A
coluna QUARTA-FEIRA É DIA DE RF do blog LITERATURA LIMITE (www.literaturalimite.com.br)
é especialista na divulgação, análise e crítica de textos literários,
filosóficos e etc. e tal. Pensadores, Escritores, Professores, Educadores não
podem abrir mão desta espécie de sacerdócio laico, que é: abrirem a mente de
jovens e adultos do nosso país para uma reflexão mais profunda sobre esta época
de futilidades e engodos que estamos vivendo. Também nos círculos mais
respeitáveis da intelectualidade brazuca, Universidades e quejandos, a chamada
indústria cultural transformou-se num sugadouro de dinheiro público e privado oferecendo
em troca “produtos” culturais mais rasteiros do que umbigo de cobra. As
cátedras universitárias, as redações de jornalões e revistóides, o monopólio
das galerias da arte-instalação, o controle dos meios de financiamento e
distribuição de inúmeros filmecos produzidos com o dinheiro dos impostos dos
sacrificados trabalhadores brasileiros, tudo isso resulta numa cultura amorfa e
pasteurizada, insossa e morta que precisa, urgentemente, de um chute no
traseiro pra ver se toma tenência e acorda para a vida verdadeira. Ou pelo
menos para ver se os responsáveis por isso tomam vergonha na cara.
A
seguir, a primeira parte do livro A COLHEITA DO MUNDO, de minha autoria, publicação
de 1986, pela Editora SERIEMA, de Porto Alegre e que tem o título de Invenções:
a água. Sem falsa modéstia, mesmo reconhecendo que não é uma poesia que
permaneça sempre sobre as águas, pois em alguns momentos afunda, estética e
criativamente, pertence este poema a uma tradição poética que traz os ecos da
nossa ancestralidade. Das confusões filosóficas ao longo dos séculos, das
guerras de religião e de tronos e das inúmeras tentativas que o homem fez e faz
para se aproximar e aceitar-se a si mesmo e ao outro, este ente invisível que
nos persegue e a quem perseguimos, movidos pelo amor, ou pelo ódio, ou pelo
sofrimento, ou pela indiferença, e tantas vezes também pela alegria e pela
esperança. (RF)
INVENÇÕES:
A ÁGUA
à
sombra do muro
arrimo
das águas primeiras
(mas
turvas)
escrevo
versos
que
invento líquidos
na
tarde clara
de um setembro
triste
é
assim a tarde trabalhada na madeira
a
noite exasperada de sobrancelhas espessas
e
o dia findo findo
agora
que das águas
depende
o rumo do mar e do amor
que
correm junto aos juncos
aos junquilhos
águas
do Mearim
águas
do Guaíba
águas
de ti e de mim
no meu coração
marinho
a
vida toda é gelo
meu
coração
inverno
ao inverso
líquido
bate
surdo gemido na
sala
la
luma sobre o crepúsculo
alarde
a
tarde ainda morde
arde
na veia
o
sol líquido das muralhas
a
esquina do mundo
em
que se ancoram carrascos
la
luna pintada em seu rosto
Jocasta
e mãe
do seu Édipo em
delírio
lá
fora são as formas fundas
os
escombros do ser nas luminárias
o
neon da palavra
a
metrópole longínqua e seus raios
olho
do mundo cego
orvalho de várzea
não
houvesse o poema
não
houvesse verso
não
tivesse a poesia
gosto
úmido de mujique russo:
o
Rasputin olhado noutro espelho
o
Dylan Thomas de cristal e esporas
sobre
o cavalo-lesma
ferido
e vazado
la
luna as águas
a
fala daquela monja
que
em círculos trepava
pálida
no quarto
entre esperma e
sangue
tudo
líquido
gosma
da vida trêmula
o
tempo também é vero
e
veloz
o
mundo passando
o
olho pela vida
lá
fora
as
passas no jantar
uva
verde
lua
verde na sala de estar
entre formas
antigas
castiço
vitral de prata
fundo
em mim e em ti
um
passarinho
que reinventado
canta
folhas
aflitas
mudas
e estações
para
além do inverno
tudo que é verde
permanece
junho
é todos os meses
os
cantares mais primevos
testemunham
esta desolação de corpo inteiro
medido
e dobrado
cuspido e colado
ao verbo que o nutre
para
ti me abstenho
e
a ti me algemo mais
que
a um segredo:
faça-se
a luz
e
a luz não foi feita
foi
inventada
invente-se
também a treva
da
espessura das águas
e os quadrúpedes
com seus holofotes
faça-se
a vida
e
a vida não foi feita perdeu-se
junto
com velhos trastes que eu usava
e
fez-se também a morte
do
mesmo amargo da mágoa
os
cadáveres elétricos iluminados na sala
e
não se faça mais nada
nem se crie ou
invente
madura
para germinar a flor desbota
sua
cor líquida de carbônio e olfato
cheiro
de flor em flor
o espinho do
mundo
crescem
cardos
tateio
no
escuro da água tateio
pousa
o olho e o olhar na água escura
põe
a camisa de listras no cabide
ferve
a vida na água
fecha o mundo
onde
línguas estalam
há
somente suor e estalactite
há
somente as escamas
do meu coração
aberto
temer
a água
viver
na água
regulo
o relógio do cérebro
avanço
engulo
a infâmia das horas
tropeço
banhado
em águas de Narciso
sou
levado às correntes
em
fúria cobrindo o meu retrato
eis
isto:
a
casa
a fêmea
há
na janela um mal que não descora
palavra
e verbo não me consomem inteiro
cego
de nascença
vejo
a marca da lama
onde o pé afunda
para
lá da sede e para além da água
está
fundada a ilha dos sozinhos:
destroços
da minha fala
podem
conter o mundo
entraste
em mim
nome
de mãe
esparadrapo
colado à minha boca
por isso te
reescrevo mil vezes
ninguém
me espera ali
onde
a água se move
ali
ninguém se move
e
a água não me limita
mas
imito os antigos
inventando mitos
é
tudo o que faço
neste
ofício de trevas
paixão
de homem e gado
no cabresto do
tempo
foi-se
a lua da sala
setembro
com suas tardes
foi-se
aquilo que é finito
no
grito das suas asas
foi-se
a lua de bigode
redoma fechando
isto
mascarado
de fel ainda em agosto
um
galo me testemunha na janela
também
são líquidos
a
voz de pluma
o
esporão de azeite
nenhuma
sombra há sobre o mistério
nenhuma
sombra sobre o lago em leque
que me possa
ligar a um mar sem margens
aragens
ruínas
desse pó que liquefaz-se
sobre
meus passos
pelos
meus cabelos
a
mesa posta
o
céu na mesa
todas as palavras
postas em pesadelo
é
tudo bosta
o
mesmo verso que escrevo sempre
e
os avisos
livros
por todos os lados
o
café-tv dos teus olhos
chora
por todos os olhos
e
dias à míngua
finados
posto
em guarda em Marianópolis
ou
cravado
é
assim a alma presa num painel de borboletas
solta
palavra sangrando signos
para
aquém da veia e para além da porta
a
porta que se abre para o dia
o
dia podre
galo
estrebuchando
é
a síntese de tudo que conheço
a
vida passada a verso
o inverso da
nossa fome
tudo
que é síntese
é
mar em demasia
velas
planos cortes
bolor
de grama
farsa
sem nome
não
é isto o poema
um
velho?
um antihomem?
sobreveio
o temor
ecos
primitivos
sobreveio
o farol
o muro o risco
e
sobrevoando tudo
a
sombra de um cisco na água
na
voracidade da água
na paixão líquida
pelas ruas desertas
flor
escura do canto
a
vida é um aguaceiro
nódoa
gelada
entre
mim e o que fito
a
vida toda é espelho
do primeiro grito
para
lá me encaminho
vestido
de asperezas
para
ti me dispo e canto
a
água contaminada
véu
espesso da alma
por
onde escorrem detritos
Raimundo Fontenele / Poeta maranhense
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