garras vegetais do vir-a-ser interior,
como se emaranhava em primitivas estruturas, em
formas que fugiam, bestiais, crescentes
e opressivas! Como ele se entregava! Amava.
Amava seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido, sobre cujo
silencioso despenhar verde-luz, seu coração
se erguia. Amava. Abandonado, as próprias raízes mergulhou
na origem poderosa, onde sobrevivia seu pequeno nascimento.
Desceu, amando, ao sangue mais antigo, ao abismo
onde jaz o Espanto, regurgitado pelos ancestrais.
E cada sobressalto o reconhecia e acenava, conivente.
Sim, o Horror sorriu-lhe... Poucas vezes com tal ternura sorriste,
mãe. Como não amaria ele o que assim lhe sorria? Antes de ti
ele o amou, pois quando o trazias, estava dissolvido
na água que torna mais leve a semente.

Não amamos como as flores, depois de uma
estação: circula em nossos braços, quando amamos
a seiva imemorial. Ó jovem, amávamos em nós,
não um ser futuro, mas o fermento inumerável:
não uma criança, entre todas, mas os pais,
ruínas de montanhas repousando em nossas
profundezas; e o seco leito fluvial das mães
de outrora; e toda a paisagem silenciosa,
sob o destino puro ou nebuloso –
eis aqui, jovem, o que adveio antes de ti.

E tu mesma, que sabes? Conjuraste
no amado a pré-história obscura... Que
sentimentos, em seres desaparecidos agitaste!
Que mulheres, nele, te odiaram! Que homens
Sombrios em suas veias jovens despertaste!
Crianças mortas para ti se volveram...
Oh, retoma diante dele, docemente,
uma tranquila tarefa cotidiana – dá-lhe a paz
dos jardins e o contrapeso das noites...
                                                                       Retém-no...



 
Pesquisa e texto final:

Raimundo Fontenele

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