17 de dez. de 2016

A COLHEITA DO MUNDO - 1



INVENÇÕES: A ÁGUA

arrimo das águas primeiras
(mas turvas)
escrevo versos que invento líquidos
na tarde clara de um setembro triste
é assim a tarde trabalhada na madeira
a noite exasperada de sobrancelhas espessas
e o dia findo findo
agora que das águas
depende o rumo do mar e do amor
que correm junto aos juncos e aos junquilhos
águas do Mearim
águas do Guaíba
águas de ti e de mim
no meu coração marinho
a vida toda é gelo
meu coração inverno ao inverso
líquido bate
surdo gemido na sala
la luma sobre o crepúsculo
alarde
a tarde ainda morde
arde na veia o sol líquido das muralhas
a esquina do mundo em que se ancoram carrascos
la luna pintada em seu rosto                                               
Jocasta e mãe do seu Édipo em delírio
lá fora são as formas fundas
os escombros do ser nas luminárias
o neon da palavra
a metrópole longínqua e seus raios
olho do mundo cego
orvalho de várzea
não houvesse o poema não houvesse verso
não tivesse a poesia gosto úmido de mujique russo:
o Rasputin olhado noutro espelho
o Dylan Thomas de cristal e esporas
sobre o cavalo-lesma ferido e vazado
junho é todos os meses
os cantares mais primevos
testemunham esta desolação de corpo inteiro
medido e dobrado
cuspido e colado ao verbo que o nutre
para ti me abstenho
e a ti me algemo mais que a um segredo:
faça-se a luz e a luz não foi feita
foi inventada
invente-se também a treva da espessura das águas
e os quadrúpedes com seus holofotes
faça-se a vida e a vida não foi feita
perdeu-se
junto com velhos trastes que eu usava
e fez-se também a morte
do mesmo amargo da mágoa

Raimundo Fontenele


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