11 de jun. de 2019

HORA DE GUARNICÊ, Ê MEU BOI!



          Jamais esqueci uma lição dada por um pequeno infrator, ainda nos anos setenta, durante uma reportagem policial em que esse menor estivera envolvido. Detido pela polícia, chamou muito a atenção do repórter pela sua pouca idade e já entrando no mundo do crime, que, entre outras perguntas, fez a seguinte:
         – Pra você quem é Deus?
         E a resposta:
         – É cumpadi, Deus é vivo, Deus não vacila, Deus não entra em fria...        
         O FOLHETIM DA SEMANA do nosso blog LITERATURA LIMITE (acesse-o no link www.literaturalimite.blogspot.com.br) também é vivo e não vacila. Em fria, a gente entra de vez em quando, pois não somos Deus. É vivo e não vacila porque pega carona nestes festejos juninos, para trazer aos leitores a esquecida coletânea HORA DE GUARNICÊ – Poesia Nova do Maranhão, título sugerido pelo poeta Valdelino Cécio e pelos demais referendado, num total de 14 poetas, a saber: Antônio Moysés, Chagas Val, Cyro Falcão, Cunha Santos Filho, Edmilson Costa, Francisco Tribuzi, Henrique Corrêa, João Alexandre Jr., Johão Wbaldo, Luís Augusto Cassas, Raimundo Fontenele, Rossini Corrêa, Valdelino Cécio e Viriato Gaspar.
         São três sequencias, ambas contendo partes da preciosa e educativa apresentação do escritor maranhense Josué Montello, e poemas de alguns dos antologiados. (RF)
        
Josué Montello*

PRÓLOGO

         Em 1861, em São Luís, um grupo de poetas, constituído de Gentil Homem de Almeida Braga, Antônio Marques Rodrigues, Raimundo de Brito Gomes de Sousa, Luís Antônio Vieira da Silva, Joaquim Serra e Joaquim da Costa Barradas, decidiu reunir em volume as poesias escritas por maranhenses.
         Daí surgiu o PARNASO MARANHENSE, publicado na Tipografia do Progresso, com sede à Rua de Santana, 49, em São Luís.
         No prefácio à coletânea, diziam os seus coordenadores: “A comissão, que, com o trabalho que ora oferece à consideração dos leitores, menos teve em vista dar a lume uma coleção de superiores produções a modo das que compõem o Parnaso Lusitano, do que reunir em um livro a maior cópia de versos escritos por filhos desta Província, não só para salvar a muitos do olvido, senão também para que por esse meio se tornasse bem patente a tendência e particular aptidão, que existe entre nós para esse ramo literário, ficou muito satisfeita e animada com o bom e geral acolhimento, que a idéia recebeu, já nesta e já em outras Províncias.”
         O PARNASO MARANHENSE abria com uma poesia de Lope de Veja, traduzido por Gonçalves Dias.  Não seria o mais representativo do estro gonçalvino. Ainda bem que outros poemas o acompanhavam: mais uma tradução (esta de Heine), e três poesias originais.
         Vinham a seguir os poemas de Antônio Marques Rodrigues, Antônio Joaquim Franco de Sá, Antônio da Cunha Rabelo, Augusto César dos Reis Raiol, Augusto Olímpio Gomes de Castro Alfredo Vale de Carvalho, Antônio César de Berredo, Augusto Frederico Colin, Antônio M. de Carvalho Oliveira, Ayres da Serra Souto-Maior, Caetano Cândido Cantanhede, Caetano de Brito Sousa Gayoso, Coriolano César Ferreira Rosa, Eduardo de Freitas, Francisco Sotero dos Reis,Frederico José Corrêa, Francisco Dias Carneiro, Fernando Vieira de Sousa, Felipe Franco de Sá, Fábio Gomes Faria de Matos, Francisco Sotero dos Reis Junior, Gentil Homem de Almeida Braga, João Duarte Lisboa Serra, José Ricardo Jauffret, José Bernardes Belfot, Serra, José Pereira da Silva, Joaquim Maria Serra Sobrinho, José Mariano da Costa, Joaquim de Sousa Andrade, João Emiliano Vale de Carvalho, J. J. da Silva Maçarona, João Antônio Coqueiro, Jesuína Augusta Serra, Luís Antônio Vieira da Silva, Luís Vieira Ferreira, Luís Queirós Quadros, Manoel Odorico Mendes, Manoel Benício Fontenele, Maria Firmina dos Reis, Nuno Álvares Pereira e Sousa, Pedro Wenescop Cantanhede, Raimundo Brito Gomes de Sousa, R. Alexandre Vale de Carvalho, R. A. de Carvalho Filgueira, Raimundo Pereira e Sousa, Ricardo Henrique Leal, R. Valentiniano de M. Rego, Severiano Antônio de Azevedo, Trajano Galvão de Carvalho e T. F. de Gouveia Pimentel Beleza.
         Ao todo, bem contados, 52 poetas. Destes, só alguns chegaram até nós como poetas. Os demais se orientaram por outros caminhos. Vários deles não deixaram de si outra notícia. De qualquer forma, a coletânea exprimia, para uma população escassa (São Luís, quarenta anos depois da publicação do PARNASO MARANHENSE, tinha 30.000 habitantes), o interesse geral pela poesia. Médicos, bacharéis, políticos, comerciários, professores, e mesmo poetas genuínos, todos ali se interessavam por ela, e a praticavam.
         A coletânea tinha mesmo uma originalidade indiscutível: nela figurava, assinada por José Ricardo Jauffret, a tradução de um episódio de OS LUSÍADAS, o do Gigante Adamastor – para o francês.

VALDELINO CÉCIO
José Valdelino Cécio Soares Dias nasceu em São Luís, a 23 de maio de 1952, onde faleceu em fevereiro de 2007. Colaborador de vários jornais e suplementos literários e um dos fundadores do Movimento Antroponáutica.

MATANÇA

Para Tabaco, João Câncio e todos os demais
amos/homens dos Bumba-meu-boi do
Maranhão

desaparecer
sem avisos sem rastros

         eu cantador
         rompedor do silêncio dos injustos
         nós mesmas vozes
         denunciadoras dos temas impostos

fitas ao vento
lama nos sapatos (descalços)
percorrendo os amigos
percorrendo a cidade

                   – donos das casas chegamos
                   pra lhes cantar e avisar
                   cuidado...

(todo meu salário por esta noite
                            por este instante
                            por este boi)
voz de sonho rouca cansada

         quem morre vos saúda
         e oferece sua carne
         pra continuardes vivendo
         lendo “nossas histórias”
         e tirar do nosso couro
         nas fábricas
         nos campos
         nas ruas

“o sol entra pela porta
alua pela janela”,
estrela na testa
testamento do tempo desconhecido
da loucura num raiar de dia                     
com muita gente e sozinho
cachaça e pandeiros da fome e da esperança

         ser livre é sair por aí cantando
         a morte num dia qualquer
         quando ela é para nós
         todos os dias um pouco

lá vai eu
lá vamos nós tocando
trocando o pedaço do momento vivido
por nada, vivendo te sangro te ressuscito
cada vez que te mato.

         índios explicados por negros
         branco dono gozador
         gozado ficas tu quando gozas
         e eu te gozo pelo grito do urrou

fitas, penas
pena de mim, de ti
dos letrados sentados
carecas de colarinho engomado

         eu cantador
         me coloco a vosso dispor
         e canto nosso sangue (vinho de Portugal)
         chibatas e beijos (mulatada infernal)
         boi ápis, ilha da madeira, ilha grande Maranhão.
lá vai
lá vai boi
no gravador do palhaço sulista
que vem aqui com cara de conhecedor
“terra de cego quem tem um olho (mesmo míope) é senhor”

         hoje nos enfeitam na TV
         e nos ensinam até a canta (nunca a comer)
         eu cantador de incontáveis gerações
         da solidão do que economizo
         pra poder ir em frente
         ou te fazer meu boi
         morrer morbidamente
         no meio de um dia
         ou dum prato de sarrabulho
         que todos comam e riam

                   quero explodir pelo menos
                   contigo, comigo, convosco
                   no tum tum tum da dificuldade de ser
                   (conflito de toda uma boiada)
                   onde eu sofredor me revelo
                   se sei o que faço e me escondo
                   naquilo que agora eu quero
                   (cultura de bumbas e bundas).

descalços vamos pular
vagabundos, poetas, amos, e homens
que nosso boi é rei, e morreu,
e quem atravessar minha toada
com lanças e palavras cairá.

         que não tem mais disso não na cidade que fede
         e meu canto/grito se perde
         na primeira vitrine ou boite.
         e se meu disco rodar
         em sua eletrola
         mostre aos amigos
         e diga: – é gente do povo,
                   engraçados, não é?
         mas eu lhe digo doutor
         se meu boi morre
         é porque amanhã eu sei, ressuscitará.
         comigo ou com meu filho que nasce
         ou com qualquer um que virá.

por isso, doutor, cuidado!–


OBS: Na próxima semana tem a continuação do prefácio de Josué Montello e mais poemas da coletânea HORA DE GUARNICÊ.

3 comentários:


  1. Coisas da minha terra. Saudades do Bumba-meu-boi do meu querido Maranhão.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. A HORA DO GUARNICÊ, antologia fundamental para a poesia atual do maranhão, não podemos falar de um novo modo de fazer poesia aqui sem passar por ela e pelos poetas nela inscritos, hoje a grande maioria poetas extraordinários. Parabéns a todos e ao caminho, Raimundo Fontenele!

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