1 de mar. de 2017

A COLHEITA DO MUNDO

A coluna QUARTA-FEIRA É DIA DE RF do blog LITERATURA LIMITE (www.literaturalimite.com.br) é especialista na divulgação, análise e crítica de textos literários, filosóficos e etc. e tal. Pensadores, Escritores, Professores, Educadores não podem abrir mão desta espécie de sacerdócio laico, que é: abrirem a mente de jovens e adultos do nosso país para uma reflexão mais profunda sobre esta época de futilidades e engodos que estamos vivendo. Também nos círculos mais respeitáveis da intelectualidade brazuca, Universidades e quejandos, a chamada indústria cultural transformou-se num sugadouro de dinheiro público e privado oferecendo em troca “produtos” culturais mais rasteiros do que umbigo de cobra. As cátedras universitárias, as redações de jornalões e revistóides, o monopólio das galerias da arte-instalação, o controle dos meios de financiamento e distribuição de inúmeros filmecos produzidos com o dinheiro dos impostos dos sacrificados trabalhadores brasileiros, tudo isso resulta numa cultura amorfa e pasteurizada, insossa e morta que precisa, urgentemente, de um chute no traseiro pra ver se toma tenência e acorda para a vida verdadeira. Ou pelo menos para ver se os responsáveis por isso tomam vergonha na cara.

A seguir, a primeira parte do livro A COLHEITA DO MUNDO, de minha autoria, publicação de 1986, pela Editora SERIEMA, de Porto Alegre e que tem o título de Invenções: a água. Sem falsa modéstia, mesmo reconhecendo que não é uma poesia que permaneça sempre sobre as águas, pois em alguns momentos afunda, estética e criativamente, pertence este poema a uma tradição poética que traz os ecos da nossa ancestralidade. Das confusões filosóficas ao longo dos séculos, das guerras de religião e de tronos e das inúmeras tentativas que o homem fez e faz para se aproximar e aceitar-se a si mesmo e ao outro, este ente invisível que nos persegue e a quem perseguimos, movidos pelo amor, ou pelo ódio, ou pelo sofrimento, ou pela indiferença, e tantas vezes também pela alegria e pela esperança. (RF)

INVENÇÕES: A ÁGUA
à sombra do muro
arrimo das águas primeiras
(mas turvas)
escrevo versos
que invento líquidos
na tarde clara
de um setembro triste
é assim a tarde trabalhada na madeira
a noite exasperada de sobrancelhas espessas
e o dia findo findo
agora que das águas
depende o rumo do mar e do amor
que correm junto aos juncos
aos junquilhos
águas do Mearim
águas do Guaíba
águas de ti e de mim
no meu coração marinho
a vida toda é gelo
meu coração
inverno ao inverso
líquido bate
surdo gemido na sala
la luma sobre o crepúsculo
alarde
a tarde ainda morde
arde na veia
o sol líquido das muralhas
a esquina do mundo
em que se ancoram carrascos
la luna pintada em seu rosto
Jocasta e mãe
do seu Édipo em delírio
lá fora são as formas fundas
os escombros do ser nas luminárias
o neon da palavra
a metrópole longínqua e seus raios
olho do mundo cego
orvalho de várzea
não houvesse o poema
não houvesse verso
não tivesse a poesia
gosto úmido de mujique russo:
o Rasputin olhado noutro espelho
o Dylan Thomas de cristal e esporas
sobre o cavalo-lesma
ferido
e vazado
la luna as águas
a fala daquela monja
que em círculos trepava
pálida no quarto
entre esperma e sangue
tudo líquido
gosma da vida trêmula
o tempo também é vero
e veloz
o mundo passando
o olho pela vida
lá fora
as passas no jantar
uva verde
lua verde na sala de estar
entre formas antigas
castiço vitral de prata
fundo em mim e em ti
um passarinho
que reinventado canta
folhas aflitas
mudas e estações
para além do inverno
tudo que é verde permanece
junho é todos os meses
os cantares mais primevos
testemunham esta desolação de corpo inteiro
medido e dobrado
cuspido e colado ao verbo que o nutre
para ti me abstenho
e a ti me algemo mais
que a um segredo:
faça-se a luz
e a luz não foi feita
foi inventada
invente-se também a treva
da espessura das águas
e os quadrúpedes com seus holofotes
faça-se a vida
e a vida não foi feita perdeu-se
junto com velhos trastes que eu usava
e fez-se também a morte
do mesmo amargo da mágoa
os cadáveres elétricos iluminados na sala
e não se faça mais nada
nem se crie ou invente
madura para germinar a flor desbota
sua cor líquida de carbônio e olfato
cheiro de flor em flor
o espinho do mundo
crescem cardos
tateio
no escuro da água tateio
pousa o olho e o olhar na água escura
põe a camisa de listras no cabide
ferve a vida na água
fecha o mundo
onde línguas estalam
há somente suor e estalactite
há somente as escamas
do meu coração aberto
temer a água
viver na água
regulo o relógio do cérebro
avanço
engulo a infâmia das horas
tropeço
banhado em águas de Narciso
sou levado às correntes
em fúria cobrindo o meu retrato
eis isto:
a casa
a fêmea
há na janela um mal que não descora
palavra e verbo não me consomem inteiro
cego de nascença
vejo a marca da lama
onde o pé afunda
para lá da sede e para além da água
está fundada a ilha dos sozinhos:
destroços da minha fala
podem conter o mundo

entraste em mim
nome de mãe
esparadrapo colado à minha boca
por isso te reescrevo mil vezes
ninguém me espera ali
onde a água se move
ali ninguém se move
e a água não me limita
mas imito os antigos
inventando mitos
é tudo o que faço
neste ofício de trevas
paixão de homem e gado
no cabresto do tempo
foi-se a lua da sala
setembro com suas tardes
foi-se aquilo que é finito
no grito das suas asas
foi-se a lua de bigode
redoma fechando isto
mascarado de fel ainda em agosto
um galo me testemunha na janela
também são líquidos
a voz de pluma
o esporão de azeite

nenhuma sombra há sobre o mistério
nenhuma sombra sobre o lago em leque
que me possa ligar a um mar sem margens
aragens
ruínas desse pó que liquefaz-se
sobre meus passos
pelos meus cabelos
a mesa posta
o céu na mesa
todas as palavras postas em pesadelo
é tudo bosta
o mesmo verso que escrevo sempre
e os avisos
livros por todos os lados
o café-tv dos teus olhos
chora por todos os olhos
e dias à míngua
finados
posto em guarda em Marianópolis
ou cravado
é assim a alma presa num painel de borboletas
solta palavra sangrando signos
para aquém da veia e para além da porta
a porta que se abre para o dia
o dia podre
galo estrebuchando
é a síntese de tudo que conheço
a vida passada a verso
o inverso da nossa fome
tudo que é síntese
é mar em demasia
velas planos cortes
bolor de grama
farsa sem nome
não é isto o poema
um velho?
um antihomem?
sobreveio o temor
ecos primitivos
sobreveio o farol
o muro o risco
e sobrevoando tudo
a sombra de um cisco na água
na voracidade da água
na paixão líquida pelas ruas desertas
flor escura do canto
a vida é um aguaceiro
nódoa gelada
entre mim e o que fito
a vida toda é espelho
do primeiro grito
para lá me encaminho
vestido de asperezas
para ti me dispo e canto
a água contaminada
véu espesso da alma
por onde escorrem detritos

Raimundo Fontenele / Poeta maranhense


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