4 de abr. de 2016

SOUSÂNDRADE: MITOS, VERDADES, LENDAS E MENTIRAS DE UM POETA QUE COMIA PEDRAS


Estação Ferroviária - São Luís-Ma

A primeira vez que ouvi falar em SOUSÂNDRADE foi de um jeito que usamos para depreciar, ou para enaltecer, ou para confundir, ou para explicar a coisa, o homem. “Terminou a vida comendo pedras”.  Aí, a explicação a seguir: dizem que o poeta Joaquim de Sousa Andrade, um cidadão do mundo, numa de suas voltas ao Maranhão alforriou escravos antes mesmo da Lei Áurea (nasceu em 1833 e faleceu em 1902), tomou atitudes totalmente liberais e revolucionárias, numa época em que a escravidão era uma norma culta. Coisa da “zelite” branca (ah ah ah) da época.
            E essas atitudes, de certa forma, o empobreceram e ele se viu obrigado a vender a sua famosa Quinta da Vitória, tipo assim, vender pedras para subsistir. Possui o poeta, atualmente, uma rica fonte de referências, tantas foram as publicações a seu respeito em forma de livros, artigos, resenhas e críticas. Mas a sua vida pessoal permanece na sombra, tantos são os buracos, lacunas, e inverdades que se levantam sobre esta personalidade singular, poeta inventivo, criador de neologismos, inventor de caminhos poéticos inovadores, como publicar notícias de jornais novaiorquinos dentro do poema, não é gratuito que tenha sido tão reverenciado por concretistas e tropicalistas a partir dos anos 60. Era um poeta do romantismo vivendo o seu tempo neopósconcretotropicalista, “gil engendra em gil rouxinol” (na canção caetanália).

Contribuições para uma biografia de Sousândrade II — As errâncias e os pousos do Guesa, de Carlos Torres-Marchal, um estudioso e apaixonado pela escrita sousandradiana, investiga vida e obra do poeta Joaquim  e aqui registramos o que escreve e pensa o autor das Contribuições nomeadas acima:
“A primeira dificuldade na pesquisa biográfica sobre Joaquim de Souza Andrade é a existência de homônimos (ou quase homônimos) cujos feitos podem ser confundidos com os do poeta. Um quase-homônimo que brilha com luz própria é Joaquim Gomes de Souza, o Souzinha, (1829-1864) brilhante matemático maranhense, que morou em Paris na mesma época que Sousândrade. Joaquim de Souza é o nome de um potentado maranhense, cujo sobrado em Alcântara, situava-se próximo ao dos Andrades, antepassados do poeta. Outro nome que pode ter originado confusões com Sousândrade, é Joaquim Bento de Souza Andrade, médico cearense, doutorado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1858, na mesma época que Sousândrade lá teria estudado. Foi deputado pelo Ceará e cunhado do escritor José de Alencar. No Rio de Janeiro também encontramos outro Souza Andrade, comprovinciano do poeta: trata-se de Aristides Mendo de Souza Andrade, músico com estudos na Itália. Um obscuro Joaquim de Souza Andrade pode ter contribuído para dar visos de verdade às estórias de Sousândrade sendo apedrejado e apupado nas ruas de São Luís pela molecagem.
Um suelto publicado na imprensa de São Luís relata que “o indivíduo Joaquim de Souza Andrade... divertia-se armado de um pau, esbordoando a quem se lhe aproximava”, motivo pelo qual “foi dar com os costados à cadeia”. Talvez trata-se de Apolinário Joaquim de Sousandrade [sic], preso pela polícia dois anos depois “por distúrbios”16 Lembramos que estas notícias foram publicadas em datas próximas ao período em que Sousândrade atuou como Presidente de Intendência de São Luís, no início da República. Sendo uma personalidade na sociedade são-luisense, é altamente improvável que o poeta fosse tratado na imprensa como “o indivíduo Joaquim de Souza Andrade,” motivo pelo qual supomos tratar-se de um homônimo”.

As viagens de Sousândrade

            O mesmo escritor Carlos Torres-Marchal relata algumas das viagens de Sousândrade:

“Como primeiro critério de verossimilhança das informações aqui relatadas, procuramos a existência de informações independentes que corroborem, mesmo que parcialmente, os fatos relatados. Alguns destes fatos de apoio incluem a coincidência de datas (p. ex. a presença já confirmada de Sousândrade em Manaus em 1858), a menção de atividades literárias, ou da Quinta da Vitória ou mesmo de Alcântara, onde o poeta teria morado na sua juventude. Também foram utilizadas referências no corpus sousandradino, que permitem identificar datas ou locais.

Primeira viagem a Europa (1854 – 1856)

Paris - Séc. XIX
O roteiro da viagem de ida já foi registrado numa contribuição anterior: Sousândrade viajou no vapor l’Avenir, embarcando no Rio em 15 de março de 1854, chegando em Marselha em 16 de maio, após fazer escala em Bahia, Pernambuco, Gorea, Tenerife e Lisboa.
O roteiro de retorno é sugerido no poema Fragmentos do Mar das Harpas Selvagens (1857): Golfo de Biscaia, Serras de Cintra, Tejo, São Vicente (Cabo Verde), Rio de Janeiro, Bahia (Salvador), Maranhão (São Luís).
Os jornais do Rio de Janeiro registram a chegada de Joaquim de Souza Andrade no vapor Tay no dia 2 de junho de 1856. A viagem originou-se 23 dias antes em Southampton, no sul da Inglaterra, tendo o Tay feito escalas em Lisboa, Madeira, Tenerife, São Vicente (Cabo Verde), Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, antes de continuar para Montevidéu e Buenos Aires. Não foi possível confirmar o porto de embarque do poeta. Provavelmente embarcou no Tay em Lisboa, após uma travessia desde Burdeos, o que justificaria a referência ao Golfo de Biscaia, que não seria atravessado no caso de um embarque em Southampton ou no Havre.
Em junho de 1856, Sousândrade estava de volta ao Maranhão, como indica a data da sua carta a Antonio Carvalho, irmão de um amigo do poeta em Paris.

Viagem a Amazônia (1858)


Manaus 
Sousândrade registra a sua passagem por Belém, Manaus e Tabatinga (sobre o rio Solimões, então fronteira com o Peru) nos Cantos I a IV, datados em 1858. O Canto Terceiro traz a seguinte dedicatória: “Tributo de gratidão ao presidente do Amazonas Dr. F. J. Furtado”. Trata-se de Francisco José Furtado (1818 – 1870), juiz e político piauiense. Além de presidente do Amazonas (1857 – 1860), Furtado foi Ministro da Justiça (1862, 1864 – 1865) e Primeiro-Ministro do Brasil (1864-1865). Morou na juventude no Maranhão, onde foi presidente da Câmara Municipal de Caxias, membro da assembleia provincial e deputado à assembleia geral legislativa em 1848.
Além da dedicatória ao presidente do Amazonas, chama a atenção a seguinte estrofe no Canto III d’O Guesa:

Nobre sois. Não lembrastes meus deveres,
E estou lembrando tudo ao coração ;
Ao meu posto faltei, pelos lazeres
Do errar virgiliano da soidão.

que sugere que Sousândrade trabalhou para o governo do Amazonas.
Esta suposição é reforçada por um relato anedótico de Godofredo Viana:
“Uma vez, no Amazonas, o então presidente dessa remota província, onde se encontrava o poeta, convidou-o para oficial (ou outro emprego equivalente), da Secretaria do Governo. Foi aceito o convite e lavrada a nomeação. No outro dia, Sousa Andrade apresentou-se à repartição, já ao fechar do expediente. Deram-lhe, à última hora, uma portaria qualquer a redigir, a fim de ser assinada na manhã seguinte pelo presidente. Sousa Andrade fez o que lhe mandaram. O papel, entretanto, ficou em cima de sua mesa.
No dia seguinte, mal aberta a repartição, corre à sua carteira e faz em pedaços a portaria. Daí foi direto ao presidente, para lhe solicitar, irrevogavelmente, demissão do cargo. É que, conforme explicou ao governante, e mais tarde repetia a meu pai, sua mãe, falecida havia alguns anos, lhe apareceu em sonho e lhe exprobara, com palavras tristes mas enérgicas, o ter recebido, ele republicano de convicção, um emprego da monarquia.
Acrescentava meu pai que esse episódio o poeta o referira veladamente no Guesa.”

Num ofício da Secretaria do Governo do Estado do Amazonas endereçado ao administrador da Fazenda provincial, com data de 1º de setembro de 1858, Joaquim de Sousa Andrade é nomeado “para interinamente servir o lugar de oficial desta Secretaria, [tendo prestado] juramento e [entrado] hoje em exercício do referido cargo.” O Secretário do Governo da Província do Amazonas à época, era o maranhense Carlos Fernando Ribeiro.
Sabemos também que Sousândrade viajou duas semanas depois, no dia 13 de setembro, para Tabatinga, voltando no mesmo navio, o que indica que não demorou, nem no emprego, nem no Solimões. As passagens foram fornecidas pelo Governo da província, como pode ser visto na transcrição dos ofícios da Secretaria de Governo para o Agente da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. É possível que a nomeação, em caráter de interinidade, fosse só um artifício para justificar o pedido de passagens oficiais para Sousândrade até Tabatinga. Poucos dias após o seu retorno a Manaus, Sousândrade seguiu para Belém, embarcando logo para São Luís, aonde chegou em 1º de novembro de 1858.”

Uma vida de idas e vindas, um poeta andarilho que não se adaptava àquela rotina de burocracia em empregos públicos, isso demonstrado nas suas constantes viagens, espécies de fuga ou busca de uma vida mais verdadeira e de verdades mais eternas. Para encerrarmos este post de hoje, apreciemos este relato feito pelo autor do texto Contribuições para uma biografia de Sousândrade que apreciamos anteriormente:

“A anedota afirmando que Sousândrade aglutinou seus sobrenomes para ter o mesmo número de letras (11) que Shakespeare é muito provavelmente apócrifa. Mesmo assim Sousândrade reconhece Shakespeare como uma influência fundamental em seu trabalho: o corpus sousandradino contém citações ou referências a, pelo menos, seis peças de Shakespeare. Também são apresentados comentários sobre a influência de Shakespeare na literatura brasileira do século XIX, e comentadas características do estilo sousandradino possivelmente inspiradas por Shakespeare” (Carlos Torres-Marchal).


Pesquisa e texto final


Raimundo Fontenele

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