1 de jul. de 2016

SOU O ODORICO MENDES, E VOCÊS? QUEM SÃO?

          Encerrando hoje as homenagens ao ilustre maranhense Odorico Mendes, grande por seus feitos políticos e muito mais pela sua grande e literária que foram as traduções de Virgílio e Homero, trazemos três momentos distintos da vida desse escritor que deve ser lembrado, lido, cultuado pois faz parte de um momento glorioso da História do Maranhão. 

         Primeiro: suas atividades literárias. Em segundo lugar a narrativa dos professores, pesquisadores e escritores Raquel da Silva Yee, Rosane de Souza e Ronaldo Lima acerca da tradução de Odorico Mendes e do achado de um escrito inédito de Odorico Mendes, o Prólogo que escreveu para a tradução da Ilíada, de Homero. E por fim, um trecho do Capítulo I, de sua tradução da Eneida, de Virgílio.
Acreditando ser este trabalho do nosso blog LITERATURA LIMITE um trabalho modesto, mas valioso pelo fato de despertar a curiosidade e a possível leitura desses vultos históricos que, muitas vezes, são esquecidos e desprezados pelos nossos governantes e atuais gestores culturais, anunciamos o próximo homenageado do mês: Graça Aranha, e agradecemos aos amigos e leitores que continuam nos prestigiando com suas visitas e leituras.
E tchau e bênção kkkk!   


A atividade literária

Com exceção da sua obra como publicista e jornalista, as produções literárias desta fase da vida de Odorico Mendes na sua grande maioria perderam-se, sem que ele se tenha esforçado na sua recuperação e arquivo. Um projeto que Odorico Mendes há muito acalentava era verter ao português as obras primas dos clássicos gregos e latinos, recriando na língua portuguesa a sua poesia. Como posteriormente declarou no prólogo da sua Eneida, ... Não possuindo o engenho indispensável para empreender uma obra original, ao menos de segunda ordem, persuadi-me, todavia, de que o estudo da língua e a frequente lição da poesia me habilitavam para verter em português a epopeia mais do meu gosto....
Para além do seu interesse pelos clássicos, interessou-se pela literatura francesa, publicando em verso português a tradução das obras Mérope (1831) eTancredo (1839), ambas de Voltaire.
A partir de 1847, instalado em França e desligado da atividade política, dedica-se a transcriar em português os clássicos, começando por Virgílio. Em resultado desse labor, publica no ano de 1854, na Tipografia de Rignoux, em Paris, a Eneida em português, numa edição que se esgotaria em quinze dias. Quatro anos depois, em 1858, edita a obra completa do poeta latino, concentrando a Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas, com as respectivas notas, numa cuidada edição de oitocentas páginas sob o título de Virgílio Brasileiro.
Em 1860 publica em Lisboa  um ensaio sobre a novela medieval O Palmerim de Inglaterra, de Francisco de Morais, onde lhe prova a autoria portuguesa. Odorico era leitor de Morais desde a adolescência. Afora a produção jornalística, este ensaio, além das notas que escreveu às suas traduções, é a única publicação em prosa de Odorico Mendes.
Tendo já traduzido a obra completa conhecida de Virgílio, inicia a tradução em verso dos épicos de Homero, mas falece em Londres, a 17 de agosto de 1864, quando já tinha completada e aperfeiçoada e pronta para edição, a tradução da Ilíada e da Odisseia. A Ilíada teve sua primeira edição em 1874, editada pelo maranhense Henrique Alves de Carvalho, e a Odisseia apenas veio a público em 1928.
Humanista, jornalista polêmico, político e literato, o maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864) fez parte do círculo literário dos autores pré-românticos do século 19, tornando-se personalidade marcante nos acontecimentos políticos, sociais e culturais desde o Primeiro Reinado. Foi admirador da literatura da antiguidade clássica  e o primeiro brasileiro a traduzir na íntegra as obras poéticas virgilianas e as epopéias homéricas para o português.
Em meados do século 19, Odorico Mendes viu-se diante de grande desafio: traduzir mais 15 mil versos da “Ilíada de Homero”. O tradutor dedicou anos de estudos para verter os episódios lendários da guerra entre os gregos e troianos, enfrentando questões de ordem linguística, cultural e pessoal. No decorrer do processo de tradução da Ilíada, Odorico Mendes mantinha correspondências com o amigo Paulo Barbosa, mordomo imperial.
Escrevia-lhe sobre a vida em Paris e, notadamente, sobre o andamento de suas traduções, além de relatar fatos de sua vida pessoal, tal como sua dedicação aos filhos e as dificuldades financeiras que enfrentava para a manutenção da família na Europa. A amizade com o mordomo e a carreira política rendeu-lhe relações com a família imperial, em especial com D. Pedro II. O imperador, amante das letras e dedicado à prática tradutória, manifestava profundo interesse pelas traduções de Odorico Mendes e tinha o hábito de compará-las com as traduções que realizava.
E

A ILÍADA POR ODORICO MENDES: PRÓLOGO INÉDITO DA TRADUÇÃO

Resumo: Trata-se de explicitar o processo de investigação que nos conduziu a localizar, quase ao acaso, documento presumidamente desconhecido ou esquecido, porém peça essencial à recomposição de parte da história  da tradução literária no Brasil. Mais que isso, o referido texto expõe fragmentos da visão de um importante tradutor sobre seu próprio ato tradutório. O autor, Manuel Odorico Mendes, expõe posições pessoais totalmente inéditas. A transcrição do prólogo manuscrito é apresentada na íntegra, trazendo à tona material de inestimável valor, por longos anos destacado de seu conjunto. O texto, que aqui se revela, constitui elo fundamental para a progressiva organização do imenso quebra-cabeça que os arquivos históricos disponibilizam aos pesquisadores dedicados, de modo geral, aos estudos da tradução literária no Brasil e, de modo singular, àqueles centrados nos estudos odoricianos.

O ENCONTRO COM O PRÓLOGO MANUSCRITO

Em pesquisa realizada no mês de julho 2008, junto aos Arquivos do Museu Imperial de Petrópolis/RJ, inicialmente com vistas a acessar os manuscritos da tradução das Mil e uma Noites realizada por D. Pedro II, localizamos, entre os materiais catalogados sob a rubrica “Estudos do Imperador”, documento cuja caligrafia se destacava no conjunto dos textos analisados. Exame preliminar revelou tratar-se da tradução da Ilíada, precedida por um prólogo sem data e tampouco assinatura do autor. O texto trazia uma série de discussões sobre Homero, bem como considerações sobre procedimentos tradutórios. Informações textuais apontaram para o nome de D. Militina Jansen Müller, irmã de Manuel Odorico Mendes.
Este conjunto de questões, alinhadas, corroboraram a tese de que se tratava, efetivamente, de documento redigido pelo próprio Odorico Mendes. Faz-se necessário destacar que a tradução da Ilíada de 1874 não apresenta o referido prólogo, nem tampouco o menciona. A versão de 2008, elaborada a partir da primeira, também não acrescenta nenhuma informação que remeta ao documento em questão. Contrariamente ao conteúdo do texto, Nienkötter afirma que “Odorico sequer toca na Questão Homérica em seus comentários”.
A literatura dedicada aos estudos odoricianos também não faz nenhuma referência, mesmo que indireta, à existência desse escrito ou ao seu conteúdo. Tais indícios levam a supor que os editores não tiveram acesso a esse material, ou que o mesmo não fazia parte da versão enviada para a publicação.
Nos arquivos encontrou-se também requerimento de D. Militina Jansen Müller solicitando a D. Pedro II devolução dos manuscritos do irmão que supomos serem os mesmos que lá se encontram entre os “Estudos do Imperador”. Mesmo certos de que aquele documento é de autoria do tradutor Odorico Mendes e que constitui um prólogo à tradução da Ilíada, restam dúvidas sobre as eventuais razões para não ter sido publicado na edição de 1874.
Naturalmente, algumas hipóteses podem ser levantadas. Pode-se perguntar, por exemplo, se estaríamos diante de adendo exclusivamente dirigido ao Imperador, visando satisfazer seu prazer de leitura, não constando, pois, de outras eventuais cópias da mesma tradução. Considerando a possibilidade de haver mais de um manuscrito da tradução da Ilíada, seria aquela cópia a única acompanhada de um prólogo, uma vez que, segundo Lacombe (1989), o tradutor tinha o hábito de reproduzir cópias de seus trabalhos para enviar aos amigos?
Mediante as discussões que tratam do paradeiro dos manuscritos de Odorico Mendes, talvez algumas informações estejam em desacordo, pois segundo Leal (1987:53), o Imperador teria restituído os manuscritos à irmã do tradutor em 1872. Assim, dois anos antes da publicação da Ilíada, D. Militina já os teria em mãos.
Polêmicas lançadas à discussão, o que nos resta, como dado concreto, é que o referido achado constitui importante material de estudo para os pesquisadores em tradução e literatura brasileira. Catalogado como documento pertencente a D. Pedro II, sua localização científica exigiria considerável empenho. Tal descoberta ocorreu quase que ao acaso, em função das investigações direcionadas aos trabalhos realizados pelo Imperador, ele mesmo dedicado à prática tradutória e interessado em trabalhos afins, como este que aqui se apresentará.


Lançamos aqui os primeiros comentários sobre o referido prólogo, inclusive tocando nos alicerces da história da tradução literária, uma vez que algumas informações sobre Odorico Mendes precisarão ser complementadas. Trata-se, pois, de disponibilizar aos pesquisadores odoricianos observações embrionárias sobre o prólogo da Ilíada, sobre o seu método de tradução e sobre suas impressões a respeito da vida de Homero. Para fazê-lo, apresentamos na íntegra as considerações registradas no referido manuscrito, tal como seguem nas linhas abaixo.


PRÓLOGO, POR ODORICO MENDES

Acabada a publicação do meu Virgílio, cogitei a maneira de não ficar ocioso. He mui provavel que não me lembrasse da Ilíada se minha irmã do lado materno D. Militina Jasen Müller, apaixonada de Homero que lera em francez, assim não me dicesse: “Depois de teres traduzido Virgilio, ou compõe obra tua, ou traduze a Iliada.” Quanto a compor obra minha, sei bem que a um homem de sessenta annos já falta imaginação, e que tudo que eu produzisse, a não ser inteiramente insípido, seria medíocre; e de poesias medíocres ha excessiva quantidade.
Quanto a Ilíada, havia eu a desgraça de saber quasi nada do grego, pois do pouco aprendido em Coimbra tinha me esquecido a maior parte. Consultei um amigo hellenista, e elle sinceramente achou a empresa muito acima das minhas forças. Porem minha irmã insistiu, animou-me a estudar o grego, e eu lancei-me a Homero. A repugnância em reaprender verbos, dialectos e tantas miudezas, desalentou-me; mas, sempre instado, adaptei o methodo que vou expôr.
Como distinguia ainda se o que se me aprensentava era verbo ou outra parte da oração, procurava todas as palavras gregas nos diccionarios, e guiado pela interpretação latina, alinhavava a minha versão; depois consultava as de Mme. Dacier, Bigman, Rochefort, Giguet, Salvini, Manti, Mancini e outros, e se alguma dellas me advertia de qualquer falta ou esquecimento, reformava a minha, tornando a consultar o original, a interpretação latina, commentadores etc. Isto me fazia marchar lentamente, e houve dia que apenas apurava oito ou dez versos.
Quando, com este methodo, consegui os tres primeiros livros, li-os ao mencionado hellenista, que he o Sr Joaquim Caetano da Silva; e elle, tendo-as combinado com o texto, animou-me a continuar. Para conseguir o meu intento, escolhi a residência de Pisa: nesta cidade quasi morta, onde em dous annos só convivi com a gente em cuja casa pagava a minha pensão, e com uma família cuja amisade era já de Paris, achando-me sem a menor distracção, tive tempo de meditar e escrever, e em quinze mezes obtive o dobro do que obtivera em Paris em dous annos e meio, concluindo a presente versão.
He uma regra já assentada que deve o traductor saber igualmente a língua original e a sua; mas eu opino que, se lhe basta saber a do original como um, forçoso lhe he saber a propria em dobro ou tresdobro. Quando se me apresentar, v.g., um trecho de versos, ainda que não conheça todas as palavras, posso buscál-as nos diccionarios, consultar comentadores, críticos etc.; mas os termos da propria língua, se não vem immediatamente á nossa memoria, como he que os havemos de procurar?
Para bem traduzirmos em português, cumpre d’antemão e com afinco termol-o estudado, conhecer em grande parte os vocabulos; afim que nos occorram immediatamente e sem custo. Exemplo que ofereço nesta versão da Ilíada, prova a opinião acima exposta; e com igual methodo, jamais amestrado pela prática e pela experiencia, espero tambem verter a Odysséa, se a morte não vier atalhar projectos concebidos na minha idade.
 BREVISSIMA NOTICIA DE HOMERO

Sendo esta a primeira vez que em nossa língua apparece Homero sem ser em fragmentos, cumpre dar aos leitores algumas noções concernentes ao poeta maior da alta antiguidade. Se eu emprehendesse uma completa biographia, discutindo as questões que se tem levantado, assim do mérito de suas obras, como do quando e onde nasceu, ou se nasceu, porque até da sua existencia duvidão muitos; isso me levaria sobejo tempo, e seria grossissimo o volume onde na verdade não faria mais que daqui e dalli copiar trabalhos alheios, com mais ou menos disfarce, para ostentar erudição.
Contento-me com esta brevissima noticia. He constante que a honra de lhe dar o berço foi disputada por sete cidades, cujos nomes vem consignados nos Lusiadas pelo seguinte modo:
Esse que bebeu tanto da agua Aonia
Sobre quem tem contenda peregrina
Entre si Rhodes, Smyrna, e Colophonia
Athenas, Chios, Argo e Salamina.

Mas os modernos, com presumpção de saber tudo e emendar e destruir as opiniões recebidas, entraram em liça: Franceses, Inglezes, Italia nos, Alemães e outros, cada um lhe creou uma pátria e Homero começou a ser do Egypto, de Nápoles, da Escossia e de Nenhures. Eu porem sou de voto que elle existiu e que provavelmente nasceu em Smyrna: Chio, que ao depois tem mais direito de reclamal-o, funda-se em dizer Homero, em um dos hymnos que era habitante daquela ilha; mas um homem pode habitar num paiz sem ter ahi nascido, e o mesmo texto he contra producentem, porque, se dali fosse, diria Sou de Chio e não Habito em Chio. Ha uma objecção a Smyrna, e he que, se fosse desta cidade, era Asiático, e não decantaria a guerra de Troia, que he na Ásia e foi venciada pelos Europeus.
Ao que se responde que no tempo de Homero Smyrna era colonia de Achens, e elle se considerava como Grego. O certo eh que, no catalogo dos que ajudavam Troia, não se falla de Smyrna: a guerra não era propriamente entre Europeus e Asiaticos; era entre os Gregos e os Troianos com seus alliados.
Quanto á época em que floreceu, nada se pode affirmar precisamente; mas parece, pelo testemunho dos marmores de Arundel, que elle viveu pouco menos de três seculos depois da guerra de Troia. Wood o fasia muito vizinho a esta guerra; opinião insustentavel á vista dos argumentos de Pope e de outros. Um desses argumentos he que o poeta na Ilíada, invocando as Musas, pede que o inspirem, porque elle nada sabe senão pela fama e pela tradição; prova de que nem em menino tinha conhecido um velho do tempo da mesma guerra.
Outro argumento he dizer na Ilíada que Ajax atirou facilmente uma pedra que nem dous homens do tempo do poeta poderiam mover: ora, se he que a raça humana degenera e diminue de forças, he gradualmente, e a diminuição de que se trata he tal, que suppõe o intervallo de alguns seculos.
Bem que a epoca apontada pareça mais provavel, estou que a duvida
continuará sempre a este respeito. Apenas se devem mencionar as extravagantes conjecturas do Inglez Cortar, o qual opinava que Homero e Hesíodo viviam 380 annos depois de Christo! Posto que os Inglezes, bem como os Allemães, sejam dotados de muito espirito e tenham entre si autores sapientissimos, nelles he que se encontra o maior numero destas aberrações. Mas, pondo de parte os modernos, e apegando-nos aos escritos mais chegados á epoca de Homero, vejamos o que tem sido espalhado e acreditado
ácerca da sua vida.
Menalippo de Magnesia se estabeleceu em Cumas na Jonia, onde casou e teve por filha Chriteida, que orphã cahiu sob a tutela de um tio seu ou simplesmente de um amigo de Menalippo. O tutor abusou da pupila, e para occultar-se, mandou-a gravida com Ismenia, que para Smyrna conduzia uma colonia. Chriteida, estando em uma festa celebrada á margem do rio Meles, alli pariu Homero, que por aquella circunstancia foi chamado Melesigenes. A mãe ao depois separou-se de Ismênia, foi obrigada a fiar lã para poder sustentar seu filho. O bom Phemio, que em Smyrna tinha uma escola de musica e de boas letras, enamorou-se della, casou-se, adouptoulhe o filho, em que foi descobrindo felis indole e grandissimo ingenho.
Mortos Phemio e Chriteida, succedeu Melesigenes na escola do pae, e adquiriu uma estrondosa reputação, dentro e fóra de Smyrna. O capitão de um navio de Lencade, nomeado Mentes, amigo da poesia e instruido, affeiçoou-se a Melesigenes, fel-o deixar a escola e acompanhar em suas viagens. O jovem então já meditava a sua Ilíada, abraçou com prazer a ocasião de correr terras e ver os lugares e os costumes de que tinha de fallar. Tendo visitado a Itália e a Hespanha, foi- se a Ithaca, onde padeceu uma gravíssima ophthalmia: sendo porem assistido por Mentor, homem rico e hospitaleiro, em casa deste houve muitas informações da vida de Ulysses.
Já curado reembarcou-se com Mentes para Colophonia; mas, recahindo, a inflamação de olhos foi fatal, que veio a cegar inteiramente. Esta infelicidade o resolveu a tornar para Smyrna, e ahi terminou a Ilíada. Parece que seus compatriotas (desgraça quase infallivel dos homens de gênio, ou mesmo de simples talento) fartaram-no de louvores, mas deixaram-no em verdadeira miseria. Advirto porem que muitos duvidam da sua cegueira.
Andou-se a Cumas, a ver se era melhor acolhido; no caminho, em um paiz dito Muro-Novo, um Tichio fabricante de coiraças o agasalhou com amor: dizem que até Herodoto nessa terra ainda se mostrava o lugar em que elle recitava seus versos: lá compos seus hymnos e outras poesias. Retornando a Cumas, foi primeiro bem recebido, depois com friesa, e finalmente com desprezo. Desde então he que Melesigenes começou a ser nomeado Homero, que uns opinam significar cego; outros cantor, e alguns refens. Passando-se á Phocea, um Testorides mestre de escola pediu-lhe que deixasse copiar os seus poemas; no que tendo consentido Homero para ter pão, fugiu Testorides para Chio, onde fez fortunas recitando como proprios os versos do pobre que vivia de esmola.
Constando a Homero tal impostura, embarcou-se para Chio num batel de pescadores, que o abandonaram na praia, onde passou a noite. Cego e sozinho, errou dous dias, e ao berrar de umas cabras, encaminhou-se para a parte donde vinham os sons; mas os rafeiros o teriam despedaçado, se lhe não acudisse o pastor que chamava-se Glauco. Este o introduzio na sua cabana; e, tendo-lhe Homero cantado seus versos em paga do bom agasalho, o pastor participou a seu amo esta aventura; e o amo, admirando aquelle cego extraordinario, confiou-lhe a educação de um filho. Testorides, que o soube tam vizinho, desappareceu.
Homero sentou em Chio uma escola, e dessa vez lucrosamente recitava os seus poemas. Ahi adquiriu bens, casou-se e teve duas filhas; uma das quais morreu solteira, e a outra esposou um cidadão de Chio. Em Chio he que elle compos a Odysséa, onde inseriu os nomes de seus benfeitores, v.g. o de Phemio, o de Mentes e o de Mentor; assim como na Ilíada já tinha mencionado a Tichio. E ambicionando um theatro mais vasto á sua gloria, tentou ir- se para Athenas: aportou em Samas a Io, uma das Sporades; mas, quando estava de partida para Athenas, em Io adoeceu e morreu. Os habitantes o enterraram á borda do mar, segundo o costume de expôr os sepulcros dos homens celebres nos lugares mais publicos.
Esta narração he um resumo da Vida que em nome corre de Heródoto; a qual, ou seja do famoso historiador ou de outrem, he a mais acreditada, não obstante as objecções de muitos, entre os quais figura Pope. Este, parecendo cuidar que só uma alta personagem he digna de cantar os heroes, diz que a Vida se refere a cousas da mais baixa condição e he indigna de Homero; e, o que he de notar em homem de tamanha intelligencia, trata com menoscabo o emprego de mestre de escola. Mas o seu compatriota Wood responde-lhe com razão que o emprego de mestre de escola, ou de musica, segundo se chamava então, he o que em nossos dias se diria um professor de encyclopedia, e que Homero não se devia dedignar de semelhante titulo.
Acrescenta Wood que, ou seja de Heródoto ou não, embora contenha algumas inexactidões, a Vida possue muitos caracteres de escrito antigo, e tem, mais que outra qualquer, um grande ar de verdade, sendo despida de fabulas e desvio de imaginação.
Não deixarei de tocar no certame de Homero e Hesíodo, certame que, segundo os partidarios do ultimo, constava de uma inscripção, que existia em Chalcis, cujo sentido era que o poeta da paz e da economia domestica tinha jus mais sagrado á coroa do que o da guerra e da discordia. Mas, alem de que antigos e modernos crem provavel que um não foi contemporaneo do outro, he inadmissivel que Hesíodo houvesse occultado o nome do vencido, que fazia o maior brilho do seu triumpho. “Ser vencedor de Homero, exclama Cesarotti, não era naquelles tempos um titulo que invejaria o mesmo Apollo?”
Agora vamos ás suas obras. Sem tratarmos da Batrachomiomachia, ou guerra dos ratos e das rãs, nem dos hymnos que nos restam, que nem todos se crê serem de Homero, fallemos da Ilíada e da Odysséa. Para mim sam futeis e meros jogos de espirito os argumentos com que se pretende provar que Homero não existiu; que se engaram todos os que até lhe ergueram templos e altares; que toda antiguidade esteve no erro; que não sam delle as obras que lhe tem sido louvadas pela voz dos seculos; que a Ilíada e a Odysséa são mantas de retalhos; que tanto uma como outra foi composta por differentes pessoas e em differentes epocas, etc. etc. etc.
Seria possível que a Ilíada fosse de um poeta e a Odysséa de outro; mas he impossível que seja cada uma de mais de um autor, pela admirável connexão do seu todo. E parece bem que sam de um mesmo poeta; porque, apezar da muitíssima differença de assumptos, acha-se em ambos os poemas um ar de parentesco inegavel. As repetições, de que se tem querido tirar prova contra- a unidade de taes obras, nada servem ao intento: os Asiaticos (notem-se os mesmos do Velho Testamento e ainda do Novo) gostavam de repetições; e esta, que hoje nos parece imperdoavel defeito, não o era naquelles tempos. Se ha um progresso entre a Ilíada e a Odysséa, isso não admira, porque uma foi parte da mocidade e outra da velhice; e Homero, que tinha o habito de observar e adquirir conhecimento, foi sempre augmentando os seus e enriquecendo a sua razão. Não me quero estender; basta-me declarar o que sinto sobre este ponto: a materia tem sido ampla e doutamente ventilada por muitos, cujos livros comporiam uma não pequena biblioteca.
Tanto sobre o lugar de nascimento e a vida de Homero, como sobre osseus escritos, o leitor curioso pode consultar Pope, Cesarotti, Mr. Bigman, o Marques de Fortia d’ Urban; e quasi todos os traductores, mais ou menos, reflectem sobre as cousas relativas ao poeta. Escolhi os quatros apontados; porque elles, principalmente Cesarotti, entram em todas as particularidades, e citam ou combatem as varias opiniões: guiado por estes quatro, pode qualquer ter noticia e recorrer aos principaes, tanto aos que tratam a matéria com o desejo de descobrir a verdade, como aos que, para ostentar ingenho e singularisar-se, dando tratos á imaginação, tem embrulhado tudo. Hoje andam nas mãos de todos os varos diccionarios historicos, faceis de consultar, onde se lê a biographia do poeta.




 Vamos agora ao trecho do Livro I da Eneida de Virgílio, no excelente trabalho de tradução de Manuel Odorico Mendes:


ENEIDA BRAZILEIRA
OU
TRADUCÇÃO POÉTICA
DA EPOPÉA
DE PUBLIO VIRGILIO MARO,
Por Manuel Odorico MENDES
da cidade de S. Luiz do Maranhão

PARÍS.
NA TYPOGRAPHIA DE RIGNOUX
Rua Monsieur Le Prince, 31
 LIVRO I

Eu, que entoava na delgada avena
Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da selva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.
Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,
Ou por que mágoa a soberana déia
Compeliu na piedade o herói famoso
A lances tais passar, volver tais casos.
Pois tantas iras em celestes peitos!
Colônia tíria no ultramar, Cartago,
Do ítalo Tibre contraposta às fozes,
Houve, possante empório, antigo, aspérrimo
N’arte da guerra; ao qual, se conta, Juno
Até pospôs a predileta Samos:
Lá coche, armas lá teve; e, anua o fado,
No orbe entroná-la então já traça e tenta.
Porém de Teucro ouvira que a progênie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Líbia,
À larga rei belipotente povo:
Que assim no fuso as Parcas o fiavam.
Satúrnia o teme, e a pró dos seus Aquivos
Recorda as lides que excitara em Tróia;
Nem d’alma agravos risca, dores cruas:
No íntimo impressa a decisão de Páris,
A injúria da beleza em menoscabo,
E a raça detestada e as honras duram
Do rapto Ganimedes. Nestes ódios
Sobreacesa, os da Grécia e ímite Aquiles
Salvos Troas, do Lácio ia alongando,
Por todo o plaino undíssono atirados;
E, em derredor vagando anos e anos,
De mar em mar a sorte os repulsava.
Tão grave era plantar de Roma a gente!
De Sicília amarando, mal velejam
Ledos e o cobre rompe a salsa espuma,
Juno, dentro guardada eterna chaga:
“Eu, diz consigo, desistir vencida!
Nem vedar posso a Itália ao rei dos Teucros!
Ah! tolhe-me o destino. A esquadra argiva
Não queimou Palas mesma, submergindo-os
Só de um Ajax Oileu por culpa e fúrias?
Do Tonante o corisco ela das nuvens
Darda, os baixéis desgarra, o ponto assanha;
Ao triste, que varado expira chamas,
Num torvelinho em rocha aguda o crava:
E eu, que rainha marcho ante as deidades,
Mulher e irmã de Jove, tantos anos
Guerreio um povo! E a Juno há quem adore,
Ou súplice inda a incense, a invoque e honre?”
No âmago isto fermenta, e a deusa à pátria
De austros furentes, de chuveiros prenhe,
À Eólia parte. Aqui num antro imenso
O rei preme, encarcera, algema, enfreia
Lutantes ventos, roncas tempestades.

Em torno aos claustros de indignados fremem
Com grã rumor do monte. Em celsa roca
Sentado Eolo, arvora o cetro, e as iras
Tempera e os amacia. Que o não faça,
Varridos mar e terra e o céu profundo
Lá se vão pelos ares. Cauto, em negras
Furnas o onipotente os aferrolha,
E, um cargo de montanhas sobrepondo,
Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas
Suster saiba ou laxar. Dest’arte Juno
O exora humilde: “Eolo, o pai dos divos
E rei dos homens te concede as ondas
Sublevar e amainá-las; gente imiga
Me sulca as do Tirreno, Ílio e os domados
Penates para Itália transportando:
Ventos açula, as popas mete a pique,
Ou dispersas no ponto as espedaça.
Catorze esbeltas ninfas me cortejam,
Das quais a mais formosa, Deiopéia,
Prometo unir contigo em jugo estável;
Que em paga para sempre a ti se vote,
Meiga te procriando egrégia prole.”
A quem Eolo: “Que o desejes basta;
Meu, rainha, é servir-te. Quanto valho
Tu mo granjeias, e este cetro e Jove;
Tu dás-me à diva mesa o recostar-me,
Ser em tufões potente e em tempestades.”
Disse; e um revés do conto a cava serra
A um lado impele: em turbilhão, cerrados
Num grupo os ventos, dada a porta, ruem,
As terras varejando. Ao mar carregam,
E horrísonos revolvem-lhe as entranhas
Noto mais Euro, e de borrascas fértil
Áfrico; às praias vastas ondas rolam.
Homens gritam, zunindo a enxárcia ringe.
Some-se ao nauta o céu, tolda-se o dia;
Pousa no pélago atra noite; os pôlos(1)
Toam, o éter fuzila em crebros raios:
Tudo ameaça aos varões presente a morte.

Frígido, arrepiado, Enéias geme,
E alça as palmas e exclama: “Afortunados
Oh! três e quatro vezes, d’Ílio às abas,
Os que aos olhos paternos feneceram!
Ó dos Danaos fortíssimo Tidides,
A alma em Tróia vertendo-me essa destra,
Não ficar eu nos campos, onde o bravo
Heitor d’Eacide às lançadas, onde
Sarpedon jaz magnânimo, onde o Simois
Corpos e elmos de heróis e escudos tantos
Arrebatados na corrente volve!”
Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas
Rasga o pano, e a mareta aos astros joga.
Remos estalam; cruza a proa, e o bordo
Rende; escarpado fluido monte empina-se.
As naus já no escarcéu pendem, já descem
Num sorvedouro à terra entre marouços:
Remoinha o esto na revolta areia.
Três rouba Noto e avexa nuns abrolhos,
Abrolhos sob o mar, que Ítalos aras
 Nomeiam, dorso horrendo ao lume d’água;
Três no parcel (que lástima!) Euro esbarra,
Encalha em vaus, de marachões rodeia.
Uma, em que Oronte fido e os Lícios vinham,
Ante Enéias, d’avante úmido rolo,
Do maior pino desabando, em popa
Fere-a; do baque o prono mestre volto
Cai de cabeça. O vagalhão três vezes
Torce-a, revira, um vórtice a devora.
Raros no vasto pego a nadar surdem;
Tábuas e armas viris e alfaias tróicas,
Preia das ondas. A tormenta escala
A nau robusta de Ilioneu, de Abante,
As de Aletes grandevo e Acates forte:
Todas, frouxadas as junturas, sorvem
A inimiga torrente, e em fendas gretam.
Mugir seu reino e o temporal desfeito,
Caixões do imo a brotar, sentiu Netuno,
Torvo, abalado, e acode acima e exalta
A plácida cabeça. A frota esparsa
Vê soçobrando, opressos os Troianos
Da marejada e do ruído etéreo.
De Juno irosa o dolo o irmão percebe;
Euro e Zéfiro chama: “Herdastes, ventos,
Tal presunção, que sem meu nume, ousados,
Terra e céu confundis e equóreas brenhas?
Eu vos... Mas insta abonançar as vagas:
Caro mo pagareis, guardo o castigo.
Ao rei vosso intimai, já já, que em sorte
Não lhe coube este império, que o tridente
Fero é só meu. Tem ele enormes fragas,
Euro, vossas mansões: nessa aula ufano
Sobre enclaustrados ventos reine Eolo.”
Nem cessa, e o mar se lança, o tempo alimpa
E abre o Sol. Finca a espádua, e com Cimótoe
As naus Tritão do escolho desengasga;
Mesmo o padre as aliva com seu cetro,
Amplas sirtes afunda, aplaca os mares,
Por cima em rodas se desliza leves.
Como, enraivado em popular tumulto,
 Dispara ignóbil vulgo, e o facho e o canto
Já voa, as armas o furor ministra;
Mas, se um pio ancião preclaro assoma,
Calam, para escutar o ouvido afiam;
Ele os convence e os ânimos abranda:
Assim baixa o fragor e o pego amansa,
Quando olha o deus, que os brutos no ar sereno
Dobra, e dá loros ao ligeiro carro.
Da costa próxima em demanda, à Líbia
Os cansados Enéiadas aproam.
Num golfo ali secreto, com seus braços
Faz barra ilha fronteira, onde a mareta
Quebra e se escoa em sinuosas rugas:
Penedia em redondo, e ao céu minazes
Há dois picos irmãos, a cujo abrigo
Dorme difuso o mar; de coruscantes
Selvas prolonga-se eminente cena,
Descai de atra espessura hórrida sombra;
No topo há gruta em pêndulos cachopos,
Com doce fonte, e em viva rocha bancos
Das ninfas sede: aqui não prende amarra
Nem mordaz ferro adunco as lassas quilhas.
Com sete naus ao todo arriba Enéias;
E amorosos da terra, alvoroçados
Saltando os seus, do sal tábidos membros
Na areia espraiam. Lume eis fere Acates,
Toma em folhas, e em roda as acendalhas,
Nutre a faísca, e em lenha a chama ateia.
Mareados pães e cereais aprestos
Já desembarca a trabalhada chusma,
E os grãos põe-se a torrar e em pedra os pisa.
Trepa entanto um penhasco, e ao largo Enéias
Regira, a ver se undívagos alcança
Anteu ou Cápis, as birremes frígias,
Ou armas de Caíco em altas popas.


Pesquisa e texto final:

Raimundo Fontenele

Um comentário:

  1. Muito interessante as novas informações sobre as grandes traduções de Odorico Mendes, de um tempo onde os literatos faziam dessas empreitadas verdadeiras missões de vida. Gran finale com Odorico magistral.

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