A coluna QUARTA É
DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (literaturalimite.blogspot.com.br) traz
um novo episódio das CRÔNICAS DO PUCUMÃ, uma série de postagens para todos que
se interessam pela leitura, pela história e pelo conhecimento, em forma de
crônicas, relatos e entrevistas acerca dos acontecimentos que se relacionam com
a História do Município de São Domingos do Maranhão, conhecido, principalmente
desde o seu descobrimento até a década de 60, como São Domingos do Zé Feio.
Hoje o assunto é a Casa do Zé
Gasolina e um segredo que a gente nunca conseguiu descobrir totalmente. E em
seguida inicio contando a minha vida ao lado do Padre Manoel, como sacristão,
aluno, cabo eleitoral e amigo.
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A CASA DO ZÉ GASOLINA
No ano de 1997, após uma ausência de mais de trinta anos como
residente, voltei a São Domingos por motivos familiares, permanecendo até o dia
6 de janeiro de 2005.
E logo que cheguei, um dos meus passatempos preferidos era
caminhar sem rumo, rever a cidade, conhecer novas ruas, observar como a cidade
estava mudada e mudando sempre. Assim como acontece conosco, seres humanos que,
ao longo da existência, vamos nos transformando, aqui e ali, uma mudança, às
vezes pra melhor, às vezes pra pior.
Não recordo se alguém havia me dado alguma dica, acho que
sim, sobre uma casa no Alto do Fogo. Era a residência do Zé Gasolina e sua
família que despertou vivamente meu interesse, porque descobri parte importante
da história de São Domingos.
Se não me engano a casa tinha o número 72 quando a conheci.
Quase defronte a casa do Benício, um pouco mais para a frente. A família chegou
em São Domingos no final dos anos quarenta ou início de cinquenta, muito
provavelmente após a criação do município em 1952, período em que a cidade recebia, a cada nova seca no nordeste
brasileiro, grandes levas de nordestinos.
Lembremo-nos que foi um cearense o descobridor da Lagoa do Zé
Feio e que sobretudo cearenses, pernambucanos e
paraibanos,são também responsáveis pelo processo civilizatório de São Domingos,
em suas várias etapas: povoamento, desenvolvimento da agricultura e do
comércio, prestação de serviços, desde o início até os nossos dias.
Um exemplo: quando cheguei a São Domingos, pela
segunda vez, em 1955, fomos morar na Rua Nova. Pois naquela rua, além de nossa
família de ascendência genuinamente maranhense, meu pai de Colinas, minha mãe
de Pedreiras, ali moravam senhor Manoel
Tamburi e dona Izabel e filhos: cearenses; dona Pureza, mãe do Zé de Pureza, um
dos meus amigos de infância: pernambucana; outro morador chamava-se Antônio
Cearense e assim por diante. Somos uma parte viva do nordeste brasileiro.
Voltando à residência do nosso amigo Zé Gasolina, é o seguinte: o lugar onde fora
construído o fogão, daqueles de barro, era uma espécie de altar, uma espécie
não, havia sido um altar. Ele e sua esposa me confirmaram a existência de um
altar, transformado posteriormente num fogão. A casa era toda de adobe, mas
havia um cômodo, grande, espaçoso, cujas paredes haviam sido rebocadas e
pintadas.
Zé Gasolina (à direita) e família |
A parede era pintada de um azul bem claro, e com
uma barra marrom de mais ou menos um metro e meio de altura. Na divisão do azul
e do marrom, duas listas horizontais entremeadas por um desenho na forma de
laço circundavam todo o salão.
Portanto, a conclusão a que se chega é que ali
funcionou um templo religioso. Mas não sabemos de que religião. Poderia ser uma
capela católica, uma vez que a igreja da praça, a matriz, havia caído por essa
época e aquela capela ou igrejinha poderia está substituindo-a, até que a
igreja fosse reconstruída e voltasse a funcionar novamente.
Poderia, por outro lado, ser um templo evangélico,
pois a religião protestante, termo usado antigamente para se denominar esse
ramo do cristianismo, resultante do cisma havido na igreja católica, através de
Martinho Lutero, já era praticada em São Domingos há vários anos.
Antes mesmo da emancipação política do município,
por aqui andou um missionário norte-americano, Mr. Smith, divulgando,
catequizando e instalando igrejas pentecostais, não somente nesta região, mas
viajou e catequizou por todo o Brasil. .
Minhas tias
e meu pai, mas principalmente as tias Aleide e Lili me falavam do Mr. Smith,
que hospedara-se, mais de uma vez, na casa do meu avô Antônio Fontenelle, em
Colinas; e em São Domingos hospedava-se na residência de um dos mais antigos
moradores do município, o senhor Antônio
Bina, na Trizidela, onde foi erguida a primeira igreja evangélica de São
Domingos, e por isso, durante muito tempo, a rua principal daquele bairro ficou
sendo chamada de Rua dos Crentes.
E por último, mas ninguém pode afirmar nem negar,
poderia muito bem, aquela residência do Zé Gasolina, haver sido um templo de
umbanda ou macumba, afinal esta é uma religião como outra qualquer e existia uma
comunidade de negros que bem poderiam organizar-se num templo, pois sempre o
homem teve a necessidade de criar e cultuar seu Deus ou deuses.
Esses moradores da raça negra viviam muito próximo
do Alto do Fogo, pois, segundo depoimento do senhor João Bina, filho do velho
Antônio Bina, a rua que sai da Praça Getúlio Vargas em direção à Lagoa era
conhecida, nos seus primórdios, como Rua dos Pretos.
E assim, até os nossos dias, permanece esse
mistério acerca da famosa casa do Zé Gasolina.
RECORDANDO UM AMIGO
Convivi com o padre Manoel da Penha Oliveira durante
vários anos, quase diariamente. Primeiro como sacristão, nos meus 12 anos de
idade, viajando por todos os povoados de São Domingos, onde ele rezava missa,
casava e batizava. Achava bom, pois, gozando saúde.
todo menino é um pouco guloso. E o padre era muito bem tratado. Sempre faziam
bolos, matavam gordos capões, saborosos assados, doces variados. Era uma festa
para o meu estômago.
E
depois, como amigo, durante sua campanha política, e nos anos seguintes, em São
Luís, onde sempre visitava-o em sua residência ou na Assembléia. E mais tarde,
ao encontrá-lo por aqui por São Domingos, em sua casa na Consolação, com o seu
inseparável piano.
Sempre
preocupado com a Educação, padre Manoel chegando em São Domingos deparou-se com
uma triste realidade. Com exceção dos filhos da família Torres, dos filhos do
meu tio e padrinho Raimundo Almeida, do senhor João Henrique, seu Álvaro
Bezerra, seu Antoizinho Rodrigues, da família Cazé e mais uns poucos, a maioria
dos pais não podiam custear os estudos de seus filhos fora de São Domingos.
Havíamos
terminado o primário. Para que não ficássemos sem estudar, e esperando pelo
milagre da providência divina, ele criou um Curso de Exame de Admissão, um
curso preparatório para ingressarmos no ginásio. Era uma prática escolar àquela
época. Ficamos estudando e talvez por que tenha notado minha inteligência e
interesse pelos estudos, falou com meus pais sobre a possibilidade de
mandarem-me para um seminário para seguir os seus passos, ou seja, tornar-me
padre.
Frente da antiga Igreja Matriz |
Imaginem.
Padre Raimundo Fontenele. Só rindo. Aceitei o convite, minhas tias convenceram
minha mãe a deixar-me partir e em janeiro de 1962, graças ao Padre Manoel, lá
fui eu, levado pelo meu pai, o “grande” Ribinha, com destino a São Luís e lá
ingressei no Seminário de Santo Antônio onde só permaneci um ano.
No fim de 1962, após um balanço da minha vida
no seminário naquele ano, os padres chegaram à conclusão que eu não devia
permanecer lá. Eu tinha acumulado vários pontos no quesito matérias. Fui o
melhor aluno, com as notas mais altas, após uma disputa com um aluno de nome
Ribamar, de Pedreiras.
Mas pesavam contra mim notas baixas no
comportamento ou disciplina. Mais nada de grave. Faltinhas, molecagens, brincadeiras, pequenas rebeldias. Tipo ficar imitando
os padres, sentando na cadeira do professor, lá na frente da turma, imitando o
padre dizendo a missa, etc., e, ou era flagrado por um padre, ou então sempre
tem aqueles dedos-duros, fofoqueiros, o popular fuxiqueiro.
Resolveram
me desligar do seminário. Mas como São Domingos pertence à Diocese de Caxias, e
aqui entra o caráter humanitário do Padre Manoel, além de caxiense era muito
admirado pelo bispo dom Luiz Gonzaga Marelim, o chefe da Diocese, ele conseguiu
que eu tivesse uma segunda chance e, assim, fui transferido para o Seminário da
Prainha, em Fortaleza.
Fosse
outro, o padre Manoel simplesmente lavaria as mãos como Pilatos e eu que fosse
cuidar da minha vida. Mas, não. Quando ele assumia um compromisso ele ia até o
fim. Corresse o risco que corresse. Era um homem de caráter forte, decidido. E lutava
por aquilo em que acreditava.
Enquanto
isso, padre Manoel resolveu fazer da Educação em São Domingos o seu segundo
grande apostolado. O primeiro era a Igreja. O segundo era a Escola. Assim,
criou a Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino, tornando-se, cada vez mais,
empenhado no desenvolvimento espiritual de seu rebanho adulto e a cuidar com
zelo e amor do ensino e da educação da juventude são-dominguense.
Esta
Escola Paroquial Santo Tomás de Aquino foi o embrião de outra, a futura Escola
Pio XII, responsável pela formação de tantos jovens que se tornariam mais
tarde, médicos, advogados, engenheiros, enfermeiros, enfim, ilustres cidadãos
são-dominguenses.
Os nomes das Escolas eram uma homenagem a um
dos grandes doutores da Igreja, filósofo e teólogo da maior importância no
desenvolvimento e formulação da doutrina da Igreja Católica: São Tomás de
Aquino que era, junto com Santo Ambrósio e Santo Agostinho, a trindade de
doutores da Igreja Católica muito admirada pelos estudiosos desse ramo da
religião cristã. A Escola Pio XII tomou esse nome por conta do Papa Pio XII, cujo
pontificado vai de 1939 até sua morte em
1958.
O ano de 1963, passei-o quase todo no
Seminário da Prainha, em Fortaleza. Em outubro daquele ano fui desligado de vez
do Seminário. Era muito mais rígido do que o Seminário de São Luís. Sofri
muito, por ser ainda novo, filho único, longe de casa, não me sentia integrado,
acho que os padres não iam com a minha cara.
Enfim, me aconselharam a sair, uma forma mais
branda do que expulsão, visto que eu não havia cometido nenhuma falta grave.
Enquanto isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em São Domingos, dedicado à Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a todos, resolvendo problemas de toda sorte, confortando e consolando todos que lhe procuravam, se interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa comunidade.
Desligado do seminário, para a igreja e para alguns padres a gente passa a ser um proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz de se adaptar ao rebanho.
Enquanto isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em São Domingos, dedicado à Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a todos, resolvendo problemas de toda sorte, confortando e consolando todos que lhe procuravam, se interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa comunidade.
Desligado do seminário, para a igreja e para alguns padres a gente passa a ser um proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz de se adaptar ao rebanho.
Tanto que quando o reitor me chamou em sua
sala para me comunicar a saída, já estava com minha passagem de volta comprada,
mas só até Caxias. Depois eu que me virasse. Mesmo sendo menor, havia recém completado
quinze anos, naquele tempo não havia essa preocupação de juizado de menor, de
não poder viajar sem acompanhamento, o certo é que dois dias depois peguei o
ônibus da Empresa Expresso de Luxo, Fortaleza-Teresina, e me mandei de lá, mais
ansioso de gozar a liberdade do que preocupado com a reação da família e do
próprio padre Manoel.
Naquele início dos anos
sessenta nem havia esse negócio de rodoviária. Chegando em Teresina, desci do
ônibus na Agência que ficava na Praça Saraiva, peguei minha maleta e saí
procurando onde passar a noite. Numa ruazinha ali mesmo perto da Praça descobri
um Hotel, coisa simples, e consegui um quarto. A dona chamou um empregado pra
ir me mostrar o quarto, e o cara era um pretinho homossexual, maranhense de São
Luís, e se mostrou disposto a conversar.
Eu já tinha decidido que ia
aproveitar um pouco a liberdade antes de chegar em casa. E perguntei pra ele
sobre as novidades. Ele disse que era um show do cantor cubano Bievenido
Granda, um cantor de boleros, tangos e ritmos cubanos. Por portar um grande
bigode, no cartaz que anunciava seus shows, após seu nome, acrescentavam “El
bigode que canta”!
Sua música Perfume de
Gardênia era um sucesso em toda a América Latina, inclusive em todo o
território brasileiro. Falei para o carinha do hotel arranjar uma amiga que a
gente ia assistir o show no dia seguinte. Eu pagava tudo. Tinha um pouco de
dinheiro, e um relógio da marca “Hernavim”, novo em folha, que eu entreguei pra
o camareiro do hotel vender para nós.
Não apenas o show, mas fiquei uns três dias
aproveitando a vida e gastando a grana e quando dei um balanço vi que o
dinheiro mal dava para comprar passagem até Caxias.
De Teresina pra Caxias é um pulo, e eu cheguei na
Casa Paroquial na Praça São Benedito na hora do café da manhã. Os responsáveis
pela paróquia eram os monsenhores Clóvis e Gilberto e, conforme disse antes,
quando a gente é dispensando do seminário passa a ser olhado com outros olhos.
E assim fui tratado friamente pelos monsenhores, senti como se eles me
dissessem “olha, a gente não tem mais nenhuma obrigação para com você, te
vira!”, pois nem para o café me convidaram.
Pedi para deixar minha maleta ali que em seguida
voltava para buscá-la, e me danei a bater pernas pelas ruas, com os pensamentos
mais sombrios agora me acossando e me dando um aperto no coração. Praticamente
expulso do seminário, sem saber com enfrentar pais e tios, envergonhado perante
o padre Manoel, e, o pior, faminto e sem um tostão no bolso.
Naquela aflita caminhada fui parar na beira do rio
Itapecuru e até pensei como seria bom se aquelas águas me levassem e acabassem
com todo aquele sofrimento. Mas a fome falou mais alto. Caminhei até a Praça do
Mercado, cheia de movimento, de caminhoneiros, de gente andando apressada pra
lá e pra cá. Resolvi entrar numa lanchonete e comer e depois, sem dinheiro para
pagar, sair no pinote, correndo mesmo e fosse o Deus quisesse. E foi o que fiz.
Comi um pastel e uma fatia de bolo e fiquei
bebericando o resto do café com leite, devagar, devagarinho, criando coragem
pra pegar o embalo e correr dali e daquela situação deveras vexatória,
humilhante. Nem sei direito os sentimentos que me afligiam tanto e tão diversos
eram.
O certo é quando cheguei no limite do suportável,
coloquei a xícara no balcão e comecei a tomar impulso pra me pirulitar dali,
quando, mandado por Deus, vejo entrando na lanchonete um conhecido, amigo do
meu pai, o senhor Zuca da Totonha. Fiquei na dúvida se era Zuca ou Juca. Mas eu
optei por Zuca, e acho que era assim que era chamado. Ele era caminhoneiro,
casado com dona Totonha irmã da dona Alvina e da dona Santana do Sebastião
Mota.
Joguei-me nos braços do seu
Zuca, até alguma lágrima deve ter rolado, e lhe contei rapidamente minha
situação. Ele disse que não me preocupasse, ele ia carregar o carro e depois ia
para São Domingos. Nem acreditei. Salvo, eu estava salvo, meu coração agora
pulava de alegria. Até esqueci que tinha caído fora do colégio e isso era mais
uma bronca a enfrentar.
Ele disse que ia ficar ali
mesmo e eu fui na casa dos padres buscar minha maleta e depois do almoço
pegamos a estrada. Entrei em casa sobressaltado, mas fui logo dando a real para
a minha mãe que, apesar de brava, era muito compreensiva, e me lembro que ela
disse que se era para ser um padre sem vocação, quer dizer um mau sacerdote,
era melhor ter saído.
E acho que ela ficava também contente em me ter
perto dela, mãe a gente sabe como é, e além do mais eu era filho único, apesar
de ter uma irmã de criação, registrada como filha, a Gracinha, que Deus também
levou em 2014, como já levara meu pai em 1987 e minha mãe em 2011.
Eu estava de novo sob a
proteção do padre Manoel que, reconhecendo em mim alguns talentos, resolveu me
dar uma terceira chance e lá estava eu sendo professor de uma turma do 2º ano
primário, com trinta e seis alunos, entre os quais lembro do Clodomir, da Lúcia
do senhor Genésio, da Carmen do finado Hermes, como lembrar de todos? Mas foi
assim que iniciei o ano de 1964.
No meio do ano restavam apenas 12 alunos, os pais
foram tirando um a um os filhos, eu era quase tão criança quanto eles, e uma
vez, num dia de prova, em que eles não me obedeciam, era um converseiro sem
tamanho, avancei e tomei a prova da maior parte, numas dei zero e outras
rasguei e sapateei em cima. Ali acabou a minha carreira de professor. Já havia
no ano anterior encerrado a carreira de padreco. Mas o padre Manoel me tirou da
sala de aula e me colocou como Secretário da Escola Paroquial Santo Tomás, onde
me saí mais ou menos.
Perto do final do ano, um grande acontecimento
estava chegando para marcar a vida comercial de São Domingos. Eram as Casas Pernambucanas, para onde fui
viver a experiência do primeiro emprego com carteira assinada. Mas essa
história fica para outro momento, e vamos continuar com as lembranças que tenho
do meu querido amigo, aliás, mais que amigo, um mentor intelectual e um pai
espiritual, o padre Manoel Oliveira.
Raimundo Fontenele
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