6 de abr. de 2017

ZONA PROIBIDA

         
      A coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF do nosso blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br) de hoje publica um trecho do livro de contos de minha autoria PEDAÇOS DE ALBERTO CARONTE. O conto se chama Zona Proibida, e retrata um pouco da vida de um pobre diabo, ou um farrapo humano, tentando sobreviver em meio ao tráfico de drogas, o alcoolismo e as confusões com a polícia. (RF) 
            ZONA PROIBIDA
            Nos poucos meses em que ficamos juntos nos metemos em todo tipo de prazer e dor. Tínhamos encontrado nossa metade mais acabada, mais que perfeita. Se era para seguirmos por uma vereda de salvação, lá íamos nós, fingida e verdadeiramente contritos. Convictos, com o mesmo ardor, nos arrastamos por tocas de perdição, lugares escusos, fontes copiosas de fel que jamais secariam.
            Depois da cerca, bem cuidada e estranha, jazia estendido no chão e uma faca enfeitava-lhe o peito, quase na altura do coração, com tinturas vermelhas. Isso. Ele estava ferido, caído na sarjeta. A lua, um pedaço de prata que o céu jogava na sua cara, era a única testemunha. Rastejou como fazem os vermes, no escuro e úmido chão de uma noite morta.
            Sara. Era esse seu nome. Arrancou-lhe do peito aquele pequeno punhal que, feliz ou infelizmente, não o ferira mortalmente. Levou-o, de táxi, para sua casa e o curou com sua amizade, seu amor, seu sexo.
            Ficou com ela por amor e amizade. Amor, porque esse foi o nome da sua perdição. E amizade, porque esse não é um sentimento de mesquinhos. E ele estava perdido, mas não se sentia mesquinho, pelo menos naquela época. Daria tudo para tornar-se um santo, purificar-se, atingir alguma forma de perfeição. Mesmo que no só no papel. Pois, na real, era um cara que tinha quase todos os desvios, desejos, vícios e taras sexuais. E todos os crimes, e todas as culpas.
            Sara trabalhava numa empresa de telemarketing o dia inteiro. Sábados, domingos e feriados. Horas e horas extras, porque ele precisava de dinheiro para alimentar todas suas necessidades: bebida, drogas, os tais amigos, outras mulheres.
            Moravam numa casinha de madeira, alegre a agradável, de um claro azul que combinava com o marrom suave de grades, portas e janelas. Sempre limpa e asseada, todas as coisas nos seus devidos lugares. Dois quartos, duas salas, uma servindo de copa e a outra de sala de estar, uma cozinha espaçosa, banheiro e área de serviço num minúsculo quintal. Na frente da casa, vasos de plantas diversas: violetas, samambaias de Boston, bromélias, lírios da paz, begônias.
            – São as únicas plantas que suporto. Todas as outras dão azar – ela falou com uma voz de criança que sempre tinha, mesmo quando magoada ou feroz.
            Mas, quem ouvisse aquela voz ao telefone jamais saberia do que Sara era capaz. Estava com trinta anos e ele com quarenta. A forte, a batalhadora era ela. Havia catado aquele homem no lixo, sangrando. Quando sarou, deixou que a chupasse toda, pela primeira vez na vida; trepou nele e gozou entre urros, quase nunca suspiros. Deu-lhe lições de cavalheirismo em alguns restaurantes de grã-finos que, às vezes, frequentavam. Geralmente ele descolava uma grana nos fins de semana, não perguntem como. Há mil maneiras de se fazer dinheiro, inclusive, fazendo-o.
            Mas isso não importa agora. Sabiam que ali naquela casinha de Curitiba poderiam ter sido muito felizes. Eram pirados demais, cada um a sua maneira, para qualquer plano dar certo. Como no poema de Maiakovski, o solo dos corações também havia secado. Pessoas que, mesmo querendo, não conseguiam amar. O pensamento e a emoção aprisionados pelo medo de sofrer. A determinação de não se repetirem. No fundo, seres originais.
Aos quarenta anos ele tinha enfrentado e perdido incontáveis batalhas. Fracasso em cima de fracasso. Uma terrível escalada para baixo. Quando chegava ao fundo do poço e conseguia anular-se completamente, Caronte parava de sofrer. A vida lhe sabia mais tragável. Queria, de novo, voltar a ter um pouco de humanidade. Ela precisava do mesmo que ele, ansiava o mesmo que ele, dois sedentos em busca da mesma água.
Ao final das contas um dos dois devia sobrar. Alguém ia perder na história, e outro alguém ia sofrer mais, e perder mais. E perder tudo. Às vezes isso acontece. Mesmo que não se dêem conta. Flor a embriagá-los com seu perfume-veneno. O espinho e o rastro de sangue que ele deixa atrás de alguém.
Um dia contei o incidente, o cara que me acertou com o punhal, a polícia estava no encalço do cara, por isso ele resolveu sumir. Os vizinhos sabiam disso, só por isso escapou com vida e pela mão de Sara que passava naquele instante e foi com sua cara. Nem bonito nem feio. A simpatia, o papo inteligente, a conversa mole e afiada ganhava as pessoas, inspirava confiança.
Dentro de uma sala de uns quatro metros quadrados. Lá na frente havia uma pequena mesa de madeira e uma cadeira, sem encosto, onde o alemão Nardela, sentado, o torturava. Era a maquininha de tortura, parecia uma daquelas máquinas calculadoras antiquíssimas que se via em escritórios e casas comerciais, com uma manivela do lado direito, que na polícia chamavam de maricota.
Havia também um banco de madeira com, no máximo, uns quarenta centímetros de altura, que acolhera a jaqueta porteña de trinta dólares do infeliz Caronte, do lado oposto ao local onde há pouco se sentara seu algoz. Caronte tentou levantar-se, arrastar-se até aquele banco, ali estaria mais quente que o cimento frio, mas foi inútil qualquer esforço.
Caíra para a frente, berrando, logo após a primeira saraivada de choques elétricos. “Sara, me salva”, pensou e orou, ajoelhando-se.
A última vez em que se beijaram, umas três horas antes da sua prisão em flagrante, ela fora empurrando-o até o sofá. Caiu deitado, ela sentou-se sobre ele, fervendo e trepidante, beijou-lhe os lábios com saliva quente e salgada, e era como se ela estivesse também ajoelhada e rezando. Na verdade antecipava no gozo a condenação. Por isso, embora estivessem molhados pelo desejo de macho e fêmea, abrasados, sedentos, mais quentes eram as lágrimas dela, antes e depois de tanta sofreguidão.
– Porra, já falei! Não sou traficante...
– Tu veio de onde, seu merda?
– Já disse. Vim por último de Camboriú. Mas estive antes em Brasília, Fortaleza, Porto Alegre, São Luís, por aí...
– Chega! Tu vai falar “jacu” de bosta.
Depois desse diálogo entre o alemão Nardela, um policial com fama de torturador, e Caronte, acusado de tráfico de droga, a autoridade girou a manivela da Maricota com ódio e velocidade. Caronte pulou, um boneco de mola saltando para o nada. Deu de cara no chão, sangue escorria do seu queixo, mas ele não sentia dor alguma. Ficou ali caído, ofegante.
Abriu os olhos e estava sozinho. Mais de quarenta minutos se passaram, e só agora ele pode ver, com espanto, o local em que se encontrava. Na chegada o pânico foi tanto que praticamente não enxergou nada. A não ser a mesa, a máquina, o banco e a penumbra.
Chegou e pôs todos os sonhos na mesa. Eles iam ter do bom e do melhor, comer nos melhores restaurantes, viajar para qualquer ponto do universo. Falou aquilo e ela acreditou. Nem sabia como pode prometer tanto, logo ele que desde os sete anos de idade sabia que a vida nunca seria uma promessa. O certo é que estavam ali, ele e Sara, num lugar chamado Frango Sem Nariz. Era uma casa para lá de suspeita. Espécie de bar, restaurante, e, nos fundos, salas de jogatina, lugar para consumir drogas, quartos para a prática do sexo. Se você tivesse duzentos mangos para pagar uma hora, podia fazer o que quisesse.
Era um tempo de suspeitos, de asas lúgubres sobrevoando nossas cabeças e de sombras negras que se misturavam a nossa própria sombra. Foi assim que tudo começou naquela tarde chuvosa de setembro de uma quarta-feira, às duas e meia, num estacionamento de uma rua no bairro Barigui. Era primavera, mas não eram flores, e sim revólveres apontados na direção de Caronte e seu amigo Paçoca.
Haviam estacionado o volksblue, o Paçoca desceu e foi até um barzinho fazer um contato para entrega da mercadoria. Caronte permaneceu no carro, mas logo que Paçoca desapareceu, um nó apertou-lhe a garganta, alguma coisa girou angustiada na sua cabeça e ele desceu e foi tudo instantâneo.
Enquanto Caronte descia, ao mesmo tempo em que largava a droga no piso do carro, um Gol da polícia militar entrava no pátio, e dois policiais saltaram e caminharam em sua direção com revólveres em punho e engatilhados.
– Não se mexe... deita no chão, de bruços, porra! – falou um deles, alto, magro, moreno, com aquele bigodinho fino e bem aparado, em cujo crachá podia-se ler Soldado Rodolfo.
A vida tinha se tornado uma coisa valiosa para Caronte e cada ano agora era vivido intensamente, cada ano valia por dez. Se ele tivesse que escrever a história da sua vida seria assim que começaria o livro. Mas ele não estava escrevendo e sim contanto a história da sua vida.
Se ele tivesse outra vida, mesmo que fosse essa que se está contando agora, ele iria querer vivê-la de novo, porque achava que um homem era uma ponte entre o cão raivoso e feroz que se urina de ódio e aquela pomba branca sobre um gramado verde, anunciadora de paz e esperança.
Um fora da jogada.
Desesperado de amor e encharcado com a chuva persistente que caía naquele sábado. Felizmente Caronte estava com o estômago vazio. Não comera nada o dia todo e já eram cinco e picos da tarde, por isso não vomitou na sala de espera do consultório médico. Sara estava lá havia uma eternidade.
Aí ela saiu, pálida e linda. Na rua, tonto, o coração cravado por esporas e esperas, quase se afogou nas palavras.
– E aí, Sara, fala logo.
– O doutor passou uns remédios e repouso absoluto, senão vou abortar. Disse que é estresse, cansaço, nervosismo, essas coisas.
Foi tudo o que falaram no trajeto para casa. Estava anoitecendo, Caronte iria ligar a TV, Sara ia ficar no quarto com suas dores e esquisitices, e foi o que aconteceu. Dez horas da noite Caronte não suportou mais aquilo ali, Sara dormia, na rua entrou no primeiro bar que encontrou, pediu um conhaque e uma cerveja e repetiu a dose até perder a conta de quantos conhaques e cevas derrubara.
Uma noite de infernos se arrastava pelas ruas junto com ele. Instantes de lucidez repetiam martelando em seu cérebro que amar é perder, amar é esquecer, amar é sair de foco.
Caronte sabe apenas que esteve no apê de Verinha, uma puta novinha de tetas imensas que gozava gritando “ai tio, ai tio”, mas foi enxotado de lá aos primeiros claros da manhã. A embriaguez se dissipara um pouco, pés enlouquecidos o levaram a uma viela cheia de barracos de madeira no bairro Barigui.
Bateu três vezes na porta. Duas batidas aceleradas e uma mais lenta, era esta a senha. O cara que lhe abriu a porta com os olhos empapuçados era o Mahala, bicho grilo dono daquela boca-de-fumo, que tocou de leve em seu ombro, fechou a porta e lhe apresentou um baseado apagado e fumado pela metade. Caronte acendeu a guimba, deu uns três fortes tragadas e sentou-se num caixote de madeira no canto da sala.
– Tá mal, hein mano? – perguntou Mahala, cuspindo-lhe na cara por entre as falhas dos dentes.


Raimundo Fontenele

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