23 de jun. de 2016

DE CARA SUJA

Nos anos 90, juntamente com o escritor gaúcho Paulo Bentancur, criamos uma coleção chamada Novos Papos, de livros infanto-juvenis, chamados de paradidáticos pela DCL – Difusão Cultural do Livro, editora paulista, cujas obras se destinam principalmente aos estudantes e são vendidas para escolas, via programas do Ministério e Secretarias de Educação.
Um dos livros que escrevi foi um que trata da questão do consumo de drogas pelos adolescentes e seus efeitos nefastos e arrasadores, mas escrito de forma ficcional, com leveza, sem procurar julgá-los moralmente. Apenas narrar os fatos acontecidos.
De Cara Suja tem como cenário São Luís do Maranhão na década de 70 e não esconderei que tem aqui algumas pitadas autobiográficas, personagens verdadeiros com quem convivi e vivi algumas dessas aventuras e trapalhadas.
Nesta e nas próximas quartas-feiras irei trazendo aqui no blog Literatura Limite e na Coluna Quarta Feira é dia de RF as páginas desse livro, como eram escritos nos primórdios os primeiros romances. Em forma de folhetim que apareciam nos jornais, como um seriado. Boa Leitura! 
Da série Novos Papos, De Cara Suja é um dos livros mais contundentes e realistas . E necessários.

            Quando a notícia chegou, ali na Praça da Alegria, ninguém quis acreditar: o Brequista estava pinel. Foi uma verdadeira bomba! Éramos um grupo que variava dos 14 aos 22 anos. Com exceção do Judeu, ou Rei Júdi, ou J.C. como era chamado.
            O Rei Júdi tinha mais de 20 anos, mas nunca soubemos exatamente quanto. Seu nome verdadeiro, Reginaldo, poucos conheciam. Era o cara que descolava as drogas. Tanto maconha, como os chamados psicotrópicos: Pervintim, Preludim, Anorexil, a lista era interminável, que vinha contrabandeado da Argentina.
            Estávamos lá na virada dos anos 60 pros 70, e de lá pra cá mudaram os nomes das drogas, a faixa etária (cada vez menor),, e o consumo (cada vez maior).
À medida que determinado era usado como droga e a polícia descobria, o mesmo era retirado do mercado. Não tinha importância. O Judeu estava sempre lendo bulas e descobrindo remédios que eram uma verdadeira paulada. Claro que, na hora, a sensação era a de uma agilidade mental fora do comum. Como se o cara tivesse mil olhos, mil bocas, mil ouvidos e gastasse todos de uma só vez. Passado o efeito, o cara estava no bagaço.
Ninguém tem a mínima ideia de como a coisa é depois. Sobre isso Fernando Pessoa, o grande poeta português, diz num verso que “é depois do ópio que a minha alma é doente”.
Voltando ao caso do Brequista. Era um domingo de ouro, o sol era uma bola incendiada brincando conosco. Estávamos ali eu, que me chamo Carlos, o Beto Reis, o ZL. E Zé Carlos e Zé Henrique, gêmeos e parceiros também nas drogas. O Davilson e o Pestana.
O Judeu nunca estava nas horas difíceis. Quando a polícia chegava para dar uma batida ele já tinha se mandado. Só aparecia para abastecer o mercado. Trouxinha de maconha, que dava para até uns cinco baseados, custava, naquela época, o equivalente a, no máximo, 2 reais de hoje. Com uns cinco reais, digamos, dava para comprar de 20 a 30 comprimidos.
Quem mais estava lá quando a notícia chegou? Neguinho Robert, 22 anos e já formado em Direito. Tinha colado grau no ano anterior, com 21 anos. E Ribeiro, 17, baterista de uma banda que tocava covers da jovem guarda. E outros que não lembro.
Quem chegou com a triste novidade foi o Louro, que era o maior amigo do Brequista, e também vizinho, os únicos do grupo que moravam na Praça da Alegria. Os outros moravam em ruas cujos nomes contam a história de São Luís do Maranhão: Jerônimo de Albuquerque, Odorico Mendes, Humberto de Campos, Coelho Neto, Gonçalves Dias.
Tinha também quem morasse na Rua Saavedra, como o Osano, apelidado de Nervoso. O cara sempre queria ser o primeiro a fumar o baseado, tomar a picada, engolir a primeira bolinha. Não tinha paciência, estava sempre na maior fissura.
Fumamos um cigarrinho de maconha e ficamos curtindo a ressaca ao sol. Na noite anterior, um sábado, a gente havia se detonado um bocado. Teve uma festa na Rua Jansen Muller, cada gatinha mais legal que a outra.
O ZL era quem estava com a palavra na hora que o Louro chegou:
– É isso aí, meu irmão, dei o maior amasso na Sandrinha. Acho que a mina quase gozava... – falava chiando, um perfeito carioca. O paraense, o maranhense, ambos falam parecido com o carioca, os esses sobrando por todos os lados.
O Louro,  um cara vermelho que parecia um camarão, estava branco feito uma vela. A respiração parecia mais uma locomotiva resfolegando, os olhos azuis rodopiavam de um lado para outro naquele fundo branquíssimo, chegou e foi logo interrompendo o ZL, chocando todos nós com aquele absurdo:
– Pessoal, o Brequista fiou doido de pedra. Eu estava com ele na hora. O cara tirou a roupa, ficou pelado no meio da sala. A mãe dele, o pai, as irmãs, todo mundo olhando e ele nem aí.
– Não vem com essa, Louro, quer estragar nosso domingo, cara? o ZL, individualista como ele só, não estava nem aí. Ficou até chateado por ter que interromper as mentiras que ainda estava para contar.
– Como foi, Louro? Conta, rapaz...
– Pegamos o ônibus das 6 horas e fomos lá em Santa Bárbara. Numa fazenda dos tios da Vitória. Ela foi junto. Ela, eu, o Brequista e mais uns dois panacas que eu nem sei como sem chamam. A gente tinha no campo pegar uns cogumelos. Era para trazer e fazer uns chás.
 – Peraí, Louro, seis da matina, meu irmão, vocês já estavam no mato? Dormiram lá, foi? não podia ser outro senão o ZL falando.
             – Ninguém dormiu porra nenhuma, cara. Saímos da festa já de manhã. Demos um tempo no abrigo da Praça João Lisboa, tomando uns refris. O Brequista tava mal, mas a gente também tinha tomado umas bolinhas de Desbutal, bebida uma porção de cerveja, fumado outro tanto. Estava todo mundo tão passado que nem dava pra ver o quanto o Brequista estava numa pior.
             – Desbutal, cara? Que coragem, meu! Não é aquela bolinha azul e amarela? – onde o ZL estava só ele falava.
– Exato. A gente tem de raspar aquela parte azul e jogar fora. O Brequista tava doidão, falando bobagens, dizendo que era para jogarmos ele na água e apontava pra frenye, a mão trêmula, só ele via aquele mar ou aquele rio inexistente. Sentamos o cara num banco da praça, ele vomitou pra caramba. Depois disse que queria suco, tomou logo uns quatro copos seguidos.
Louro arregalou mais os olhos, nesta altura de sua afobada narrativa, suspirou fundo e mandou ver:
– Daí pegamos um táxi e ficamos rodando uns quarenta minutos. Ele melhorou. Descemos do táxi na Rua Cândido Ribeiro, subimos a Rua do Mocambo e, cinco quadras depois, estávamos diante do portão da casa do Brequista, que ficava colada à minha, na Praça da Alegria.
O ZL estava muito chapado de fumo. Tanto que caiu na gargalhada, assim de repente. Ninguém achou graça de nada, só ele. Ficou aquele silêncio um tempão. Alguém até pigarreou. E ZL, rindo novamente:
– Pá, meu! Que filme! Não te guento. Tou saindo – e saiu, sacudindo os ombros de tanto rir.

(NÃO PERCA NA PRÓXIMA SEMANA A CONTINUAÇÃO DESTA LOUCA AVENTURA DAQUELE PUNHADO DE PORRA LOUCAS)


Raimundo Fontenele

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