13 de jul. de 2016

DE CARA SUJA

Mais uma quarta-feira nas nossas vidas, no Blog Literatura Limite e na nossa coluna QUARTA-FEIRA É DIA DE RF, em que continuamos, em forma dos folhetins do século XIX, a narrativa do livro infanto-juvenil De Cara Suja sobre uma turma de jovens, na São Luís do Maranhão dos anos 70, mergulhados nas drogas e em suas nefastas consequências.
 
Capítulo 4

(Resumo: Carlos narra sua primeira experiência com maconha, curte um barato de horror, e mesmo sentindo o perigo que a droga representa, não tem forças para afastar-se da turma)

Dois meses passados, ninguém falava mais no Brequista. Era assunto encerrado. A grande notícia do momento era o assassinato de Neguinho Robert.
Da nossa turma, somente o Rei Judi e o ZL estavam com Robert na noite do crime. Com a palavra Rei Judi que, entre uma baforada e outra de maconha, contava a história com prazer sádico. Robert era o único que não temia Rei Judi e o tratava de igual para igual. Isso talvez explique o quase-sorriso pendurado na boca de Rei Judi, enquanto ele, todo cheio de gírias, ia mutilando o português.
– Sabes como é, né, meu irmão? Umas trinta cevas, no mínimo. Eu tava de cheio de grana. Neguinho Robert também. O ZL, vocês sabem, é aquele “duro” de sempre. Nunca tem uma “plata”. A gente tava numa mesa da Boate Novacap com duas garotas de programa. Uma minha e a outra do Robert. O ZL se dava por satisfeito em estar filando cerveja e cigarro. Aí chegou o cabelinho, vocês não conhecem. Não é filhinho de papai como vocês.
Quando Judeu falava, ninguém dizia nada. Todo mundo de bico calado escutando o poderoso chefão. E ele deitando falação.
– A gente estava bebendo desde as duas da tarde. Tomamos várias picadas. Ninguém tava mais se entendendo na mesa. Aí o Robert levantou e foi ao banheiro. Quando voltou encontrou Cabelinho de papo com a garota, uma tal de Deise. Nome de guerra, na certa – Rei Judi deu umas duas tragadas “daquelas”, e continuou:
– Vi o Robert de cara amarrada discutindo com o Cabelinho, mas nem dei a mínima. Me distraí um pouco conversando com o ZL, quando ouvi o primeiro tiro. Joguei-me para trás, ouvi mais um tiro e vi o Cabelinho correndo com o trinta-e-oito na mão. Neguinho Robert tava caído de bruços, ia se formando uma poça de sangue junto dele. O ZL nem sabia o que fazer. Tive de tirar o cara dali quase à força. Se a polícia chegasse, a gente ia ter que dar um monte de explicação. Nessas horas, macacada, tem que fazer que nem Pilatos: lavar as mãos e cair fora de fininho. Foi o que fiz; certo, garotos?
Estava todo mundo de acordo. Judeu enrolou mais um cigarrão daqueles, deu umas boas tragadas, passou a bola para o Beto Reis e foi embora. Ficamos ali engasgados com a fumaça e com a morte de Neguinho Robert.
Era bem mais velho que eu, sim, mas novo demais para morrer. Filho d um sujeito importante, um desembargador, que é mais que um juiz. Diziam que ele não gostava e tratava o Robert como filho bastardo, rejeitado. Por isso ele se revoltava tanto. Um porra-louca. O cara não durou muito. No mundo das drogas ninguém dura muito. De um jeito ou de outro o cara acaba cedo. Esta é a mais pura das verdades.
Na Praça Deodoro a gente se reunia numa espécie de arena romana ao contrário.  Fora construída por um prefeito meio maluco, o Cafeteira, que depois foi governador e senador da República. Tão maluco que esse César Maia, do Rio, perde. Destinava-se ao desfile de Carnaval, mas durante o ano inteiro era território nosso. Sentados naqueles degraus, maconhando e jogando conversa fora, nos chamávamos de senadores. E ali era o “senado da praça”.  E parte de nossa vida ficou perdida lá, entre fumaça e nenhum tédio.
 Durante dois ou três dias, o assunto no “senado” foi um só: a morte de Neguinho Robert.
– Gente, isso é um absurdo. Acho que a gente tinha de pegar esse tal de Cabelinho – falava, todo exaltado, ZL, numa das poucas vezes em que isso lhe aconteceu na vida.
Os irmãos Metralha contribuíam para não deixar a conversa esfriar:
 – É, pegamos o cara e o enchemos de porrada. Até matar – Zé Carlos falava isso e era tanta a sua falta de convicção no que dizia, que ele próprio do que estava dizendo.
– Que nada, cara, deixa pra lá. Neguinho Robert morreu e pronto – falou Zé Henrique.
– Dizem que ele não era filho legítimo do desembargador Bello Parga... – Beto Reis era o melhor amigo de Robert, devia saber o que estava falando.
Mas não sabia. Quem sabia mesmo era Rei Judi, que estando presente no papo, tomou para si a palavra, não mais falava mais ninguém. Só se ele permitisse. Só se ele quisesse. Dali pra frente era tudo com ele.
– Vocês não sabem de nada! Neguinho Robert era meu meio-irmão.
– Por Deus do céu como eu já tinha desconfiado disso, Rei Judi. Sei lá, tem um negócio na cara de vocês que se parece, ta entendendo? – ZL falou e estendeu a mão para receber a bagana do cigarro que Judeu estava lhe alcançando.
Rei Judi terminou de contar seu parentesco com o falecido Robert, mas ninguém prestou atenção no que ele estava falando> Neguinho Robert estava morto e ponto final. Não se perdia muito tempo analisando as coisas.
Era um cigarro atrás do outro e muita conversa fiada, perda de tempo, papo furadíssimo mesmo. Malandro chegava, malandro saía. Eu ficava ali no meio deles e me perguntava o que exatamente eu estava fazendo ou estava querendo na vida, metido numa turma daquelas.
Quando ia se aproximando o fim de semana a agitação era geral. Fim de semana era sinônimo de festa, cada um tratava de conseguir grana fosse como fosse. Ultimamente, Louro estava vendendo coisas de casa. Tinha vendido ou trocado por drogas um relógio e algumas jóias da família. E numa manhã de sábado, o cara chegou com um rádio, desses grandes, no ombro. A gargalhada foi geral:
– Boa, Louro. Quanto é o “papagaio” aí? – ZL foi o primeiro a falar, interessado em levar alguma vantagem. – Conheço um cara que paga uma grana legal!
Cem mangos, ZL. E vamos logo, a coroa pode pintar a qualquer momento. – Louro se sacudia todo, com aquele rádio imenso no ombro, que ele mudava de posição e de ombro a todo instante. Os olhos azuis faiscavam em todas as direções da praça, com medo de que dona Zélia aparecesse e lhe tomasse o rádio. Adeus cigarrinhos e picadas. Adeus fim de semana.
Saíramos dois, Louro e ZL, e a turma ficou ali, cantando e esperando. A gente sabia que eles iam voltar cheios de drogas. Maconha e, principalmente,  os psicotrópicos, as bolinhas que se comprava nas farmácias, com receitas falsificadas, mas também sem nenhuma receita. E que a maioria tomava, injetando-os na veia.
Aí ficavam até vinte e quatro horas sem comer e sem dormir. Bebendo, andando, e falando sem parar. Completamente alucinados.
Dali nós fomos até a Praça Gonçalves Dias, que nossas vidinhas se resumiam nisso: de casa para a Deodoro; da Deodoro para a Gonçalves Dias. Nas noites de sexta e sábado, era festa e festa.
Ninguém tinha almoçado e já passava das duas da tarde. Mas a gente não arredava o pé dali, esperando ansiosamente o Louro e o ZL.
– Que azar! – Beto Reis exclamou, apontando na direção da Rua Rio Branco. – Olha quem vem lá, pessoal. Dona Zélia, a mãe do Louro!
– Minha nossa! E se o Louro aparece agora com o dinheiro ou já mesmo com o fumo e tudo o mais? – Com essa pergunta, estava na cara que Zé Carlos temia ficar sem suas benditas doses.
– Psiu... silêncio, cara. Vamos despistar a velha. Deixa que eu falo – disse Beto Reis, todo metido a durão.
Dona Zélia chegou no nosso grupo toda trêmula, coitada. Falava olhando ora para um, ora para outro de nós:
– Cadê o Louro? Ele esteve aqui, não esteve? O que ele fez com o rádio? – Ela estava mesmo aflita.
Beto Reis fez a cara mais inocente deste mundo. Um ator no seu papel preferido. Dissimular. Esconder a verdade. Tapar o sol com a peneira.
– Quem? Ah, o Louro? Dona Zélia, desde aquele dia do problema com o Brequista, quando a senhora veio buscar o Louro aqui, ele não apareceu mais.
– Por favor, crianças, me digam a verdade. Ele veio aqui, não veio? – A voz de dona Zélia agora era só um fiapo. Ela sabia que ninguém ia dizer nada.
– Já falei dona Zélia. Faz um tempão que o Louro não pinta aqui – Beto Reis falou e mergulhou na leitura de um Superman. Ele sempre trazia revistas de quadrinhos na mochila. Aliás, era a única coisa que a gente via sair daquela mochila.
Dona Zélia saiu espumando de raiva. “Aquele cachorro, ele vai ver. Ele me paga”, foi o que ouvimos ela falar, enquanto se afastava pelo mesmo caminho por onde viera: a Rua Rio Branco.
Não se passaram dez minutos que dona Zélia se fora e Louro e ZL apontaram na mesma rua por onde ela tinha ido. Pura sorte não terem se encontrado!
Estavam eufóricos, mascando chicletes. Pelo modo como avançavam em nossa direção, gesticulando, rindo, já tinham se aplicado a droga nas veias.
– Pô, meu, que paulada! O camarada aí quase não levantava do chão, depois que eu apliquei ele – ZL falou rápido, referindo-se ao Louro.
– É, meu. Fiquei mal naquela hora, pensei até que ia vomitar. Senti todos os cabelos do corpo arrepiarem. Um negócio muito estranho, o gosto do Preludim todinho na boca – enquanto Louro falava, suas pupilas dilatavam-se enormemente.
Logo Louro e ZL estavam cercados. Ali mesmo preparavam as doses, e um por um iam se aplicando. Fiquei seriamente tentado a experimentar uma dose naquele dia. Zé Carlos e Zé Henrique ficaram insistindo para que eu tomasse o Preludim. Mas o medo foi maior e acabei recusando.
A noite de sábado vinha chegando com novas promessas. Aquela turma estava a fim de azarar pra valer, mas eu preferi ir para casa, estava abalado com os últimos acontecimentos.
Não conseguia tirar da cabeça nem a piração do Brequista e muito menos a morte do Neguinho Robert. Puxa, em apenas doze dias um louco e um morto: era muita coisa para quem estava ainda engatinhando no mundo das drogas com o eu.
A caminho de casa, lembrei de um episódio acontecido uns dois meses atrás. Foi a vez em que estive mais tempo em companhia do Robert.
Era também um sábado. Dez horas, eu, ZL e Beto Reis tínhamos acabado de fumar uma ponta (ponta, bagana, guimba, beta, tudo significa a mesma coisa: um toco de cigarro), a chuva aumentara e fomos nos proteger nas escadarias da Biblioteca Pública. Foi quando chegou Neguinho Robert de táxi e acenou para nós. Descemos as escadarias correndo e Robert nos recebeu festivo, alegre, exclamando:
– Entrem aí, ligeiro, vamos. Vocês nem acreditam!
– O que foi, cara, ganhou na loteria? – quem fez a pergunta foi o Beto Reis.
Nos aboletamos no táxi. O motorista perguntou “pra onde?”, e o Robert disse pra ele ficar rodando, sem destino, “depois a gente vê”, falou. O táxi desceu a Rua Rio Branco, pegou a Jansen Muller e depois enveredou pela Avenida Beira-Mar.
Enquanto rodávamos, Neguinho Robert respondeu à pergunta que o Beto fizera quando entrávamos no táxi:
– Não foi loteria, mas é como se fosse. Estou cheio da grana, cara! – e mostrou, virando-se, um pacote de cédulas graúdas, dinheiro a bessa.
– O que aconteceu? Fala logo. Desembucha, meu irmão – os olhinhos quase fechados e avermelhados de ZL brilhavam de contentamento. Ele ia passar um fim de semana dos bons, na companhia de Neguinho Robert.
Robert ia no banco da frente, ao lado do taxista. Fiquei no banco traseiro espremido entre Beto e ZL. Neguinho Robert suava, e mascava chicletes sem parar. Estava superligado. Virou-se para nos explicar o que estava se passando, meio por alto, usando gíria, para não fazermos comprometedoras diante do motorista do táxi.
Mas o cara era boa praça e parecia já estar entendendo tudo. Que a gente não era lá grande coisa. Jovens, cabeludos, maconheiros, por aí. Mas estávamos com dinheiro, ele estava fazendo uma big corrida, ia receber pelo seu trabalho e o resto não lhe interessava nem um pouco.
– É, meu irmão. Encontrei um “Otávio” da cidade de Cedral, por acaso. O matuto tava cheio do tutu. Eu estava bebendo uma cerveja no Bar do Hotel Central e vi o “capiau” contar a grana por baixo da mesa. Ele já tinha emborcado uma três cevas. Não desgrudei os olhos do “mané”.
– Cedral? Não é um município da baixada maranhense? – quis saber Beto Reis.
- É, cara. Só tem peixe. Peixe e coco da praia, não dá pra ti. Teu caso não se dar bem com filha de fazendeiro? – disse ZL, em mais uma de suas brincadeiras tão sem graça.
- E aí, Robert, conta o resto, cara, conta... – Beto Reis estava impaciente agora.

(NO PRÓXIMO CAPÍTULO CARLOS CONTINUA LEMBRANCO A AVENTURA EM COMPANHIA DE NEGUINHO ROBERT E EXPERIMENTA PELA PRIMEIRA VEZ DROGA INJETÁVEL)

Raimundo Fontenele

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