A
coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje mais um capítulo do livro em série
DO OIAPOQUE AO CHUÍ.
Brasil
enorme que parece ser vários países (e é!), Raimundo Fontenele fala sobre a
nossa pluralidade cultural ao contar a viagem que Gabriel faz com seu tio, do
Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata
de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa
concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor
conhecer os costumes e diversidades de nosso país.
DO
OIAPOQUE AO CHUÍ
–
Não adianta, Gabriel. Pode perguntar à vontade. A resposta tu só terás ao vivo,
quando chegares nesses lugares.
Logo
tio Marcos estava olhando o relógio, piscando-me um olho:
–
Pega um papel e uma caneta. Vou dizer o que precisas levar na viagem. Mas é só
isso. Não deixa a Marta enfiar na mala o que ela acha que vais precisar. Só o
que estou te dizendo, certo?
Rápido,
The Flash estava atento, lápis e papel na mão.
–
Tá, tio. Manda bala.
–
Então, anota: 2 pijamas, 6 pares de meia, 8 cuecas, 8 camisas de manga curta, 6
calças, 1 par de sapato preto social, 1 sandália havaiana, , 1 sandália dessas
chamadas franciscanas. – Tio Marcos ficou pensativo alguns segundos e
continuou: – Que mais? Escova, creme dental, sabonete, essas frescuras que a
gente usa para ficar cheiroso e que as mulheres adoram.
O
tio percebeu que fiquei triste. Quando ele falou em mulheres, pensei logo na
Selminha. A gente se dava superbem. Ela, que nada sabia da viagem, estava
contando que eu ia passar uns dias em Camboriú, onde os pais dela possuíam casa
e costumavam veranear.
No
verão passado eu tinha ficado todo o mês de fevereiro em Camboriú. Aliás, falar
Camboriú, referindo-se à praia, é errado. O nome do município é Balneário
Camboriú e está situado no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Camboriú é o
município mais antigo, de onde se originou o Balneário.
O
formato da Avenida Atlântica lembra a Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro. E alguns habitantes do lugar orgulham-se de
tal semelhança com a Cidade Maravilhosa. Durante a temporada de veraneio, que
vai do final de dezembro até início de março, a cidade se transforma.
No
inverno, parece uma típica cidadezinha média do interior, com uma população de
cerca de 120.000 habitantes. E muita bicicleta nas ruas, o meio de locomoção
mais utilizado pela tranquila gente do lugar.
No
verão, a coisa muda de figura. Seus edifícios, hotéis, casas, comportam uma
população de quase 500.000 pessoas, número facilmente alcançado nas festas de
fim de ano e ano novo, A noite, ali pelas imediações das Avenidas ABC
(Atlântica, Brasil e Central) não tem nenhuma diferença da noite de qualquer
grande capital brasileira. Motos envenenadas, carrões importados, som,.
Barulho, droga, misses, prostitutas de luxo, dondocas, bares e restaurantes
cinco estrelas.
As
placas dos carros são dos mais diversos e distantes lugares: São Paulo, Belo
Horizonte, Curitiba, Vitória, Buenos Aires, Montevidéu, Olinda,
Recife, Assunção, João Pessoa, Porto Alegre, Uberaba, enfim, a noite ferve.
–
Deixa de bobagem, Gabriel. Vamos ficar fora menos de dois meses. Passam voando
– foi o que disse o tio, vendo minha tristeza e adivinhando meus pensamentos.
– É
que fiquei pensando em Camboriú, tio, e lembrei da Selma...
–
Rapaz, tu vais ver cada beleza paraense, maranhense, cearense, carioca! A
mulher brasileira é uma das mais bonitas da Terra. Digo isso sem patriotada,
garoto. A única exceção são as mulheres piauienses. As de Teresina, capital do
Piauí, principalmente que, segundo os maranhenses, têm as pernas finas.
Tio
Marcos estava de saída. Quando ele ficava de pé, segurando a pasta, e andando
de um lado para outro, podia-se contar na certa, para dizer tchau não faltava
nada. Antes de ir, porém, acrescentou com aquele piscar de olho característico,
que era também um sorriso mal disfarçado:
–
Mas isso é onda dos maranhenses. Faz parte da rixa folclórica que existe entre
cidades próximas umas das outras. E a coisa é antiga. Vem desde Atenas e
Esparta. São Paulo e Rio de Janeiro. Curitiba e Florianópolis. E mais de um
milhão delas espalhadas pelo mundo.
–
Sei... – respondi, reticente. Eu estava
pensando no que mamãe tinha falado e acrescentei? – Tio Marcos, mamãe falou que
vou precisar de uma autorização do Juizado de Menores, verdade?
–
Verdade, Gabriel. Minha querida irmã não mentiu. Mas não te preocupes, estou
providenciando tudo. – Fez uma reverência à moda oriental. – Até mais ver, meu
príncipe.
Ia
ser muito legal fazer essa viagem com o tio. Ele é um cara feliz, sempre pra
cima, alegre, de bom humor. A vida inteira foi assim. Ele mesmo conta,
orgulhoso.
Diferente
do pai, que está sempre distante, frio. Metido em negócios e aventuras noturnas.
A mãe faz que acredita nas milhares de reuniões que ele arranja, sempre à
noite. Sempre sem ter hora para voltar. Ia me fazer bem ficar longe de casa uns
dias.
Tio
Marcos passou a maior parte da vida viajando, fazendo mil coisas, quase todas
com sucesso. Aposentou-se com um salário mensal de 8.500 reais no Instituto de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA, onde exerceu cargo de direção. Possuía
essa fazenda com algumas cabeças de gado em Santarém, no Pará, uma “coisinha de
nada”, como ele dizia, e que dava mais despesa que lucro. Mas co m o tio Marcos
a gente nunca sabe o que é verdade e o que é fantasia.
A
viagem seria de ônibus, claro, não porque o tio não dispusesse de grana para o
avião, de jeito nenhum, mas simplesmente porque a janelinha do ônibus é mais
atenta à paisagem que a do avião, que num pulo ou dois atravessa o país sem
deixar a gente ver coisa alguma.
Sexta
feira, na aula de judô, Maurinho me deu o mapa que tinha prometido. A gente se
despediu e ele, rindo, voltou a brincar, dizendo:
–
Tudo de bom, Gabriel. Aproveita, cara. E se cuida para não virar bispo
Sardinha. – Ele falava isso porque dizia que para onde eu ia só tinha índio.
E
se os dias voaram, eu também voei, e chegou o grande dia.
Amanheceu
o sábado, 14, e nossa viagem bateu à porta. Vinte e uma horas e dez minutos, a
gente estava no Box 42 da Rodoviária, esperando o ônibus da Real Expresso, a
empresa na qual iríamos, chegar para o embarque. Eu e o tio Marcos e mais a mãe
e o pai que foram nos levar de carro. A mãe não parava de dar conselhos. Para
eu não sair sozinho. Que para onde íamos era uma terra cheia de violência,
miséria, pistoleiros a granel, por causa dos conflitos de terra e dos garimpos.
–
Ora, mãe, todo mundo sabe que onde existe mais violência é em cidade grande.
Não se preocupe que sei me cuidar. E tem o tio Marcos que é fera, né, tio? –
falei exaltado. A proximidade do embarque fazia meu coração dar pinotes,
verdadeiras piruetas emocionais.
–
Olhem, o motorista já vai subir. Vamos, Gabriel. Como diz o poeta Neruda, “É
hora de partir, ó abandonado!” – tio Marcos abraçou fortemente a irmã, e
despediu-se com um parto de mão de meu pai.
Ocupamos
as poltronas 17 e 18, tio Marcos na janela, e vinte e uma e trinta e cinco,
obviamente nunca em ponto, o motorista deu a partida e o ônibus foi se
afastando lentamente da Rodoviária com destino a Brasília. (CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)
Raimundo
Fontenele
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