1 de jul. de 2016

Graça Aranha - O Maranhense da Semana de Arte Moderna



Por Natan Castro

Retomando o projeto de divulgação dos grandes vultos da literatura maranhense, nesse mês de julho o homenageado é o romancista, ensaísta e diplomata José Pereira de Graça Aranha. Maranhense de São Luís o escritor filho de uma família abastada foi desde sempre acostumado a uma educação esmerada. Ainda jovem foi para Recife estudar direito, exerceu cargos na magistratura e na diplomacia brasileira, nesse último esteve em diversas nações a serviço do Itamaraty, dentre elas Inglaterra, Noruega, Holanda e França.

Com a estadia nos países europeus o escritor teve a oportunidade de acompanhar o surgimento das vanguardas do inicio do século XX, as mesmas que propunham mudanças drásticas nos meandros da arte mundial. Essas movimentações desencadearam no que se convencionou a chamar um pouco depois de arte moderna. No seu retorno ao Brasil com essas informações em mente Graça Aranha lança em 1902 o romance Canaã que é considerada sua obra prima. No período estando exercendo o cargo de juiz de direito no interior do Espirito Santo, o autor se apropria das ideias das vanguardas europeias fundindo-a com o imaginário regional Capixaba para dar luz ao enredo do romance. Implicitamente o grande escritor propunha novos rumos na literatura brasileira, um ar de revolução varria as paragens literárias do mundo inteiro influenciadas pelos europeus. Na opinião do escritor havia chegado o momento do Brasil participar desses debates.

Graça Aranha havia sido um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras anos antes, um fato curioso desse período é de como foi aceito membro sem mesmo ter lançado um livro, a época iniciava os escritos de Canaã, ao citar trechos nas primeiras reuniões chamou a atenção de Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Após a repercussão do livro Graça Aranha tenta levar os ares de inovação para os meandros da Academia, porém sofre uma forte repressão, com destaque para os comentários contrários de outro maranhense o escritor Coelho Neto.

Segundo muitos críticos e especialistas, no período as inovações estéticas contidas no romance Canaã acabou por aproximar Graça Aranha dos jovens paulistanos que propunham igualmente uma profunda renovação nas artes no Brasil, envolvendo a música, literatura e artes plásticas em geral. No lançamento da Semana de Arte Moderna de 1922 o escritor realiza o famoso discurso chamado O Espirito Moderno (A Emoção Estética na Arte Moderna). Graça Aranha é mais um dos grandes escritores surgidos nos períodos de ouro da Athenas Brasileira, que colocava o Maranhão em destaque na literatura brasileira. Mais um maranhense de importância seminal para um dos momentos mais controversos e férteis de toda a história da literatura brasileira.


 A emoção estética na arte moderna

Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de "horrores". Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros "horrores" vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.

Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o Universo, que a ciência decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, insolúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista. O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e seus fragmentos são sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como a função estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.

A emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador. Cada arte nos deve comover pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito.

A pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar, mas principalmente pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor.
Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não seja realizada segunda as fórmulas consagradas? O que nos interessa é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do músico divino. É na essência da arte que está a Arte. É no sentimento vago do Infinito que está a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a natureza é uma "fuga" perene no Tempo imaginário. Enquanto para os outros a natureza é fixa e eterna, para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação incessante. Transmitir por ela as vagas emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a unidade com o Todo é a suprema alegria do espírito.

Se a arte é inseparável, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar, porque é um criador de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações recebe a influência da cultura do espírito humano.

Toda a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de idéias gerais, de um impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida. Na antigüidade clássica o surto da arquitetura e da escultura se deve não somente ao meio, ao tempo e à raça, mas principalmente à cultura matemática, que era exclusiva e determinou a ascendência dessas artes da linha e do volume. A própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da escultura. No renascimento, em seguida à perquirição analítica da alma humana, que foi a atividade predominante da idade média, o humanismo inspirou a magnífica floração da pintura, que na figura humana procurou exprimir o mistério das almas. Foi depois da filosofia natural do século XVII que o movimento panteístico se estendeu à Arte e à Literatura e deu à Natureza a personificação que raia na poesia e na pintura da paisagem. Rodin não teria sido o inovador, que foi na escultura, se não tivesse havido a precedência da biologia de Lamarck e Darwin. O homem de Rodin é o antropóide aperfeiçoado.

E eis chegado o grande enigma que é o precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma resultante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora.
Desde Rousseau o indivíduo é a base da estrutura social. A sociedade é um ato da livre vontade humana. E por este conceito se marca a ascendência filosófica de Condillac e da sua escola. O individualismo freme na revolução francesa e mais tarde no romantismo e na revolução social de 1848, mas a sua libertação não é definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as suas tramas inexoráveis. O espírito do homem mergulhou neste insondável abismo e procurou a essência das coisas. O subjetivismo mais livre e desencantado germinou em tudo. Cada homem é um pensamento independente, cada artista exprimirá livremente, sem compromissos, a sua interpretação da vida, a emoção estética que lhe vem dos seus contatos com a natureza. É toda a magia interior do espírito se traduz na poesia, na música e nas artes plásticas. Cada um se julga livre de revelar a natureza segundo o próprio sentimento libertado. Cada um é livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima desencadeada de toda a regra, de toda a sanção. O cânon e a lei são substituídos pela liberdade absoluta que os revela, por entre mil extravagâncias, maravilhas que só a liberdade sabe gerar. Ninguém pode dizer com segurança onde o erro ou a loucura na arte, que é a expressão do estranho mundo subjetivo do homem. O nosso julgamento está subordinado aos nossos variáveis preconceitos. O gênio se manifestará livremente, e esta independência é uma magnífica fatalidade e contra ela não prevalecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando bom gosto, e do infecundo bom-senso. Temos que aceitar como uma força inexorável a arte libertada. A nossa atividade espiritual se limitará a sentir na arte moderna a essência da arte, aquelas emoções vagas transmitidas pelos sentidos e que levam o nosso espírito a se fundir no Todo infinito.
Este subjetivismo é tão livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objetivismo, em que desaparece a determinação psicológica. Seria a pintura de Cézanne, a música de Strawinsky reagindo contra o lirismo psicológico de Debussy procurando, como já se observou, manifestar a própria vida do objeto no mais rico dinamismo, que se passa nas coisas e na emoção do artista.

Esta talvez seja a acentuação da moda, porque nesta arte moderna também há a vaga da moda, que até certo ponto é uma privação da liberdade. A tirania da moda declara Debussy envelhecido e sorri do seu subjetivismo transcendente, a tirania da moda reclama a sensação forte e violenta da interpretação construtiva da natureza pondo-se em íntima correlação com a vida moderna na sua expressão mais real e desabusada. O intelectualismo é substituído pelo objetivismo direto, que, levado ao excesso, transbordará do cubismo no dadaísmo. Há uma espécie de jogo divertido e perigoso, e por isso sedutor, da arte que zomba da própria arte. Desta zombaria está impregnada a música moderna que na França se manifesta no sarcasmo de Eric Satie e que o grupo dos "seis" organiza em atitude. Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea, porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte moderna que é a do mais livre subjetivismo.
É prodigioso como as qualidades fundamentais da raça persistem nos poetas e nos outros artistas. No Brasil, no fundo de toda a poesia, mesmo liberta, jaz aquela porção de tristeza, aquela nostalgia irremediável, que é o substrato do nosso lirismo. É verdade que há um esforço de libertação dessa melancolia racial, e a poesia se desforra na amargura do humorismo, que é uma expressão de desencantamento, um permanente sarcasmo contra o que é e não devia ser, quase uma arte de vencidos. Reclamemos contra essa arte imitativa e voluntária que dá ao nosso "modernismo" uma feição artificial. Louvemos aqueles poetas que se libertam pelos seus próprios meios e cuja força de ascensão lhes é intrínseca. Muitos deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela amargura da farsa, mas num certo instante o toque da revelação lhes chegou e ei-los livres, alegres, senhores da matéria universal que tornam em matéria poética.

Destes, libertados da tristeza, do lirismo e do formalismo, temos aqui uma plêiade. Basta que um deles cante, será uma poesia estranha, nova, alada e que se faz música para ser mais poesia. De dois deles, nesta promissora noite, ouvireis as derradeiras "imaginações". Um é Guilherme de Almeida, o poeta de "Messidor", cujo lirismo se destila sutil e fresco de uma longínqua e vaga nostalgia de amor, de sonho e de esperança, e que, sorrindo, se evola da longa e doce tristeza para nos dar nas Canções Gregas a magia de uma poesia mais livre do que a Arte. O outro é o meu Ronald de Carvalho, o poeta da epopéia da "Luz Gloriosa" em que todo o dinamismo brasileiro se manifesta em uma fantasia de cores, de sons e de formas vivas e ardentes, maravilhoso jogo de sol que se torna poesia! A sua arte mais aérea agora, nos novos epigramas, não definha no frívolo virtuosismo que é o folguedo do artista. Ela vem da nossa alma, perdida no assombro do mundo, e é a vitória da cultura sobre o terror, e nos leva pela emoção de um verso, de uma imagem, de uma palavra, de um som à fusão do nosso ser no Todo infinito.
A remodelação estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e do provincialismo.
O regionalismo pode ser um material literário, mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao universal. O estilo clássico obedece a uma disciplina que paira sobre as coisas e não as possui.
Ora, tudo aquilo em que o Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo, que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta. Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo paradoxal que é o Universo brasileiro, e ela não se pode desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o sarcófago do passado. Também o academismo é a morte pelo frio da arte e da literatura. (...)
O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e, como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável "florada" artística. E, libertos de todas as restrições, realizaremos na arte o Universo. A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética. O próprio Amor é uma função da arte, porque realiza a unidade integral do Todo infinito pela magia das formas do ser amado. No universalismo da arte estão a sua força e a sua eternidade. Para sermos universais façamos de todas as nossas sensações expressões estéticas, que nos levem a à ansiada unidade cósmica. Que a arte seja fiel a si mesma, renuncie ao particular e faça cessar por instantes a dolorosa tragédia do espírito humano desvairado do grande exílio da separação do Todo, e nos transporte pelos sentimentos vagos das formas, das cores, dos sons, dos tatos e dos sabores à nossa gloriosa fusão no Universo.

(Espírito Moderno, 1925)

Graça Aranha

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