11 de nov. de 2016

ODYLO ENTRE O AMOR E A DEVOÇÃO

Odylo Costa, filho - Homenageado do mês
O homenageado do mês, poeta e jornalista ODYLO COSTA, filho,  pertence a uma tradição poética cuja produção, pela escassez de versos e poemas, é comumente chamada de bissexta. No caso de nosso homenageado, isso soa muito mais como virtude, raridade, pois sua poesia possui qualidades técnicas, elaboração vernacular atendendo àquilo que se constitui no que acredita: a emoção e o transbordamento para além daquilo que é material e finito.
Sua conhecida e verdadeira religiosidade, sua profissão de fé num cristo kármico, num ser que é comungado para tornar-se o outro com o comungante, tudo isso ele insere dentro do seu poema, que pulsa vivo e inominado, iluminando o caminho da perfeição humana e poética. (RF)
Eis aqui nosso poeta homenageado de novembro com sua história e sua prosa.
Odylo Costa, filho, jornalista, cronista, novelista e poeta, nasceu em São Luís, MA, em 14 de dezembro de 1914, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 19 de agosto de 1979.
Filho do casal Odilo Moura Costa e Maria Aurora Alves Costa, transferiu-se ainda criança do Maranhão para o Piauí, onde fez estudos primários e secundários em Teresina, os primeiros no Colégio Sagrado Coração de Jesus e os segundos no Liceu Piauiense.
Desenvolveu, assim, dupla afetividade de província, fraternalmente desdobrada entre as duas cidades, e estendida a Campo Maior, no Piauí, onde nasceu sua mulher, D. Maria de Nazaré Pereira da Silva Costa, com quem se casou em 1942, sob a bênção de três poetas: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Carlos Drummond de Andrade, padrinhos do casamento.
Mas já aos 16 anos, em março de 1930, Maranhão e Piauí ficaram para trás e Odylo Costa, filho, em companhia dos pais, fixou-se no Rio de Janeiro, bacharelando-se em Direito, pela Universidade do Brasil, em dezembro de 1933.
Desde os 15 anos, porém, já se revelava no jovem maranhense a vocação de jornalista, que encontrou, aliás, seu primeiro abrigo no semanário Cidade Verde, de Teresina, fundado em 1929. Por isso mesmo, em janeiro de 1931, conduzido por Félix Pacheco, entrou Odylo para a redação do Jornal do Comércio, onde permaneceu até 1943.
O jornalismo, entretanto, embora ocupando boa parte de sua atividade intelectual, não o fazia esquecer a literatura e, em 1933, com o livro inédito Graça Aranha e outros ensaios, publicado no ano seguinte, obtinha o Prêmio Ramos Paz da Academia Brasileira de Letras.
Em 1936, em colaboração com Henrique Carstens, publica o Livro de poemas de 1935, seguido, nove anos mais tarde, do volume intitulado Distrito da confusão, coletânea de artigos de jornal em que, nas possíveis entrelinhas, fazia a crítica do regime ditatorial instaurado no país em 1937.
Mas o jornalismo, apesar desses encontros sempre felizes com a literatura, foi na verdade sua dedicação mais intensa, exercido com notável espírito de renovação e modernidade. Deixando o Jornal do Comércio, Odylo Costa, filho, foi sucessivamente fundador e diretor do semanário Política e Letras (de Virgílio de Melo Franco, de quem foi dedicado colaborador na criação e nas lutas da União Democrática Nacional); redator do Diário de Notícias, diretor de A Noite e da Rádio Nacional, chefe de redação do Jornal do Brasil, de cuja renascença participou decisivamente; diretor da Tribuna da Imprensa; diretor da revista Senhor; secretário do Cruzeiro Internacional; diretor de redação de O Cruzeiro e, novamente, redator do Jornal do Brasil, função que deixou em 1965, ao viajar para Portugal como adido cultural na Embaixada do Brasil.
Mas nem sempre, ao longo dessa extraordinária atividade, foi apenas o jornalista de bastidores, o técnico invisível. Em 1952 e 1953, exerceu a crítica literária no Diário de Notícias, onde também criou e manteve a seção “Encontro Matinal”, juntamente com Eneida e Heráclito Sales. Durante prolongado período, publicou uma crônica diária na Tribuna da Imprensa.
Na vida pública, Odylo Costa, filho, foi Secretário de Imprensa do Presidente Café Filho, diretor da Rádio Nacional e Superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União.
A partir de 1963, circunstâncias dolorosas levaram-no de volta a uma prática mais constante da poesia, que não abandonara de todo embora fugisse à publicação em letra de forma e até mesmo à leitura pelos amigos mais íntimos.
E foi o maior deles, Manuel Bandeira, ao preparar a 2ª edição da sua Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos, o primeiro a ler alguns desses poemas, sobretudo os inspirados pela morte de um filho ainda adolescente, que tinha seu nome, poemas esses que Bandeira colocava entre “os mais belos da poesia de língua portuguesa”.
Animado ainda por Bandeira, Raquel de Queirós e outros amigos, Odylo Costa, filho, reuniu afinal seus versos em volume publicado em Lisboa em 1967. Ampliado com os poemas da “Arca da Aliança” e abrangendo toda a poesia do autor, saiu o volume Cantiga incompleta em 1971.
Mas se a poesia foi constante presença em sua vida, a ficção também participou de sua bibliografia literária desde 1965, quando, aos 50 anos, publicou a novela A faca e o rio, traduzida para o inglês pelo Prof. Lawrence Keates, da Universidade de Leeds, e para o alemão por Curt Meyer-Clason.
Com o mesmo título, A faca e o rio foi adaptada para o cinema pelo holandês George Sluizer. À edição portuguesa de A faca e o rio (1966), acrescentou Odylo Costa, filho, o conto “A invenção da ilha da Madeira”, nova e feliz experiência do ficcionista até então oculto pelo poeta, e ainda prolongada no conto “História de Seu Tomé meu Pai e minha mãe Maria”, em edição fora do comércio.
Profundamente ligado ao Maranhão (foi eleito para suplente, no Senado Federal, de José Sarney), escreveu a introdução aos desenhos da pintora Renée Levèfre no belo livro: Maranhão: São Luís e Alcântara (1971).
De abril de 1965 a maio de 1967, foi adido cultural na Embaixada do Brasil em Portugal, onde mereceu a honra de ser incluído entre os membros da Academia Internacional de Cultura Portuguesa.
De regresso ao Brasil, embora tivesse recusado o convite do Presidente Costa e Silva para exercer o cargo de Diretor da Agência Nacional, Odylo Costa, filho, voltou, no entanto, ao exercício do jornalismo, primeiro como diretor da revista Realidade, de São Paulo, mais tarde como diretor de redação da Editora Abril, no Rio, e posteriormente como membro do seu Conselho Editorial.
Quarto ocupante da Cadeira 15, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 20 de novembro de 1969, na sucessão de Guilherme de Almeida e recebido pelo Acadêmico Peregrino Júnior em 24 de julho de 1970.
Sua obra em prosa e poesia:
Graça Aranha e outros ensaios (1934)
Livro de poemas de 1935, poesia, em colaboração com Henrique Carstens (1936)
Distrito da confusão, crônicas (1945)
A faca e o rio, novela (1965)
Tempo de Lisboa e outros poemas, poesia (1966)
Maranhão: São Luís e Alcântara (1971)
Cantiga incompleta, poesia (1971)
Os bichos do céu, poesia (1972)
Notícias de amor, poesia (1974)
Fagundes Varela, nosso desgraçado irmão, ensaio (1975)
Boca da noite, poesia (1979)
Um solo amor, antologia poética (1979)
Meus meninos e outros meninos, artigos (1981).

A prosa de Odylo:
IRMÃS
Odylo Costa, filho
O arraial todo vive do barro, mas é um jeito de viver como qualquer outro, não desonra. Quando nasci não era assim, sei, o canavial se estendia até a beira do rio, o canavial de meu avô... Parte da casa grande caiu não faz muito tempo, mas as paredes principais continuam de pé. Já a conheci vazia de gentes graúdas, minhas tias e minha Mãe no mundo quase calado daquelas despovoadas paredes grandes, sobrevivendo mas para sobreviver se despossuindo pouco a pouco das terras de outrora, do que restava delas. Não direi que comíamos terra, mas era como se comêssemos... Nunca passei necessidade de doer fundo, mas de mim somente conheci pobreza, elas ainda tiveram seda para vestir, peru nos domingos, matalotagem todo mês, não sei qual a sorte pior.
Minha Mãe, coitada, atravessou a vida toda num sonho. Quando meu pai apareceu, ainda estava nos laços de fita, chapéu de palha, sela de banda, cavalo esquipador. Casaram depressa, mas as terras ricas acabaram ainda mais depressa nas mãos dele, os brejos vendidos, todos ou quase todos, sobrou apenas chapada e areia, uns cocais que andaram dando renda quando o babaçu subiu. Ele um dia desapareceu no oco do mundo, nem ao menos escrever nunca mandou telegrama ou bilhete que fosse.
Minhas tias Honorata e Adriana jamais soube ou quis saber como nem quando brigaram, mas acho ou pelo menos desconfio que foi na disputa pelo forasteiro. Ganhou minha Mãe, e às vezes penso que antes não ganhasse porque não teria sido tão infeliz mas se não ganhasse estaria eu aqui para contar a história? Homem de fora parecia rico e distinto, colete e corrente de relógio, as três o queriam, do entrevero silencioso (e feroz) entre as rivais não declaradas é que as outras duas saíram rompidas, ou se não foi nele foi então que se adubou o terreno para as discussões futuras, violentas até o desespero, por uma nonada que sugeria imaginações sem fim.
Quantas vezes me lembro de passar a noite insone ou acordar no meio dela, menina assustada, com o xingamento desmedido, desapoderado! Foi quando minha mãe amalucou, coitadinha, e o Dr. Esteves ainda quis levá-la para o sanatório dele, mas depressa se viu que era loucura mansa, laço de fita, chapéu de palha.
 Minhas tias tentaram manter a casa sem fome, tia Honorata fazendo doce, tijolo de leite e buriti, rebuçado, chapéu-de-couro, bolo doce, até beiju e cuscuz de manhãzinha, tia Adriana costurando para fora, arrancando rendas delicadíssimas das almofadas, gastando dedos no bastidor. Aí já não se falavam de todo ou, mais exato, não se falavam diretamente.
— "Quando alguém quiser almoçar, posso tirar o almoço", dizia uma. E a outra:
— "Quando alguém quiser tirar o almoço, boto a toalha e os pratos."
Eu subia nos mamoeiros para apanhar mamão verde e pisava coco para chapéu-de-couro, espetava alfinete no papelão para traçar o caminho dos bilros que os dedos fariam dançar adoidados, corria de uma para outra das irmãs, amava ambas, franguinha magra, entre aqueles ódios fraternais. Minha Mãe olhava, sentava-se, vestia as fitas, ajeitava o chapéu, saía para correr casas amigas. Ainda fui levar encomendas na cidade, da outra banda do rio. Passava-se aperto, mas fome, não.
— "Quando alguém quiser pagar a quitanda, tem dinheiro debaixo do pano rendado do tabuleiro.”
— “Quando alguém quiser mandar consertar o poço, já podemos pagar, entro com duzentos mil reis.”
Começaram a chegar outras gentes de fora, para um loteamento de José Paraense na beira do rio. Descobriram o barro. Um paulista rodou o primeiro torno, acendeu a primeira lenha. apanhou a primeira fornada. Nasceu o arraial.
Matricularam-me no grupo. Atravessava toda manhã de canoa, voltava no sol do meio dia. Gostava de andar limpa. Já ia entendendo as coisas. Muitas vezes, quando me estirava na rede para dormir, mal e mal recordando na cabeça as lições da escola (tinha gosto), pedia a Deus que naquela noite não  houvesse clamor de raivas, invenções ou suspeitas das tias nem minha Mãe cantasse em seu violão amores mortos até a lua sumir.
Envelheciam. A corcunda de tia Honorata se pronunciava cada vez mais, o moreno escuro do rosto parecia afundar em noite, o que era trigueiro enegrecia; a brancura do tia Adriana se esvaía em leite, transpareciam pelos braços veias azuladas em desenhos fugidios; os cabelos de minha Mãe eram às vezes trançados por uma das irmãs, qualquer das duas...
— "Se alguém não vai cuidar da cabeleira de laiá..."
— "Alguém que faça o que quiser com laiá..."
Descobriram também elas o barro. Qual achou primeiro? Não sei. Ambas. A toa. Foi inevitável. Se onde fora terra dos pais todos viviam de barro, este que tirava, aquele que carregava, outro que mercava, e os mestres ,que tornavam, e os meninos que levavam ao mercado da beira do rio, por que  se gastarem na panela e na almofada?
Carreguei, eu mais uns meninos da outra calçada da rua, filhos de  Seu Antonio Felix, o primeiro peso. Seu Anastácio emprestou o forno enquanto se fazia o lá de casa. Não meti as mãos na massa de argila. Elas é que desde o primeiro instante a tomaram nos dedos, amassaram como se desde os cueiros não tivessem feito outra coisa. Para que torno e molde?
Não produziram quartinhas, vasos, pratos. Moringa, é verdade, uma vez rodaram uma, o próprio Seu Anastácio emprestou o torno, mas essa era diferente, uma roda oca de barro com um pé e uma garganta, coisa de dois palmos, tudo superfície para o vento esfriar, teve muita procura mas só produziam com relutância, por encomenda, quando os demais barristas, que respeitavam a invenção, se negavam a produzir.
Sem se falarem se entendiam. Presepes nasciam inteiros, a família santa, bichos e pastores, reis e castelos. O que uma começava, outra completava. Tia Honorata era melhor na forma humana, o olho da tia Adriana concebia melhor os modelos animais. As mãos sujas de barro... As minhas ficaram sempre limpas, me dava um arrepio só de pensar no visgo. Às vezes imaginava pesadelos, uma briga de agarração entre elas com aqueles dedos pingando terra. Mas nunca jamais, Deus seja louvado! Nem consigo próprias falavam. Uma vinha com seu pincel, punha o azul, a outra teimava, metia o amarelo, olha que verde de repente!
— "Alguém fez um Santo Antônio muito bonito. Se fizer um São Francisco modelo uns passarinhos pra cabeça e pros ombros.”
— "A vaquinha de alguém é a mais graciosa deste ano, parece até a Bonitona que era o capricho de Papai...”
Um dia, sem dizer palavra, minha mãe apanhou o tabuleiro, arrumou as peças, um tanto da tia Honorata, o mesmo tanto da tia Adriana, me pegou pela mão, atravessamos o rio, fomos vender do outro lado, no mercado da cidade.Virou rotina. Não tinha mais moleque discutindo conta, fazendo intriga entre as irmãs.
Na esquina do mercado, onde fez ponto, falavam a minha Mãe dos amores de minha Mãe, diziam-lhe que o Doutor João queria casar, estava apaixonado, marcavam datas. Eu ficava com os olhos em sangue, o rosto em fogo, ela porém não se zangava mais, ria até, conferia o troco direitinho; e não sei até que ponto acreditava ou imaginava acreditar, se é que não simulava tudo. Às vezes penso que a doidice — se é que era doidice — não passava de fingimento. E a esquisitice das irmãs talvez fosse mais verdadeira que aquela fantasia toda de maluca mansa, risonha...
Esquisitice, mas na casa havia uma limpeza geral que não parecia nascida do barro. Às vezes eu amanhecia com medo, vai ser hoje: um esbarrão sem querer joga a mão de uma contra os barros da outra, ou alguma inveja, artistas eram, artista sempre tem desses humores, mesmo artista pobre lidando com barro quanta vez quer dar mais do que pode, cai dentro de si mesmo lá em baixo, briga à toa. Nunca houve nada.
As três me vestiam agora melhor, fui para a Escola Normal, há muito não ia com minha Mãe à feira do barro (já existia uma), ela no tabuleiro era ajuda e não mais cuidado grande, nem remédios tomava, cuidado era eu, coitadas. Mas não lhes dava desgosto, passei sempre e com boas notas, até prêmio tive. Quando chorava me escondia no quintal ou chorava na rua metida num beco porque as três adivinhavam logo o motivo, era sempre falarem mal delas.
Nunca chorei por nenhum rapaz, nunca tive namorado porque namorado me lembrava a doidice de minha Mãe e o desatino, os malfeitos todos de meu Pai. Mas saberem que chorara por elas sempre as deixava tristes, a mim mais moda; e era por elas sempre que chorava.
Mas não se pense que a paz se fazia em tomo de mim. Não quer dizer que à noite não precisasse mais de rezar. A guerra de Honorata e Adriana envelhecera, não acabara; o violão de minha Mãe desafinava agora um pouco, mas a voz era sempre forte, e a lua ressuscitava as magoadas canções... Eu é que estava ficando moça e Deus tinha mais ouvido. para a moça de hoje do que para a menina de outrora. Ou eu dormia depressa, perdida nos meus próprios sonhos, cansada da labuta com os cadernos, já começava a escrever, e não ouvia os assombrados do casarão.
Logo no dia da formatura ia se dar aquele desastre! Quase adivinhei de longe, meu coração bateu tumtumtum, ia me pulando pela boca, mal precisei reconhecer minha Mãe, não me quiseram deixar chegar perto da esquina, mas o tabuleiro caído, o sangue derramado, os barros aos pedaços, o carro que atropelou nunca se teve notícia exata, nunca se soube ou se quis saber, justiça de Deus andará a caminho.
Minha Mãe! Não me lembro de carícia de suas mãos na minha pele mas de seus olhos me espiando muito. Uma vez ia por os dedos nos meus cabelos, tirou assustada, "dá má sorte" não sei se disse ou se imagino que disse. Mas ouço ainda sua voz cantando passadas paixões perdidas, modinhas tão tristes, quando não coisas sem sentido:
"Cameleão subiu a palácio, foi falar com o Presidente. Foi coisa que nunca vi cameleão falar com gente."
Uma vez lhe jogaram um cameleão nos pés, mas isso foi malvadeza de gente mandando moleque. As duas outras não se falaram nem quando o corpo de minha Mãe saiu para o cemitério. Nem quando Joaquim Tibúrcio se ofereceu para os pagamentos mais imediatos, e não precisava fazer porque não era parente nem aderente. Cada uma por sua vez e em separado respondeu que não carecia. Em separado quem chegava falava a cada uma, embora as duas estivessem lado a lado, mal comparando era como se um homem deixasse duas viúvas inimigas.
Tive uma esperança de paz no cemitério, depois da missa de sétimo dia. Apareceram uns parentes longe, gentes das nossas raças, mas não do lado de meu Pai. Tia Honorata puxou o terço, houve um silêncio, depois a voz de tia Adriana se alteou sozinha respondendo, em seguida é que as outras se juntaram.
Mas foi dando aquela tristeza nelas, o barro às vezes endurecia nas mãos paradas. Não choravam. Choro bastava o meu, que não precisava agora de se esconder. Consolavam-me, cada uma por sua vez.
Tia Honorata morreu na quinta feira. Tia Adriana correu quando a viu sentar-se na rede, num grito longo, a mão no peito acarinhando a dor da morte.
— Minha irmã! Minha irmã! Por amor de Deus! Deus que me perdoe!
No outro dia também ela estava morta.  Achei-a de manhã. Mas não foi suicídio. Tinha o terço enrolado na mão. Era Filha de Maria. Se o senhor quiser comprar o que resta da casa, lhe vendo. Muitas paredes de taipa resistiram todo esse tempo, a ponte vai passar aqui perto. O casarão ainda tem quintal grande, dá uma reforma excelente. Veja que portas enormes.
Eu é porque não tenho razão para continuar aqui, nunca pus mão em barro. Só não lhe vendo os pertences de minha Mãe, as coisas delas, os barros que ficaram feitos, aquele São Francisco com os ombros cobertos de asas.

Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele


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