26 de out. de 2016

CRÔNICAS DO PUCUMÃ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (literaturalimite.blogspot.com.br) traz um novo episódio das CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma série de postagens para todos que se interessam pela leitura, pela história e pelo conhecimento, em forma de crônicas, relatos e entrevistas acerca dos acontecimentos que se relacionam com a História do Município de São Domingos do Maranhão, conhecido, principalmente desde o seu descobrimento até a década de 60, como São Domingos do Zé Feio.
Hoje o assunto é a Casa do Zé Gasolina e um segredo que a gente nunca conseguiu descobrir totalmente. E em seguida inicio contando a minha vida ao lado do Padre Manoel, como sacristão, aluno, cabo eleitoral e amigo.
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A CASA DO ZÉ GASOLINA
No ano de 1997, após uma ausência de mais de trinta anos como residente, voltei a São Domingos por motivos familiares, permanecendo até o dia 6 de janeiro de 2005.
E logo que cheguei, um dos meus passatempos preferidos era caminhar sem rumo, rever a cidade, conhecer novas ruas, observar como a cidade estava mudada e mudando sempre. Assim como acontece conosco, seres humanos que, ao longo da existência, vamos nos transformando, aqui e ali, uma mudança, às vezes pra melhor, às vezes pra pior.
Não recordo se alguém havia me dado alguma dica, acho que sim, sobre uma casa no Alto do Fogo. Era a residência do Zé Gasolina e sua família que despertou vivamente meu interesse, porque descobri parte importante da história de São Domingos.
Se não me engano a casa tinha o número 72 quando a conheci. Quase defronte a casa do Benício, um pouco mais para a frente. A família chegou em São Domingos no final dos anos quarenta ou início de cinquenta, muito provavelmente após a criação do município em 1952, período em que a cidade  recebia, a cada nova seca no nordeste brasileiro, grandes levas de nordestinos.
Lembremo-nos que foi um cearense o descobridor da Lagoa do Zé Feio e que sobretudo cearenses, pernambucanos e paraibanos,são também responsáveis pelo processo civilizatório de São Domingos, em suas várias etapas: povoamento, desenvolvimento da agricultura e do comércio, prestação de serviços, desde o início até os nossos dias.
Um exemplo: quando cheguei a São Domingos, pela segunda vez, em 1955, fomos morar na Rua Nova. Pois naquela rua, além de nossa família de ascendência genuinamente maranhense, meu pai de Colinas, minha mãe de Pedreiras, ali moravam senhor  Manoel Tamburi e dona Izabel e filhos: cearenses; dona Pureza, mãe do Zé de Pureza, um dos meus amigos de infância: pernambucana; outro morador chamava-se Antônio Cearense e assim por diante. Somos uma parte viva do nordeste brasileiro.
Voltando à residência do nosso amigo Zé Gasolina, é o seguinte: o lugar onde fora construído o fogão, daqueles de barro, era uma espécie de altar, uma espécie não, havia sido um altar. Ele e sua esposa me confirmaram a existência de um altar, transformado posteriormente num fogão. A casa era toda de adobe, mas havia um cômodo, grande, espaçoso, cujas paredes haviam sido rebocadas e pintadas.
Zé Gasolina (à direita) e família
A parede era pintada de um azul bem claro, e com uma barra marrom de mais ou menos um metro e meio de altura. Na divisão do azul e do marrom, duas listas horizontais entremeadas por um desenho na forma de laço circundavam todo o salão.
Portanto, a conclusão a que se chega é que ali funcionou um templo religioso. Mas não sabemos de que religião. Poderia ser uma capela católica, uma vez que a igreja da praça, a matriz, havia caído por essa época e aquela capela ou igrejinha poderia está substituindo-a, até que a igreja fosse reconstruída e voltasse a funcionar novamente.
Poderia, por outro lado, ser um templo evangélico, pois a religião protestante, termo usado antigamente para se denominar esse ramo do cristianismo, resultante do cisma havido na igreja católica, através de Martinho Lutero, já era praticada em São Domingos há vários anos.
Antes mesmo da emancipação política do município, por aqui andou um missionário norte-americano, Mr. Smith, divulgando, catequizando e instalando igrejas pentecostais, não somente nesta região, mas viajou e catequizou por todo o Brasil. .
 Minhas tias e meu pai, mas principalmente as tias Aleide e Lili me falavam do Mr. Smith, que hospedara-se, mais de uma vez, na casa do meu avô Antônio Fontenelle, em Colinas; e em São Domingos hospedava-se na residência de um dos mais antigos moradores do município, o senhor  Antônio Bina, na Trizidela, onde foi erguida a primeira igreja evangélica de São Domingos, e por isso, durante muito tempo, a rua principal daquele bairro ficou sendo chamada de Rua dos Crentes.
E por último, mas ninguém pode afirmar nem negar, poderia muito bem, aquela residência do Zé Gasolina, haver sido um templo de umbanda ou macumba, afinal esta é uma religião como outra qualquer e existia uma comunidade de negros que bem poderiam organizar-se num templo, pois sempre o homem teve a necessidade de criar e cultuar seu Deus ou deuses.
Esses moradores da raça negra viviam muito próximo do Alto do Fogo, pois, segundo depoimento do senhor João Bina, filho do velho Antônio Bina, a rua que sai da Praça Getúlio Vargas em direção à Lagoa era conhecida, nos seus primórdios, como Rua dos Pretos.  
E assim, até os nossos dias, permanece esse mistério acerca da famosa casa do Zé Gasolina.

RECORDANDO UM AMIGO

Convivi com o padre Manoel da Penha Oliveira durante vários anos, quase diariamente. Primeiro como sacristão, nos meus 12 anos de idade, viajando por todos os povoados de São Domingos, onde ele rezava missa, casava e batizava. Achava bom, pois, gozando saúde. todo menino é um pouco guloso. E o padre era muito bem tratado. Sempre faziam bolos, matavam gordos capões, saborosos assados, doces variados. Era uma festa para o meu estômago.
E depois, como amigo, durante sua campanha política, e nos anos seguintes, em São Luís, onde sempre visitava-o em sua residência ou na Assembléia. E mais tarde, ao encontrá-lo por aqui por São Domingos, em sua casa na Consolação, com o seu inseparável piano.
Sempre preocupado com a Educação, padre Manoel chegando em São Domingos deparou-se com uma triste realidade. Com exceção dos filhos da família Torres, dos filhos do meu tio e padrinho Raimundo Almeida, do senhor João Henrique, seu Álvaro Bezerra, seu Antoizinho Rodrigues, da família Cazé e mais uns poucos, a maioria dos pais não podiam custear os estudos de seus filhos fora de São Domingos.
Havíamos terminado o primário. Para que não ficássemos sem estudar, e esperando pelo milagre da providência divina, ele criou um Curso de Exame de Admissão, um curso preparatório para ingressarmos no ginásio. Era uma prática escolar àquela época. Ficamos estudando e talvez por que tenha notado minha inteligência e interesse pelos estudos, falou com meus pais sobre a possibilidade de mandarem-me para um seminário para seguir os seus passos, ou seja, tornar-me padre.
Frente da antiga Igreja Matriz
Imaginem. Padre Raimundo Fontenele. Só rindo. Aceitei o convite, minhas tias convenceram minha mãe a deixar-me partir e em janeiro de 1962, graças ao Padre Manoel, lá fui eu, levado pelo meu pai, o “grande” Ribinha, com destino a São Luís e lá ingressei no Seminário de Santo Antônio onde só permaneci um ano.
No fim de 1962, após um balanço da minha vida no seminário naquele ano, os padres chegaram à conclusão que eu não devia permanecer lá. Eu tinha acumulado vários pontos no quesito matérias. Fui o melhor aluno, com as notas mais altas, após uma disputa com um aluno de nome Ribamar, de Pedreiras.
Mas pesavam contra mim notas baixas no comportamento ou disciplina. Mais nada de grave. Faltinhas, molecagens, brincadeiras, pequenas rebeldias. Tipo ficar imitando os padres, sentando na cadeira do professor, lá na frente da turma, imitando o padre dizendo a missa, etc., e, ou era flagrado por um padre, ou então sempre tem aqueles dedos-duros, fofoqueiros, o popular fuxiqueiro.
Resolveram me desligar do seminário. Mas como São Domingos pertence à Diocese de Caxias, e aqui entra o caráter humanitário do Padre Manoel, além de caxiense era muito admirado pelo bispo dom Luiz Gonzaga Marelim, o chefe da Diocese, ele conseguiu que eu tivesse uma segunda chance e, assim, fui transferido para o Seminário da Prainha, em Fortaleza.
Fosse outro, o padre Manoel simplesmente lavaria as mãos como Pilatos e eu que fosse cuidar da minha vida. Mas, não. Quando ele assumia um compromisso ele ia até o fim. Corresse o risco que corresse. Era um homem de caráter forte, decidido. E lutava por aquilo em que acreditava.
Enquanto isso, padre Manoel resolveu fazer da Educação em São Domingos o seu segundo grande apostolado. O primeiro era a Igreja. O segundo era a Escola. Assim, criou a Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino, tornando-se, cada vez mais, empenhado no desenvolvimento espiritual de seu rebanho adulto e a cuidar com zelo e amor do ensino e da educação da juventude são-dominguense.
Esta Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino foi o embrião de outra, a futura Escola Pio XII, responsável pela formação de tantos jovens que se tornariam mais tarde, médicos, advogados, engenheiros, enfermeiros, enfim, ilustres cidadãos são-dominguenses.
 Os nomes das Escolas eram uma homenagem a um dos grandes doutores da Igreja, filósofo e teólogo da maior importância no desenvolvimento e formulação da doutrina da Igreja Católica: São Tomás de Aquino que era, junto com Santo Ambrósio e Santo Agostinho, a trindade de doutores da Igreja Católica muito admirada pelos estudiosos desse ramo da religião cristã. A Escola Pio XII tomou esse nome por conta do Papa Pio XII, cujo pontificado vai  de 1939 até sua morte em 1958.
O ano de 1963, passei-o quase todo no Seminário da Prainha, em Fortaleza. Em outubro daquele ano fui desligado de vez do Seminário. Era muito mais rígido do que o Seminário de São Luís. Sofri muito, por ser ainda novo, filho único, longe de casa, não me sentia integrado, acho que os padres não iam com a minha cara.
Enfim, me aconselharam a sair, uma forma mais branda do que expulsão, visto que eu não havia cometido nenhuma falta grave.
Enquanto isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em São Domingos, dedicado à Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a todos, resolvendo problemas de toda sorte, confortando e consolando todos que lhe procuravam, se interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa comunidade.
        Desligado do seminário, para a igreja e para alguns padres a gente passa a ser um proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz de se adaptar ao rebanho.
Tanto que quando o reitor me chamou em sua sala para me comunicar a saída, já estava com minha passagem de volta comprada, mas só até Caxias. Depois eu que me virasse. Mesmo sendo menor, havia recém completado quinze anos, naquele tempo não havia essa preocupação de juizado de menor, de não poder viajar sem acompanhamento, o certo é que dois dias depois peguei o ônibus da Empresa Expresso de Luxo, Fortaleza-Teresina, e me mandei de lá, mais ansioso de gozar a liberdade do que preocupado com a reação da família e do próprio padre Manoel.
        Naquele início dos anos sessenta nem havia esse negócio de rodoviária. Chegando em Teresina, desci do ônibus na Agência que ficava na Praça Saraiva, peguei minha maleta e saí procurando onde passar a noite. Numa ruazinha ali mesmo perto da Praça descobri um Hotel, coisa simples, e consegui um quarto. A dona chamou um empregado pra ir me mostrar o quarto, e o cara era um pretinho homossexual, maranhense de São Luís, e se mostrou disposto a conversar.
        Eu já tinha decidido que ia aproveitar um pouco a liberdade antes de chegar em casa. E perguntei pra ele sobre as novidades. Ele disse que era um show do cantor cubano Bievenido Granda, um cantor de boleros, tangos e ritmos cubanos. Por portar um grande bigode, no cartaz que anunciava seus shows, após seu nome, acrescentavam “El bigode que canta”!
        Sua música Perfume de Gardênia era um sucesso em toda a América Latina, inclusive em todo o território brasileiro. Falei para o carinha do hotel arranjar uma amiga que a gente ia assistir o show no dia seguinte. Eu pagava tudo. Tinha um pouco de dinheiro, e um relógio da marca “Hernavim”, novo em folha, que eu entreguei pra o camareiro do hotel vender para nós.
Não apenas o show, mas fiquei uns três dias aproveitando a vida e gastando a grana e quando dei um balanço vi que o dinheiro mal dava para comprar passagem até Caxias.
De Teresina pra Caxias é um pulo, e eu cheguei na Casa Paroquial na Praça São Benedito na hora do café da manhã. Os responsáveis pela paróquia eram os monsenhores Clóvis e Gilberto e, conforme disse antes, quando a gente é dispensando do seminário passa a ser olhado com outros olhos. E assim fui tratado friamente pelos monsenhores, senti como se eles me dissessem “olha, a gente não tem mais nenhuma obrigação para com você, te vira!”, pois nem para o café me convidaram.
Pedi para deixar minha maleta ali que em seguida voltava para buscá-la, e me danei a bater pernas pelas ruas, com os pensamentos mais sombrios agora me acossando e me dando um aperto no coração. Praticamente expulso do seminário, sem saber com enfrentar pais e tios, envergonhado perante o padre Manoel, e, o pior, faminto e sem um tostão no bolso.
Naquela aflita caminhada fui parar na beira do rio Itapecuru e até pensei como seria bom se aquelas águas me levassem e acabassem com todo aquele sofrimento. Mas a fome falou mais alto. Caminhei até a Praça do Mercado, cheia de movimento, de caminhoneiros, de gente andando apressada pra lá e pra cá. Resolvi entrar numa lanchonete e comer e depois, sem dinheiro para pagar, sair no pinote, correndo mesmo e fosse o Deus quisesse. E foi o que fiz.
Comi um pastel e uma fatia de bolo e fiquei bebericando o resto do café com leite, devagar, devagarinho, criando coragem pra pegar o embalo e correr dali e daquela situação deveras vexatória, humilhante. Nem sei direito os sentimentos que me afligiam tanto e tão diversos eram.
O certo é quando cheguei no limite do suportável, coloquei a xícara no balcão e comecei a tomar impulso pra me pirulitar dali, quando, mandado por Deus, vejo entrando na lanchonete um conhecido, amigo do meu pai, o senhor Zuca da Totonha. Fiquei na dúvida se era Zuca ou Juca. Mas eu optei por Zuca, e acho que era assim que era chamado. Ele era caminhoneiro, casado com dona Totonha irmã da dona Alvina e da dona Santana do Sebastião Mota.
        Joguei-me nos braços do seu Zuca, até alguma lágrima deve ter rolado, e lhe contei rapidamente minha situação. Ele disse que não me preocupasse, ele ia carregar o carro e depois ia para São Domingos. Nem acreditei. Salvo, eu estava salvo, meu coração agora pulava de alegria. Até esqueci que tinha caído fora do colégio e isso era mais uma bronca a enfrentar.
        Ele disse que ia ficar ali mesmo e eu fui na casa dos padres buscar minha maleta e depois do almoço pegamos a estrada. Entrei em casa sobressaltado, mas fui logo dando a real para a minha mãe que, apesar de brava, era muito compreensiva, e me lembro que ela disse que se era para ser um padre sem vocação, quer dizer um mau sacerdote, era melhor ter saído.
E acho que ela ficava também contente em me ter perto dela, mãe a gente sabe como é, e além do mais eu era filho único, apesar de ter uma irmã de criação, registrada como filha, a Gracinha, que Deus também levou em 2014, como já levara meu pai em 1987 e minha mãe em 2011.
        Eu estava de novo sob a proteção do padre Manoel que, reconhecendo em mim alguns talentos, resolveu me dar uma terceira chance e lá estava eu sendo professor de uma turma do 2º ano primário, com trinta e seis alunos, entre os quais lembro do Clodomir, da Lúcia do senhor Genésio, da Carmen do finado Hermes, como lembrar de todos? Mas foi assim que iniciei o ano de 1964.
No meio do ano restavam apenas 12 alunos, os pais foram tirando um a um os filhos, eu era quase tão criança quanto eles, e uma vez, num dia de prova, em que eles não me obedeciam, era um converseiro sem tamanho, avancei e tomei a prova da maior parte, numas dei zero e outras rasguei e sapateei em cima. Ali acabou a minha carreira de professor. Já havia no ano anterior encerrado a carreira de padreco. Mas o padre Manoel me tirou da sala de aula e me colocou como Secretário da Escola Paroquial Santo Tomás, onde me saí mais ou menos.
Perto do final do ano, um grande acontecimento estava chegando para marcar a vida comercial de São Domingos.  Eram as Casas Pernambucanas, para onde fui viver a experiência do primeiro emprego com carteira assinada. Mas essa história fica para outro momento, e vamos continuar com as lembranças que tenho do meu querido amigo, aliás, mais que amigo, um mentor intelectual e um pai espiritual, o padre Manoel Oliveira.

Raimundo Fontenele





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