29 de jun. de 2016

DE CARA SUJA


Olá, amigos!
Nesta Quarta Feira é dia de RF continuamos com a narrativa do livro infanto-juvenil De Cara Suja, historinha ambientada na glamorosa e singela São Luís do Maranhão dos anos 70/

NOTA DA EDITORA

            As drogas são uma realidade cada vez mais presente nas famílias brasileiras. É um assunto penoso, traumatizante, mas não podemos fugir dele. De Cara suja focaliza um grupo de amigos de classe média que se envolvem com drogas, viciados e nefastos traficantes. Raimundo Fontenele não esconde nada nesta trágica descrição, mas sem assumir um caráter moralizante. Simplesmente descreve; os fatos falam por si. O mundo dos viciados tem esperança? Sim, mas exige do dependente uma enorme força de vontade. 

Capítulo 2

(Resumo: Louro está contando como o amigo Brequista pirou de vez, devido às drogas)

            – Fala, Louro, conta o resto. Como o Brequista pirou? – pedi, baixinho. Eu só tinha fumado o baseado com eles. Nunca tinha experimentado nada, além de álcool e maconha.
            – Pois é: o Brequista entrou em casa, pegou um dinheiro dos velhos dele. Eu tinha ficado esperando no banco da praça. Ele veio, disse que conseguira uma grana e também o relógio da mãe dele. Estava até com ele no pulso. Fomos na boca-de-fumo da Amélia e trocamos o relógio, que valia uma grana, por uma quantidade de maconha suficiente pra gente fumar uma semana, numa boa.
            Amélia era uma velha traficante, já com cerca de sessenta anos. Tinha o quarto cheio de altares para esses deuses do candomblé. De vez em quando, recebia uns caboclos. Lembro de uma noite de carnaval em que fomos lá descolar uma maconha. A gente estava negociando quando a Amélia entrou numas. Começou a dançar, grunhir, retorcer-se, cantar, a maior loucura. E nós ali esperando o fumo e a Amélia doidona, disse que tinha recebido um tal de Caboclo Corre Beirada, pode? Isso durou pra mais de trinta minutos.
            O Louro ia retomar a narrativa quando chegou outro colega nosso, o Bob. O pai dele era um dos diretores do Banco do Estado do Maranhão. Nos viu em volta do Louro, foi entrando na roda, eufórico, esperançoso:
            – Que é isso, gente? Chegou ácido do Rio?
            – Saco, Bob, dá um tempo. Só pensa em se ligar! Cuidado, cara, vai devagar. Cê ta ficando esquisito, todo trêmulo... – era o Beto Reis, entrando na conversa. Dirigiu-se ao Louro: – E aí, Louro, esse papo não termina? Vai virar história de caçador?
            – Que nada, Beto. Te liga no papo. Saindo da boca da Amélia, fomos até a Base do Bastico. Tomamos umas cevas e tal. Seis horas da manhã a gente estava saindo e o Brequista insistindo que estava precisando de uns cogumelos. Que da última vez que comera uns “tinha visto um azul numa lanchonete, que nem na fase azul do Picasso existia”. E suspirava com sua gagueira samba-de-breque: “que... que azul, cara, que azul...” Uma tremenda cantilena. Que era só pelo visual. Ia ajudá-lo no trabalho de um quadro que estava pintando.
            – Também, o Brequista é demais, um sujeito pra lá de exagerado. Ele teve até sorte. Só ficou matusca. Podia ter morrido – sentenciou um dos irmãos Metralha, que era como chamávamos os irmãos Zé Carlos e Zé Henrique.
            – Pô, meu, fecha a matraca! Deixa eu contar a história... assim não dá – estava mesmo contrariado o Louro, e nervoso. Agora, mais por não poder exibir os seus dons narrativos do que de pena do amigo querido. – Saímos do Bastico direto para a Praça Deodoro, eram umas seis horas da manhã. Pegamos o ônibus Santa Bárbara, descemos defronte a fazenda do tio da Vitória. Demos sorte. Ninguém em casa; Só uma velha matusalêmica, dona Clotilde, mãe do caseiro Honorato. Chegamos e Vitória falou pra ela que a gente ia no campo pesquisar e estudar umas árvores para um trabalho na universidade.
            Deu onze horas na Praça da Alegria. Iluminados por um sol que ameaçava cozinhar cérebros após o meio-dia, a praça foi se enchendo de velhos, babás, crianças, cachorros.
            – Vamos puxar o carro daqui, pessoal, ta cheio de caretas – o Zé Henrique estava dando a ideia dele.
            – É mesmo, assim a gente não vai mais nem poder fumar unzinho – completou o outro irmão Metralha, Zé Carlos.
        – A Gonçalves Dias tá a maior limpeza numa hora dessas. Os bacanas estão dormindo, e os otários estão na igreja – o Beto referia-se à Praça Gonçalves Dias.
            Esta Praça sempre foi a mais bonita de São Luís do Maranhão. Próxima à Avenida Beira-Mar, num de seus lados, ficava o pensionato para moças, o Cristo-Rei; no outro lado, a Reitoria da Universidade Federal do Maranhão; três ou quatro residências, verdadeiras mansões. Em seguida, a Igreja Nossa Senhora dos Remédios e a Faculdade de Medicina.
Os outros dois lados restantes dão direto para a Avenida Beira-Mar. No meio da praça fica a estátua do poeta Gonçalves Dias. Estátua, bancos, coreto, tudo em mármore branco. E as palmeiras verdíssimas, que o poeta imortalizou nos versos de sua Canção do Exílio.
– Tá. Vamos andando, mas vê se vocês ficam de bico calado, tá? – era o Louro retomando o controle da situação e a história do Brequista. – Puxa, onde é que eu estava mesmo?
– Viajando, Louro, você ta sempre viajando – o Zé Carlos, o Metralha 2, seria um perfeito substituo para o ZL, se tivesse a malandragem e a carioquice deste.
– Vocês estavam no mato, ô animal! – quem falou dessa vez foi Beto Reis e Louro voltou a matraquear e gesticular sua historinha sem-fim.
Pô, lá no mato estava a maior beleza. Cada cogumelo lindão! Rapidinho fizemos uma colheita e tanto. Colocamos tudo num saco plástico que a Vitória trouxera, não sem antes comermos alguns e voltamos.
Quando o Louro sacou que estávamos chegando à Praça Gonçalves Dias, interrompeu o relato e veio com outro papo que agradou a todos:
 – Vamos fumar um, em homenagem ao poeta. Também já estou com a boca e a garganta secas.
Corremos literalmente até a estátua de Gonçalves Dias. Bob enrolava um baseado, enquanto Louro declamava um poema do Jamerson Lemos, um jovem poeta pernambucano, um cara maneiro, meio andarilho. Às vezes ele passava na Deodoro e fumava unzinho com a gente. Publicara uns dois livros poesia: Superfície do Vento e Sábadoárido.
– “... Gonçalves Dias, há dias / que a praça branca, sombria / está sombria sombria” ­ – assim terminava o poema que, na verdade, ninguém ouviu, só eu, que gostava de poesia e fiquei perto do Louro, e atento.
– Louro, passa a coisa, cara. Tá querendo dar uma de delegado? – Beto Reis estava se referindo ao fato do Louro não querer passar o cigarrinho de maconha em frente. Na gíria do nosso grupo significava prender a coisa, o fumo, segurar, não passar adiante. Por isso se chamava delegado quem ficava muito tempo com o cigarro na mão.
– Não enche, cara! Agora que dei uns dois tapinhas só – falou o Louro, expelindo fumaça por todos os buracos, tossindo, o vermelho-camarão voltando-lhe à cara.
– Puxa, que pena o Brequista não tá aqui. Esse fumo é dos bons. Ele ia adorar... – Zé Henrique, o mais calado dos irmãos Metralha, foi quem falou dessa vez. – E por falar nele, Louro, cadê o restante da história, cara?
–  É, bicho, tu fica querendo tirar uma de poeta e tal e coisa...
–  Fecha esse bico, Zé Carlos... – Pelo jeito, agora o Louro ia terminar o relato. – Juro, por Deus, me deu um branco total...
– O branco-omo... – era o Zé Carlos de novo.
E Louro finalizando sua história:
– Isso. Que seja. O certo é que enquanto estávamos em cima do tanque, tentando escapar daquele touro feroz, comemos quase todos os cogumelos. Nem me lembro como saímos de lá.
– Ah, corta essa, Louro. Cuidado, senão você vai parar lá onde o Brequista está – Beto Reis falou e disse.
– Não brinca, Betão. É sério, meu. Não lembro de nada. Nem do ônibus, nem a hora que chegamos na casa do Brequista. Só lembro dele pelado no meio da sala. E depois, quando o pai e o tio dele meteram ele no carro e se mandaram para o hospital. Aí, saltei fora. Foi isso. – Louro estava outra vez nervoso, olhando desconfiado para os lados.
– De repente, é só uma crise, pode ser até que ele já esteja em casa. Fumando um... – o Zé Carlos não se emendava, sempre fazendo piadinhas fora de hora.
Dona Zélia, a mãe do Louro, apontou lá na esquina da praça, vinha caminhando em nossa direção. Quem primeiro– viu e falou foi o Zé Henrique:
 – Ih, Louro, olha lá tua mãe. Se manda, bicho.
– Sujeira... – Louro falou baixinho e apressou o passo ao encontro de dona Zélia.

(NÃO PERCA! NA PRÓXIMA SEMANA A CONTINUAÇÃO DESTA AVENTURA EM QUE CARLOS RELATA COMO FOI INDUZIDO A EXPERIMENTAR MACONHA)



Raimundo Fontenele

           


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