30 de mar. de 2017

QUARTA FEIRA É DIA DE RF

            A coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF do nosso blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br) de hoje publica um poema de minha autoria, escrito por esses dias em que a angústia, a dúvida, as incertezas de viver  tendo emoções, e sofrendo e se alegrando com elas, nos motivam e nos inspiram para esta maravilhosa tarefa que é o trabalho de criação. Ver surgirem, nas páginas em branco, palavras carregadas de coisas vivas, palavras que pulsam e pulam, palavras que sorriem e sangram e que nos tornam também seres vivos, ansiosos, sôfregos pelo que virá em seguida.
            Para a leitura de vocês, e comentários, e críticas, a seguir o POEMA DO AMOR DE LONGE.
 POEMA DO AMOR DE LONGE 


Arrancado do pó e do hálito soprado
arrastei-me para o silêncio na madrugada chuvosa,
gotas dágua caíam de um céu pré-existente,
bem antes que o mundo houvesse.
Vieste a mim, por buscar-te
talvez entre as copas das palmeiras,
onde o pássaro cantava.
O amor. Cego assim. Doído ou doido.
Isso e as outras estrelas, tão sujas,
esteladas ou estrelares,
e os teus castanhos olhos, puros.
Fui. Um parênteses. Um combo de coisas
novas, conosco havidas,
assim esta tua sombra a sorrir-me na luz.

II
Não se maldiga da sorte, a morte é passageira,
outra vida te espera muito mais verdadeira,
e de onde nada esperas, eis tua fortaleza.
Eis tua casa forte, teu amor esperado,
a mulher que amaste num longínquo passado,
é a flor que agora colhes no jardim ao lado.
A flor que vira rosa e tem espinhos
que se cravam na carne lentamente.
Não somente na carne, mas também na alma,
e o coração solfeja, num ritmo alucinante,
melodias tristonhas de canções ardentes.

III
Amei a tua boca e os pássaros​,
e os teus lábios de mil novecentos e
sessenta e oito,
ou foi depois?
Frutas no prato. E a tua mesa,
unhas e medos, tudo junto.
Foi-se o domingo e a tarde,
que prometia tanto,
também se foi sem alarde,
naquela rede, lá, tão longe sala.

IV
conchas de cristais
em tua mão de ouro.
contido zelo em
penumbras de aço.
juntar-me a ti, após,
num só abraço.
os lábios sinto
sem as palavras.
o mundo estranho
mudo. só muros
recortando
corpo e alma.
ervas para o chá,
hortelã. e gozo
as primícias do dia.
fugiu de mim a Musa
ardente. oh, noite
temo o seguinte.
nutrir o amor com quê?
sílabas anônimas,
palavras incompletas?
Musa, vê-me o aflito
palpitar do pulso:
é o que ouso. e posso.
os passarinhos, lá fora,
despertam a manhã
como podem. com o
canto. eu, não. a cama
não suporta o que grito:
teu nome em chamas.
Eli, N, Eloi, Lamá
Sabactani?

V
a dúvida é duvidar se houve ou há
o mesmo amor de antes, ou se já
tudo passou, se foi ao Deus dará.
sem rima ou remo, só a inominável
dor, lição de versos mudos, onde a
palavra calou todas as falas. pois,
para além do silêncio, tudo acaba
e nada ao tempo resiste, só a fala
tateia entre dentes. a língua? cala.
mas o olho a si mesmo se vê no
vão da sala, onde o espelho me vê.

VI
que maravilha, esse amor. e sete
vidas de gatos, de Jacó, Raquel
e Lia, eu também as daria
em torno a ti. voo de pombas
sobre a relva verde. ervas
medicinais que a tudo curam.
a lua, então, fulgura, pálida
de neve. de amargura,
faço as minhas preces
subirem  até o sol de junho.
ali te enxergo e vejo
o que espero cumprir-se
qual promessas de amor:
aqueles dias idos de agosto.

VII
onde andará aquela que amei?
no bosque ou na avenida se
derramam seus passos
até as estrelas. posso vê-la,
sozinha, e posso tê-la
em meus tristes sonhos.
onde andará aquela que amei?
branca sereia, e eu num barco torpe
não fui a lugar nenhum
a procurá-la. e agora a solidão
cai como pedra, ou treva
ou como terra que já não se vê.
onde andará aquela que amei?
quanto a mim, descubro
telhados. pulo de aviões
sem paraquedas, avanço
aos trancos e barrancos
da doce juventude.
aquela que amei, está aqui.
dentro de mim, colada à
minha pele. tempestuoso
amor que bate-bate. voo
de pássaros às cegas, e sei
o quanto dói o que me negas.

VIII
parte-se-me o coração
como nuvens, aos pedaços.
inquietude bebe sombras,
leva borrões, manchas
do que ficou  e findou-se.
o poema é coisa viva,
rasteja, se mexe feito cobra
e vibra silente. armadura
para conter a lágrima,
e viver o que ainda existe.

IX
estranhei na madrugada as batidas do coração. loucamente apaixonado, e aí eu podia, tinha só 20 anos e ela estava bela, o domingo que veio dela me encharcou de luz. os dias adivinhavam o que eu queria,  as noites sabiam o que eu não sabia, e é que ficaria sozinho, com as estrelas desgarradas e meu mundo desmoronando. chutei tudo que aparecia pela frente: pedra, lembrança, soluços.
atormentado pelo poder do amor,  me perguntava porque ela saiu assim de  mim, arrancando as palavras da minha boca, deixando que, caído, eu arrastasse a cara na poeira do chão e mergulhasse de vez numa sofreguidão de copos, cigarros e drogas pesadas. o sangue vermelho das veias misturado com o branco das anfetaminas. as pupilas dilatadas dos olhos fitando o colorido violento dos quadros de grandes artistas fixados nas paredes da imaginação. os cogumelos colhidos no campo me levando para viagens de cartões postais e angústias de fim do mundo.
mas antes, muito antes, eu senti seu perfume adocicado de beija-flor, toquei seus cabelos como quem segura liames que nos ligam ao céu, e a beijei com desmaios e devaneios. respirei dentro de sua respiração ofegante, morto de desejo e de silêncios, a vida se partindo como vidros quebrados.  e ela ali, comigo e longe, afastando-se. e ela ali, comigo e distante, com a brancura do seu corpo deixando-me sozinho na encruzilhada da perdição. e ela ali, comigo e sumindo para sempre.

X
Desgarrado, sem pátria e sem amor
ainda chamo seu nome vez em quando.
Mas lembro: movia-me nas pedras,
melancólico e só, quando sorria.
Sem ela, por onde andei e o que fiz
foi um plantio do inútil, um não viver
com máscaras no rosto, ondas do mar
que vi, ao longe, vida de espuma.
Ave, Maria, mãe dos esquecidos do tempo.
Ave, Maria, mãe dos perdidos nas trevas.
Ave, Maria, mãe dos iludidos na terra.
Ave, Maria, mãe, só penso nela.
Ó Senhor, pai dos amantes abandonados.
Ó Senhor, pai dos desesperados.
Ó Senhor, pai dos ludibriados.
Ó Senhor, pai, perdi-me dela.
Agora digo adeus ao sonho que se vai,
ela quebrou meu coração com pedra,
afogo as mágoas no rio Uruguai,
até queimar meu coração com sua luz.
Viver de amor, sofrer, morrer de amar.
Viver de amor, assim vou me acabar.
Longe de mim, ela se fez de surda
e muda. E a minha vida mudou: infinda.

Porto Alegre, RS, outono de 2017
Raimundo Fontenele


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