14 de dez. de 2016

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje mais um capítulo do livro em série DO OIAPOQUE AO CHUÍ.
Brasil enorme que parece ser vários países (e é!), Raimundo Fontenele fala sobre a nossa pluralidade cultural ao contar a viagem que Gabriel faz com seu tio, do Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor conhecer os costumes e diversidades de nosso país.

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

Não adianta, Gabriel. Pode perguntar à vontade. A resposta tu só terás ao vivo, quando chegares nesses lugares.
Logo tio Marcos estava olhando o relógio, piscando-me um olho:
– Pega um papel e uma caneta. Vou dizer o que precisas levar na viagem. Mas é só isso. Não deixa a Marta enfiar na mala o que ela acha que vais precisar. Só o que estou te dizendo, certo?
Rápido, The Flash estava atento, lápis e papel na mão.
– Tá, tio. Manda bala.
– Então, anota: 2 pijamas, 6 pares de meia, 8 cuecas, 8 camisas de manga curta, 6 calças, 1 par de sapato preto social, 1 sandália havaiana, , 1 sandália dessas chamadas franciscanas. – Tio Marcos ficou pensativo alguns segundos e continuou: – Que mais? Escova, creme dental, sabonete, essas frescuras que a gente usa para ficar cheiroso e que as mulheres adoram.
O tio percebeu que fiquei triste. Quando ele falou em mulheres, pensei logo na Selminha. A gente se dava superbem. Ela, que nada sabia da viagem, estava contando que eu ia passar uns dias em Camboriú, onde os pais dela possuíam casa e costumavam veranear.
No verão passado eu tinha ficado todo o mês de fevereiro em Camboriú. Aliás, falar Camboriú, referindo-se à praia, é errado. O nome do município é Balneário Camboriú e está situado no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Camboriú é o município mais antigo, de onde se originou o Balneário.
O formato da Avenida Atlântica lembra a Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro.  E alguns habitantes do lugar orgulham-se de tal semelhança com a Cidade Maravilhosa. Durante a temporada de veraneio, que vai do final de dezembro até início de março, a cidade se transforma.
No inverno, parece uma típica cidadezinha média do interior, com uma população de cerca de 120.000 habitantes. E muita bicicleta nas ruas, o meio de locomoção mais utilizado pela tranquila gente do lugar.
No verão, a coisa muda de figura. Seus edifícios, hotéis, casas, comportam uma população de quase 500.000 pessoas, número facilmente alcançado nas festas de fim de ano e ano novo, A noite, ali pelas imediações das Avenidas ABC (Atlântica, Brasil e Central) não tem nenhuma diferença da noite de qualquer grande capital brasileira. Motos envenenadas, carrões importados, som,. Barulho, droga, misses, prostitutas de luxo, dondocas, bares e restaurantes cinco estrelas.
As placas dos carros são dos mais diversos e distantes lugares: São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Vitória, Buenos Aires, Montevidéu, Olinda, Recife, Assunção, João Pessoa, Porto Alegre, Uberaba, enfim, a noite ferve.
– Deixa de bobagem, Gabriel. Vamos ficar fora menos de dois meses. Passam voando – foi o que disse o tio, vendo minha tristeza e adivinhando meus pensamentos.
– É que fiquei pensando em Camboriú, tio, e lembrei da Selma...
– Rapaz, tu vais ver cada beleza paraense, maranhense, cearense, carioca! A mulher brasileira é uma das mais bonitas da Terra. Digo isso sem patriotada, garoto. A única exceção são as mulheres piauienses. As de Teresina, capital do Piauí, principalmente que, segundo os maranhenses, têm as pernas finas.
Tio Marcos estava de saída. Quando ele ficava de pé, segurando a pasta, e andando de um lado para outro, podia-se contar na certa, para dizer tchau não faltava nada. Antes de ir, porém, acrescentou com aquele piscar de olho característico, que era também um sorriso mal disfarçado:
– Mas isso é onda dos maranhenses. Faz parte da rixa folclórica que existe entre cidades próximas umas das outras. E a coisa é antiga. Vem desde Atenas e Esparta. São Paulo e Rio de Janeiro. Curitiba e Florianópolis. E mais de um milhão delas espalhadas pelo mundo.
– Sei...  – respondi, reticente. Eu estava pensando no que mamãe tinha falado e acrescentei? – Tio Marcos, mamãe falou que vou precisar de uma autorização do Juizado de Menores, verdade?
– Verdade, Gabriel. Minha querida irmã não mentiu. Mas não te preocupes, estou providenciando tudo. – Fez uma reverência à moda oriental. – Até mais ver, meu príncipe.
Ia ser muito legal fazer essa viagem com o tio. Ele é um cara feliz, sempre pra cima, alegre, de bom humor. A vida inteira foi assim. Ele mesmo conta, orgulhoso.
Diferente do pai, que está sempre distante, frio. Metido em negócios e aventuras noturnas. A mãe faz que acredita nas milhares de reuniões que ele arranja, sempre à noite. Sempre sem ter hora para voltar. Ia me fazer bem ficar longe de casa uns dias.
Tio Marcos passou a maior parte da vida viajando, fazendo mil coisas, quase todas com sucesso. Aposentou-se com um salário mensal de 8.500 reais no Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, onde exerceu cargo de direção. Possuía essa fazenda com algumas cabeças de gado em Santarém, no Pará, uma “coisinha de nada”, como ele dizia, e que dava mais despesa que lucro. Mas co m o tio Marcos a gente nunca sabe o que é verdade e o que é fantasia.
A viagem seria de ônibus, claro, não porque o tio não dispusesse de grana para o avião, de jeito nenhum, mas simplesmente porque a janelinha do ônibus é mais atenta à paisagem que a do avião, que num pulo ou dois atravessa o país sem deixar a gente ver coisa alguma.
Sexta feira, na aula de judô, Maurinho me deu o mapa que tinha prometido. A gente se despediu e ele, rindo, voltou a brincar, dizendo:
– Tudo de bom, Gabriel. Aproveita, cara. E se cuida para não virar bispo Sardinha. – Ele falava isso porque dizia que para onde eu ia só tinha índio.
E se os dias voaram, eu também voei, e chegou o grande dia.
Amanheceu o sábado, 14, e nossa viagem bateu à porta. Vinte e uma horas e dez minutos, a gente estava no Box 42 da Rodoviária, esperando o ônibus da Real Expresso, a empresa na qual iríamos, chegar para o embarque. Eu e o tio Marcos e mais a mãe e o pai que foram nos levar de carro. A mãe não parava de dar conselhos. Para eu não sair sozinho. Que para onde íamos era uma terra cheia de violência, miséria, pistoleiros a granel, por causa dos conflitos de terra e dos garimpos.
– Ora, mãe, todo mundo sabe que onde existe mais violência é em cidade grande. Não se preocupe que sei me cuidar. E tem o tio Marcos que é fera, né, tio? – falei exaltado. A proximidade do embarque fazia meu coração dar pinotes, verdadeiras piruetas emocionais.
– Olhem, o motorista já vai subir. Vamos, Gabriel. Como diz o poeta Neruda, “É hora de partir, ó abandonado!” – tio Marcos abraçou fortemente a irmã, e despediu-se com um parto de mão de meu pai.
Ocupamos as poltronas 17 e 18, tio Marcos na janela, e vinte e uma e trinta e cinco, obviamente nunca em ponto, o motorista deu a partida e o ônibus foi se afastando lentamente da Rodoviária com destino a Brasília.   (CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)

Raimundo Fontenele

Nenhum comentário:

Postar um comentário