3 de mai. de 2017

PARAÍSO

        A coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF do nosso blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br) traz nesta data o poema de minha autoria PARAÍSO, penúltimo poema do livro O TROGLODITA, Editora Alcance, Porto Alegre, RS, 2012. Trata-se de um poema-blague, gênero cultivado por dois grandes nomes da infância poético-modernista da literatura brasileira.

            O motivo do poema é variado. Um deles é a posse da alma humana por parte das mais diversas religiões. Todas se acham a única verdadeira. Por isso imaginei um paraíso onde todos têm direito de estar. E outro motivo é fazer uma espécie de painel da cultura pop e erudita, dos mitos e signos, das crenças e personagens surreais que habitam o imaginário coletivo do brasileiro médio, comum. E no meio disto tudo colocar alguns motivos de reflexão sobre este país que se encontra numa encruzilhada, como a própria humanidade, ameaçada pela ignorância, a imbecilidade, a má fé, e mesmo o descompromisso pelo vida humana por parte dos senhores que se julgam supremos, como esse tal de ministreco Gilmar Mendes.  (RF)

                                                    PARAÍSO
Uma terra de leite e mel.
Todos os filhos de Deus, de Alá,
de Jeová, do Senhor, do Altíssimo,
os aiatolás e os homens-bomba,
e todos os terroristas do deserto;
os líbios, os da Faixa de Gaza,
os filhos do Iraque e de Bin Laden,
os carniceiros de Hitler e os cristãos
queimando corpos vivos.
Um prado coberto de flores.
Todos os traficantes de drogas,
de armas e de mulheres nuas do planeta;
os posseiros matadores de índios
e os “coronéis” matadores de posseiros;
todos os mafiosos da terra:  máfia russa,
a cosa nostra, a siciliana, a camorra,
as máfias japonesa e sino-coreana e o PCC,
a Yakusa e o Pastor Jim Jones e seus seguidores;
todos os fornecedores de agrotóxicos,
todos os filhos da puta da Política e da Moda.
Há um pote de ouro reluzente no final do arco-íris.
E os caçadores de animais selvagens;
e os pederastas;
e as madames;
e os infiéis,
e nosotros:
masturbadores e argentinos;
maconheiros e puxadores de carro;
paraguaios e ladrões de gado;
e você, e aqueles, e eu mesmo.
Ouviste, Abraão? Tua descendência será tão numerosa
quanto as estrelas do céu e a areia do deserto.
E assim nasceraq, Saddam e os sodomitas;
Rasputin e o Barba-Roxa;
os devassos de Roma e as fofoqueiras;
os mentirosos, o Macaco Tião,
o Gamga Zumba e o Toni Tornado,
a peste bubônica e os arruaceiros.
Ouviremos extasiados os cânticos
de Salomão e os salmos de Davi.
E o vozerio dos pregadores evangélicos,
os berros, as mentiras e as promessas vãs
das autoridades, das nulidades
e dos militantes partidários.
O “eia, Silver!”, o Fantasma que anda,
os sinos da Glória:
Dr. Silvana, Testemunhas de Jeová,
o Papa Doc e o Baby Doc,
o Satânico Dr. No e a Úrsula Andress,
ouvirem os a todos num rumor de sacristias.
Seria Deus aquele vulto ali
pintando um céu aqui?
Porém, não era. Eram os novos ricos
da corte brasileira, o trem-fantasma,
o navio negreiro;
a suave aflição na tarde calma
e o suado pavor na noite morna;
um quarto sem janela, aonde, de repente,
entravas tu e ela:
Jane Fonda vestida de Barbarella.
Há um silêncio pousado
sobre o silêncio do átomo.
E festa pra criançada
que, bem, hoje é domingo,
e aqui um paraíso.
Mas não há céu sem o Gato Félix,
O Bolinha, a Luluzinha;
Nem céu sem ave-marias
E dona Hermínia por perto.
Brigadeiros e boca fechada
que a festa do céu é o silêncio.
Tem o céu da nossa infância,
de Lúcifer com seu tridente
castigando todo mundo,
o vilão e o inocente.
E das histórias em quadrinhos
salta o Roy Rogers e mais gente
o Corisco, o Lampião e até Antônio das Mortes
surgiu dos filmes de Glauber,
ambos mortos, de repente.
Nosso céu tem mais estrelas.
Tem mais tudo: Zé e Zecas:
o Ramalho e o Baleiro e o Zeca Pagodinho;
tem as estrelas da TV, as mesmas do sabonete,
tem murro em ponta de faca,
tem o céu dos alfinetes;
Gonzagão e o I-Juca Pirama
do eterno Gonçalves Dias.
Tem o êxtase dos poetas
e a luz de uma estrela guia.
Nossos bosques têm mais flores.
ó Paraíso encantado!
Permitam que o Freddy Krueger
tome um assento ao seu lado,
de São Pedro ou São Benedito,
meu Deus, que céu esquisito!,
tem cowboys pra todo lado
dando tiro: é bomba, míssil,
foguete e o diabo a quatro.
Nossas flores têm mais vida.
Fellini, quantos achados
nesta nossa doce vida:
a fonte dos namorados
e o prazer da água pura;
um filme dos Mastersons
e um clovisbornay alado.
Asas, ele tinha,
quando foi pro seu quadrado.
Sei que também irei um dia
Pra esse céu de poesia.
Nuvem com nuvem brilhando
e o paraíso encontrando
feito um céu de alegorias.
Joãozinho Trinta na frente
porque hoje é carnaval.
Vestido de Chupa Cabra,
quem será aquele ente
chapado e passando mal?
Mendigos de New York,
garotos da Cinelândia,
índio queimado em Brasília,
detritos do Rio Ganges,
a vida se multiplica
neste paraíso com fritas
e miniaturas gigantes.
E os párias e os pobres diabos,
que se arrastam no mundo inteiro,
ganharão o céu primeiro,
um céu de lata e suplícios.
O Cacique Raoni e o Caboclo Mamadô;
os Fradinhos do Henfil,
valei-me, nosso senhor,
amanhã irei pra longe,
pra outro céu, num outro dia,
em que não sangre demais.
eia, natureza humana:
os anjos à frente
e o diabo atrás.
Não há perdas. Só lamentos
em forma de canções. É passado.
Vozes de pássaros que trinam.
Vozes de humanos que gemem.
Vozes de Milton Nascimento
em quase todo, até na voz do poema.
Voz da Costa,
voz da Elis Regina,
voz da Dalva de Oliveira,
voz da vovó Clementina,
do João Bosco, nas esquinas,
e de Pixinguinha no céu.
Céu pra mim, céu pra nós todos.
Céu pra ti, e para os loucos,
os que não sabem falar;
o seu Zé, dona Maria,
tia Aleide, dona Benta,
esses daqui, os de lá.
Seu Zezé, padre Manoel...
Ah, quem me dera voltar
após um século, sem nunca
haver saído do lugar.
Era isso. Picasso e outros mais.
Os que sabiam pintar. Nervosos.
O angustiado Van Gogh, o Paul Gauguin.
No escuro, a luz acende a calma.
No escuro, quem sabe, eu pinto a alma
sedenta, no escuro, sedenta.
Era isso. Picasso, alguns imortais
e outras almas sedentas
pintadas no escuro, quem sabe,
talvez a luz do céu se abra mais.
Um céu de mulçumanos me esperava
naquele paraíso de mulheres.
Altas e belas, baixas e concretas:
Sofia Loren, a bela Elizabeth,
as Anas e as Lúcias, e a divinal Janete;
a Jane do Tarzan, a rainha Cleópatra.
Nefertiti, Dona Beija e a Vênus de Milo;
e entre coros angelicais e ao som da Lira,
as esposas e as amantes, as fiéis
e as inconstantes; a dona Doida
e, num rompante, irrompe nesse céu
a Isolda de Tristão e as Bacantes.
Nossa vida mais amores.
E as que não tive agora estão aqui.
Marília de Dirceu e Ana Amélia,
a Íris de seus olhos e as filhas de Caim;
uma reles dançarina de cabaré barato,
as moças do Chacrinha e as do Sargentelli,
Adele Fátima e Adele H,
a Fátima Boa Viagem e até a Vaca Estrela
brilhavam nesse céu dos orixás;
Sabrinas, Valentinas, Iaras, Iemanjás.
Que céu profundo, que noite sem segredos
nos permite o amor.  E, ao amar,
o homem se permite errar e perdoar.
O perdão pra Judas Iscariotes?
O perdão para quem matar?
Que céu esquisito
e que paraíso longínquo!
Mas no portão, lá dentro, dentro está escrito:
“Dá licença, Vinicius? Posso entrar?”

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