19 de mai. de 2016

O POETA MARANHÃO SOBRINHO VOLTOU NOVAMENTE


Continuamos homenageando o poeta Maranhão Sobrinho, hoje trazendo mais um pouco do instigante trabalho de crítica A MEMÓRIA NA POESIA DE MARANHÃO SOBRINHO da professora Vanda Maria Sousa Rocha, com graduação em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (1993) e mestrado em Ciências da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). 

Parte 3: PAPÉIS VELHOS... ROÍDOS PELAS TRAÇAS DA MEMÓRIA


É um truísmo já tão banal a que não se dá muita atenção ou o tratamos um tanto apressadamente: a lembrança/memória ou reminiscências do que passou amarga ou alegre. A valorização e o uso da memória como meio para se sondar as experiências vividas de sujeito aparentemente “anônimo” ou “transparente”, protagonistas de um mundo que nos diz respeito, possibilita condições de diálogo em que nos costumes e valores que fazem parte de nossa história sejam reconhecidas como integrantes da trajetória pessoal de cada um.
A valorização da memória, nas pesquisas das áreas humanas, tem sido objeto de publicação em revistas especializadas no assunto. Em recente artigo publicado na revista científica Nature, umas das mais prestigiadas do mundo, cientistas norteamericanos divulgaram que, para cada lembrança específica de um ser humano, é possível que exista um neurônio responsável por ela. Como cada um de nós tem bilhões dessas minúsculas células no cérebro, talvez isso explique nossa capacidade de armazenar uma infinidade de lembranças. Mas não lembranças construídas de imagens dispostas numa linearidade temporal (rumo à sociedade perfeitamente racional), como bem apregoa Benjamin, mas privilegiando a “cesura do tempo” o verso /volta, a dança em ziguezague e na prosa linear (SELIGMANN-SILVA, 2001, p.366).
Como se vê memória é evocação do passado, pois, não é sem razão que os antigos gregos a concebiam como uma entidade sobrenatural, dotada de poderes, divinizada: mnemosine, deusa protetora das artes e da história. Essa deusa atribuía “aos poetas e adivinhos, o poder de voltar ao passado e lembrá–lo para a coletividade”, como bem diz Chauí (1999, p.126).
De fato, é na ficção prosaica que se dá a versão explícita de saudade, de memória, do que se foi ou do que se perdeu pelo tempo, pois se sabe que a narrativa mantém um vínculo com o tempo enquanto dimensão externa à linguagem e tende a representá-lo, de algum modo, sendo eleito elemento fundamental para situar e identificar aquilo que se narra. Ao passo que na poesia, isso não acontece. O texto poético tende a explorar especialmente o tempo da própria linguagem, o tempo sensível, musical das palavras, dos efeitos estéticos. Na poesia, o tempo não é representado, mas vivido, pois o que importa é experimentá-lo; é mergulhar nele.
A literatura, como se sabe, é plena de exemplos recorrentes, em que a exegese só pode ser ressignificada, a partir da reflexão sobre o tempo de uma história, que se explode em fragmentos e estilhaços, em ruínas. Ruínas representando a síntese entre tempo e espaço: As Ondas (Virgínia Wolf), Mignon (Goethe), Epígrafe (Bandeira), Ulisses (James Joyce), Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) e outros.
É também um truísmo a rendição do poeta ou do prosador à memória do que foi a vida, do que é e do que possivelmente será. Neste particular, abundam os choros, os suicídios, os êxtases amorosos, as alegrias incontidas, enfim, um caleidoscópio de emoções que tornam (sempre) a literatura um palipsesto aberto às infinitas re-leituras e re-escritas, uma busca pela apreensão (impossível registro!) do inapreensível.
Barra do Corda, cidade-berço do poeta
A literatura mundial, por exemplo, fornece uma cornucópia de modelos, Horácio, Ovídio, Tenêncio etc., isto por referirmo-nos só aos romanos e latinos. Portanto, o fundo coletivo, a arquétipo da memória e da reminiscência, não é (são)inédito (s), pois memória, no dizer de Chauí (1996, p.125), “é experiência atávica,inerente ao homem, que assume a função de reter e guardar o tempo passado”.
O background ficcional fica completo se acrescentarmos gregos, franceses, ingleses, alemães etc., assim, teremos todo um arsenal cosmopolita ou não da temática, da saudade que a memória se encarrega de conservar, aquilo que se foi e não retornará jamais. Daí porque refletir sobre tempo e memória, sempre se constituiu no Ocidente, experiência altamente significativa no processo de construção do nosso pensamento. Foi o que motivou Santo Agostinho a fazer, em Confissões, indagar sobre o tempo. Quem poderá explicá-lo claro e brevemente? Quem poderá apreendê-lo, mesmo abstratamente e traduzi-lo por palavras? Muitas questões pertinentes ao tempo e memória, tempo e espaço servem de mote aos discursos de muitos pensadores.
Aqui, sob a égide do memorialismo literário, serão discutidos os sonetos
Papéis Velhos (p.9-10), Rosa Morta (p.39-40), e Evocações (p.187-188), extraídos da obra Papéis Velhos (1908), de Maranhão Sobrinho. (O título é grafado de duas maneiras pela historiografia literária maranhense: Papéis Velhos (como consta na edição em estudo), e Papéis Velhos... roídos pela traça do símbolo (por sinal, sugestivo)! A escolha das referidas poesias se prendem em razão de retratarem a saudade, quando o poeta maranhense, em gestos agônico-românticos, puxa aos olhos do leitor, o passado feliz no âmbito amoroso, a infância no campo, o exemplo honroso e dignificante da velha mãe, a presença de Deus no altar divino (como se sabe, os simbolistas/decadentistas, por exemplo, abjuravam da religião), histórias folclóricas, a mulher amada, a morte do amor, a civilização ora helênica ora romana... Enfim, todo um décor romântico epigonista que, no aflorar da memória involuntária, desencadeia no poeta um estado de graça, não somente porque faz nele renascer um verdadeiro momento passado, o ser que ele foi, mas especialmente porque faz nascer alguma coisa, um ser que, comum ao passado e ao presente, ultrapassa a ambos e se situa fora do tempo, pois a atitude do poeta memorialista lembra que, “quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”, (BENJAMIN, 1994, p.239).
Maranhão Sobrinho em Papéis Velhos (1908, p.9 – 191), derrama copiosamente seu verbo memorialista e saudosista numa eloquente expansão agônicoromântica, que nada fica a dever, pelo menos, no plano das ideias, a Casemiro de Abreu, Fagundes Varela, Junqueira Freire e outros. A diferença parece residir, sob nossa ótica pós-modernista, sujeita dos fenômenos sociais da pressa e do barulho, e da especificidade profissional, no momento histórico outro, vivido por Maranhão Sobrinho, em sua época e sua experiência vivencial em São Luís (MA), marcada pelos recalcados desejos (irrealizáveis), de rumar para o Rio de Janeiro, contentando-se, apenas, às rápidas passagens por Belém (PA), e Manaus (AM), onde faleceu.
É no princípio do século XX, que Maranhão Sobrinho reúne o que de melhor considerava em poesia, estreando em 1908 com Papéis Velhos14, obra reveladora de uma tendência poética, marcada pelas camadas de reminiscências românticas, saudades compassivas, amores inanimados, predomínio em primeira pessoa, esplenianos desejos pela finitude, paralela aos enevoados sonhos simbolistas, revelados por meio de uma linguagem formal, e a reinterante temática satanista, alternando o subjetivo com o objetivo, o pessoal com o impessoal.


PAPÉIS VELHOS (Título adotado por nós, no decorrer deste estudo).


Velhos papéis... de versos. São pedaços
da minh’alma, batidos pelo vento,
como folhas de outomno...Guardam traços
de um tempo, que passou, sem pensamento...

Preso nalgema dos teus alvos braços
teci-os; cada um lembra um momento
do nosso amor que, por eternos laços.
Outrora, nos unia a um firmamento...

Se alguma gloria têm, formosa, é esta;
Todos o teu celeste amor perfuma,
em todos há tua’lma em riso e festa!

Velhos papéis, meu ultimo conforto!
sois uma nódoa ephémera de espuma
perdida à face azul dum lago morto.

A experiência do poeta em Papéis Velhos está fugidia, escoada no plano de expressão da poesia em estudo, pondo em discussão questões de ordem privada e também pública, possível de ocupar espaço no logos poético, pois dada a impossibilidade de apreender e condensar todas as experiências vividas, expõe apenas fragmentos, tênues lembranças de uma existência marcada por vicissitudes e embates emocionais que, a memória e embates pessoais ( a nova historiografia, baseada na memória, testemunha os sonhos não realizados e as promessas não cumpridas, como também as insatisfações do presente), que é a memória como “ um palácio com lugares nos quais colocamos imagens e palavras e passeando por ele, recordamos as coisas, as pessoas, os fatos e as palavras necessárias para se escrever poesia(...), encarregou-se de guardá-las. Mas, em que dimensão, na ordem de conservação e permanência da experiência, a poesia pode se impor como fonte possível dessa expressão tão subjetiva e instigante, que é a vida vivida, sobretudo em um tempo um tanto distante?
Uma das formulações mais eficazes na tentativa de se pensar o tempo psicológico é a durée – duração. O conceito, forjado pelo filósofo Henri Bérgson, (BÉRSON, Henri. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990) exprime as mudanças qualitativas dos estados da consciência, os quais se fundem sem contornos precisos e sem possibilidade de mediação16. Esse conceito apregoa-se na compreensão de Papéis Velhos..., soneto no qual a relação do poeta com o tempo se processa através de um mergulho no passado: “Papéis Velhos ...de versos. São pedaços/ da minh’alma, batidos pelo vento./. A recordação do passado vai ajudar a conhecer e a compreender alguns fatos que uma, duas, outras vezes revisitados, presentificados pela evocação, revitalizam o tempo. E, potencializar o tempo, reencontrá-lo, parece ser experiência nova. É, portanto, conhecer de novo o passado, com “olhos” do presente, na tentativa de congelar fatos, passados reconstruídos por imagens deformadas, dada a precariedade que o presente se e nos impõe.
Como se processa a presentificação, e como advém o reconhecimento daquilo que já passou? O poeta sugere uma existência que se instala em um tempo fora do racional, aquele tempo que não pode ser entendido nem mensurado pelos marcadores convencionados pelo racionalismo, mas, o tempo do qual se refere, parece ser o da metafísica, o mítico, pois “... um tempo/ que passou sem pensamento...,” evocando, então, a predominância de um tempo apartado da lógica cartesiana. Daí, porque a presentificação desse passado ocorrer pelo recurso da memória involuntária, cujo processo detonador desse passado são os Papéis Velhos... de versos./ , que se constituem fragmentos de experiências vivenciadas, “batidos pelo vento,/ como as folhas de outomno..., revelando a passagem da vida madura, à medida que sugere uma cadeia de símbolos capaz de contribuir para o conhecimento do passado, somente possível rearranjado pela memória através da linguagem. Assim, lembrança e percepção tornamse estado da mesma natureza.

Papéis Velhos nos remete (a quem já o leu) entre outros, a Elysio de Carvalho, em Five O’clock, por exemplo. O polígrafo penedense, naturalmente mais cosmopolita que Maranhão Sobrinho e muito mais ilustrado, é o modelo singular para os ímpetos agônico-românticos que descambam dramaticamente para a memória de todo um escopo vivencial próprio do ser humano – modelos franceses, artistas do verso e da prosa gregos e romanos, salões, saraus, décors snobes, mulheres raiadas de sangue, intelectualizadas, delírios de um psiquismo andrógino ou não, atavismos amorosos... enfim, todo um arsenal temático de um romantismo (epígono ou não), situado no tempo e no espaço do entresséculo XIX e XX e, sobretudo, na primeira década do século XX, no caso do maranhense, na provinciana São Luís. O que se diz em Elysio de Carvalho, parece também à vol d’oiseau situar-se em Maranhão Sobrinho.


Pesquisa e texto final:

Raimundo Fontenele

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