A coluna
QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) continua sua saga de levar aos leitores o máximo
da boa poesia, da literatura verdadeira, que não é pastiche e nem pastel de
vento. É o sumo, a seiva, o sangue de poetas e escritores que chutaram o balde,
deram murro em ponta de faca, mandaram às favas as convenções, os conchavos
literários, políticos, humanos; e mandaram à M o politicamente correto.
Um desses
poetas está hoje aqui conosco, chama-se Viriato Gaspar, é maranhense da gema,
quer dizer, da Ilha, e foi o primeiro poeta de carne e osso que conheci, isso
quando cheguei em São Luís, em 1967. Antes conhecia nos livros, e os poetas de
cordel que cantavam na feira de São Domingos.
Porque
eu não estou de terno e de óculos de grau, de gravata e sapatos pretos brilhantes;
talvez porque eu não pertença a um corpo acadêmico universitário, da USP ou da UFMA,
tanto faz, muitos poderão torcer o pescoço, a cabeça e o bigodes diante desta
minha afirmação: Viriato Gaspar é um dos maiores poetas brasileiros vivos da
atualidade.
Domínio absoluto de várias formas e
técnicas poéticas, senhor das rimas e métricas, as quais, dentro dos sonetos
que inventa, elabora, cria e reinventa, o igualam a qualquer um grande
sonetista, sejam os grandes poetas do medievalismo, ou os das correntes mais
atuais e contemporâneas, o poeta Viriato Gaspar abre sua fábrica de sonetos
para que com eles aprendam os que o desejarem. Eis um exemplo do que digo
nestes dois tercetos (apenas num deles enfia 5 notas musicais, com graça, gênio
e criatividade):
“ Mozart, Beethoven, Chopin?
O lead se enlaça em lã
no
oco peso do peito,
e dói em dó lá no fundo,
e re(za) em mi(m), em sol/fejo,
a muda mágoa do mundo.”
Pós-60, durante os anos da
formação ideológica esquerdóide desta nação ideotirrobotizada, com o surgimento
da crítica epistemológica, e outras denominações, em que os tais críticos
serviam-se de vocábulos inteiramente incompreensíveis e empurravam mente adentro
dos leitores, estudantes e interessados, os textos mais ocos e vazios de
sentido e conteúdo, e com eles obras e autores opacos, diletantes letrados que
hipnotizavam platéias, em saraus e academias.
Coloquemos os pés no chão, no
máximo calcemos as sandálias da humildade, e adentremos o templo do fazer
poético onde o verbo é tão sagrado quanto a vida humana, neste manancial de
poemas do Viriato, onde se lê de tudo: crítica social, defesa do meio ambiente,
prostração diante dos oráculos, protesto e blasfêmias contra os tolos do mundo,
criações de um poeta que é mestre do canto e tanto nos comove até as lágrimas
como nos emociona até o êxtase. Quer
dizer: os sensíveis, os raros, quase dizia, os muito loucos, no sentido que
Erasmo de Roterdã deu à loucura.
Aqui reuni poemas de seus livros
ONIPRESENÇA (Soneto XXIII), MANHÃ POTÁTIL (Poemas, Aviso Prévio e Feira de
Amostras), A LÂMINA DO GRITO (Sonetos 4 e 34), SÁFARA SAFRA (A Casca e As Tatuagens), e de quebra um poema seu inédito, o penúltimo aqui publicado,
titulado de ROLETA-RUSSA, e como um prêmio a mim mesmo publico também aquele
que considero a obra prima da sua juventude, o PAISAGEM DE INVERNO. E boa leitura. (RF)
Soneto XXIII
De longe chega um piano,
talvez do prédio defronte.
Cada nota ergue uma ponte
entre
a vida e o bicho humano.
Cada acorde em nós entranha
uma gana de ser bom
e acende na tarde estranha
o
zen do bem no seu som.
Mozart, Beethoven, Chopin?
O lead se enlaça em lã
no
oco peso do peito,
e dói em dó lá no fundo,
e re(za) em mi(m), em sol/fejo,
a
muda mágoa do mundo.
POEMAR
O
que botar no poema
e o que dele retirar?
Falar em bomba, em cinema,
ou em flor, em chuva, em luar?
Como Fernando Pessoa,
só ver mesmo o que se vê?
Mentir que a vida está boa,
se está ruim como o quê?
Denunciar, engajado,
o que qualquer cego vê?
Pregar ao operariado,
que nunca nem vai me ler?
Esculhambar o soldado
para ele vir me prender,
e eu, herói devotado,
aparecer na tv?
Esbravejar, ativista,
em prol da classe oprimida,
e passar dando entrevista
o resto da minha vida?
Pregar contra a ditadura,
o alto custo de vida,
ou desancar a censura
por minha obra escondida?
Citar Pound, Mallarmé,
Maiakovski, o cacete,
se o povo, em vez de me ler,
vai é batalhar seu leite?
Donne,
Lorca, Baudelaire,
Hölderlin,
Villon, Rimbaud?
Ser um grande bricoleur
do que se leu ou escutou?
Verlaine,
Guillén, Neruda,
Corbière,
Rilke, Musset?
Ah! Quanta coisa maçuda
um poeta tem de ler.
Gautier,
Eliot, Sand,
Laforgue,
Blake, Éluard?
Antropofálgis, noi-grandes,
Processo, práxis, dadá?
Ser um poeta bem pobre
ou nadar no vil metal?
Sá-Carneiro, Régio, Nobre,
Cesário Verde, Quental?
Cecília, Drummond, Bandeira,
Jorge de Lima, Cabral?
Estrelar a vida inteira
no país do carnaval?
Ser um poeta Vinícius,
o grande, o de Morais,
e escrever, por desperdício,
belos versos imorais?
Ser um poeta maldito,
engajado ou concretista?
Uma vivência de mito
ou a dura vida de artista?
Ser declamado nas praças,
nos comícios, pelos bares,
ou desandar na cachaça,
vivendo nos lupanares?
O que jogar no poema
e o que dele retirar?
Escalavrar o morfema,
numa sintaxe de ar?
E o corte epistemológico,
o sintagma estrutural?
Surrealista, gongórico,
hermético, marginal?
Chafurdar no dicionário
ou os rimances de cordel?
Circuito universitário
ou vitrola de bordel?
Que profissão desmedida
para um salário de fome.
Ser funcionário da vida
e escriturário do homem,
Cirurgião do concreto,
intérprete do universo;
deixar sangrar o alfabeto
na carne viva do verso,
passando a limpo o momento,
plantando fundo uma lavra
de fogo, de fúria e vento,
no duro chão da palavra.
AVISO PRÉVIO
Sei que jamais terei coisa nenhuma.
Aos outros, basta o mar. A mim, a espuma.
FEIRA
DE AMOSTRAS
na fila do INPS não tem homem
só aleijados
sifilíticos
cegos
opilados
paralíticos
na fila do INPS não tem gente
só andrajos
úlceras
pústulas
tumores
fome
na fila do INPS não existem pessoas
só o refugo das máquinas
as sobras das indústrias
o lixo das fábricas
as fezes da vida
a
merda do desenvolvimento
na fila do INPS não há homens
há gado
coisas
dejetos
peças quebradas
da
engrenagem do progresso
a fila do INPS é o outro lado da moeda
a outra face das estatísticas
os bastidores do país
o subúrbio da nação
o lado escuro dos gabinetes
a
lama por debaixo dos tapetes
a fila do INPS é o retrato
exato
perfeito
irretocável
do brasil.
SONETO
4
O mar, talvez, ou mais, talvez amar
o mar guardado em chuva na lembrança.
E a tarde a despencar por sobre o lar
lembrando
um conta-gotas de criança.
O
mar, talvez amar, talvez Omar,
nos Rubaiats de mim na voz tão mansa;
ou mar de São João, de boi-bumbá,
pulando
na fogueira da esperança.
O mar e sempre amar, armando o amargo
travor na língua e a liquidez da morte,
que
um dia vem (tão tarde e sempre cedo),
a carregar o mar de nossos medos
para o quintal do lar, do antigo largo,
de frente para o solo o céu o forte.
SONETO
34
uma faca no flanco: à superfície.
essa gota de gás se engatilhando
onde-como-porquê, coalhando em quando
o caroço, ao contrário,
se entupisse e
tombasse; quase à face, a flor do fogo
ao fundo; re/fulgindo, em cor, o corte;
o cascalho da casca: logos, logro;
o inverso do avesso, o
muro, a morte.
uma porta no espelho: dentro, o fora,
o voyeur de viés, a borra embora
do gorgulho do grumo, o
só sobrado.
estrume extremo. a anêmona do espanto.
perpassar de paisagens, planos, prantos.
o vão em véu. engano engalanado.
CASCA
(a
Chico Mendes)
Agora já seria muito tarde
para acender a música do fim.
Torto tropel de escalpos pela escada,
mortos mostrando o sangue
no jardim.
Os outros se espatifam nas sacadas,
atiram-se no olvido, bebem bílis.
Os outros esquartejam a madrugada
e rasgam-se em razão,
vazam-se em sim.
Nós acendemos trevas, na raiz.
Sangramos nossos ossos no capim,
florestas faiscando machadadas,
tratores torturando seu
cupim.
E agora é muito tarde para o fim.
AS
TATUAGENS
(a
Stéphane Mallarmé)
Ah! Cavalos. Florestas. Os narizes,
tão
fartos e tão vastos, dos felizes.
Toda hora é adeus. Todo instante é ter ido.
E
nós aqui, nós sós, os ressentidos.
ROLETA-RUSSA
O que me
empurra assim,
pra lá de
mim,
mais do
que o susto
ou o
sestro,
mais do
que o breque
ou o
baque,
é o
tranco,
o troco,
é o tapa.
A mão que
então me esbarra,
o pé que
escapa,
o braço
que escapole
e o medo
empunha,
e de
repente estala
em minha
cara
aquele
azul jaz-mim,
a pedra
rara,
um sol
que urina
o ouro em
minha cara.
Destes
cacos,
destes
nacos
do que
sobrou de mim,
destes
farelos,
tentar
içar um rumo,
um remo,
um salto,
o
sobressalto.
In
ventar,
das mãos
sem nada
dentro,
um
pássaro,
um claro,
um raro,
a chama
onde atear
o voo,
abrir o
risco
além,
pra lá da
queda.
Como quem,
sob a
chuva,
ao vento
vindo,
as mãos só
gelo e frio,
tenta
riscar
o fósforo
vazio,
tenta
sacar a faca,
já sem
fio.
PAISAGEM
DE INVERNO
tédio
das coisas pétreas e cinzentas
há
pássaros morrendo de silêncio
por cima da
tristeza dos telhados
o
vento em ponto morto no ar parado
o frio cai com gosto de abandono
longe
do mar amar turvado turvo
passa um menino
carregando fome
o
anjo da solidão assiste mudo
e
de repente
chora
está
chovendo
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