Após mais de um mês gozando
merecidas férias o nosso blog LITERATURA LIMITE está de volta para continuar
dialogando com nossos amigos leitores sobre literatura e arte, política e
cultura, filosofia e religião. Todos estes assuntos e temas relevantes,
principalmente neste ano de 2018 quando temos a difícil missão de escolher o
governante máximo de nosso país.
Mas, enquanto seu lobo não
vem, vamos conhecer este personagem que criei e que dá nome ao meu livro de
contos ainda inédito: trata-se de Alberto Caronte.
“Zona Proibida” é um pouco da biografia desse maluco beleza, doido de
pedra, um outsider verdadeiro.
ZONA PROIBIDA
Nos
poucos meses em que ficamos juntos nos metemos em todo tipo de prazer e dor.
Tínhamos encontrado nossa metade mais acabada, mais que perfeita. Se era para
seguirmos por uma vereda de salvação, lá íamos nós, fingida e verdadeiramente
contritos. Convictos, com o mesmo ardor, nos arrastamos por tocas de perdição,
lugares escusos, fontes copiosas de fel que jamais secariam.
Depois da cerca, bem cuidada e estranha, jazia estendido no chão e uma faca
enfeitava-lhe o peito, quase na altura do coração, com tinturas vermelhas.
Isso. Ele estava ferido, caído na sarjeta. A lua, um pedaço de prata que o céu
jogava na sua cara, era a única testemunha. Rastejou como fazem os vermes, no
escuro e úmido chão de uma noite morta.
Sara. Era esse seu nome. Arrancou-lhe do peito aquele pequeno punhal que, feliz
ou infelizmente, não o ferira mortalmente. Levou-o, de táxi, para sua casa e o
curou com sua amizade, seu amor, seu sexo.
Ficou com ela por amor e amizade. Amor, porque esse foi o nome da sua
perdição.. E amizade, porque esse não é um sentimento de mesquinhos. E ele
estava perdido, mas não se sentia mesquinho, pelo menos naquela época. Daria
tudo para tornar-se um santo, purificar-se, atingir alguma forma de perfeição.
Mesmo que no só no papel. Pois, na real, era um cara que tinha quase todos os
desvios, desejos, vícios e taras sexuais. E todos os crimes, e todas as culpas.
Sara trabalhava numa empresa de telemarketing o dia inteiro. Sábados, domingos
e feriados. Horas e horas extras, porque ele precisava de dinheiro para
alimentar todas suas necessidades: bebida, drogas, os tais amigos, outras
mulheres.
Moravam numa casinha de madeira, alegre a agradável, de um claro azul que
combinava com o marrom suave de grades, portas e janelas. Sempre limpa e
asseada, todas as coisas nos seus devidos lugares. Dois quartos, duas salas,
uma servindo de copa e a outra de sala de estar, uma cozinha espaçosa, banheiro
e área de serviço num minúsculo quintal. Na frente da casa, vasos de plantas
diversas: violetas, samambaias de Boston, bromélias, lírios da paz, begônias.
– São as únicas plantas que suporto. Todas as outras dão azar – ela falou com
uma voz de criança que sempre tinha, mesmo quando magoada ou feroz.
Mas, quem ouvisse aquela voz ao telefone jamais saberia do que Sara era capaz.
Estava com trinta anos e ele com quarenta. A forte, a batalhadora era ela.
Havia catado aquele homem no lixo, sangrando. Quando sarou, deixou que a
chupasse toda, pela primeira vez na vida; trepou nele e gozou entre urros,
quase nunca suspiros. Deu-lhe lições de cavalheirismo em alguns restaurantes de
grã-finos que, às vezes, frequentavam. Geralmente ele descolava uma grana nos
fins de semana, não perguntem como. Há mil maneiras de se fazer dinheiro,
inclusive, fazendo-o.
Mas isso não importa agora. Sabiam que ali naquela casinha de Curitiba poderiam
ter sido muito felizes. Eram pirados demais, cada um a sua maneira,, para
qualquer plano dar certo. Como no poema de Maiakovski, o solo dos corações
também havia secado. Pessoas que, mesmo querendo, não conseguiam amar. O
pensamento e a emoção aprisionados pelo medo de sofrer. A determinação de não
se repetirem. No fundo, seres originais.
Aos
quarenta anos ele tinha enfrentado e perdido incontáveis batalhas. Fracasso em
cima de fracasso. Uma terrível escalada para baixo. Quando chegava ao fundo do
poço e conseguia anular-se completamente Caronte parava de sofrer. A vida lhe
sabia mais tragável. Queria, de novo, voltar a ter um pouco de humanidade. Ela
precisava do mesmo que ele, ansiava o mesmo que ele, dois sedentos em busca da
mesma água.
Ao
final das contas um dos dois devia sobrar. Alguém ia perder na história, e
outro alguém ia sofrer mais, e perder mais. E perder tudo. Às vezes isso
acontece. Mesmo que não se dêem conta. Flor a embriagá-los com seu
perfume-veneno. O espinho e o rastro de sangue que ele deixa atrás de alguém.
Um
dia contei o incidente, o cara que me acertou com o punhal, a polícia estava no
encalço do cara, por isso ele resolveu sumir. Os vizinhos sabiam disso, só por
isso escapou com vida e pela mão de Sara que passava naquele instante e foi com
sua cara. Nem bonito nem feio. A simpatia, o papo inteligente, a conversa mole
e afiada ganhava as pessoas, inspirava confiança.
Dentro
de uma sala de uns quatro metros quadrados. Lá na frente havia uma pequena mesa
de madeira e uma cadeira, sem encosto, onde o alemão Nardela, sentado, o
torturava. Era a maquininha de tortura, parecia uma daquelas máquinas
calculadoras antiquíssimas que se via em escritórios e casas comerciais, com
uma manivela do lado direito, que na polícia chamavam de maricota.
Havia
também um banco de madeira com, no máximo, uns quarenta centímetros de altura,
que acolhera a jaqueta porteña de trinta dólares do infeliz Caronte, do lado
oposto ao local onde há pouco se sentara seu algoz. Caronte tentou levantar-se,
arrastar-se até aquele banco, ali estaria mais quente que o cimento frio, mas
foi inútil qualquer esforço.
Caíra
para frente, berrando, logo após a primeira saraivada de choques elétricos. “Sara
me salva”, pensou e orou, ajoelhando-se.
A
última vez em que se beijaram, umas três horas antes da sua prisão em
flagrante, ela fora o empurrando até o sofá. Caiu deitado, ela sentou-se sobre
ele, fervendo e trepidante, beijou-lhe os lábios com saliva quente e salgada, e
era como se ela estivesse também ajoelhada e rezando. Na verdade antecipava no
gozo a condenação. Por isso, embora estivessem molhados pelo desejo de macho e
fêmea, abrasados, sedentos, mais quentes eram as lágrimas dela, antes e depois
de tanta sofreguidão.
–
Porra, já falei! Não sou traficante...
–
Tu veio de onde, seu merda?
–
Já disse. Vim por último de Camboriú. Mas estive antes em Brasília, Fortaleza,
Porto Alegre, São Luís, por aí...
–
Chega! Tu vai falar “jacu” de bosta.
Depois
desse diálogo entre o alemão Nardela, um policial com fama de torturador, e
Caronte, acusado de tráfico de droga, a autoridade girou a manivela da Maricota
com ódio e velocidade. Caronte pulou, um boneco de mola saltando para o nada.
Deu de cara no chão, sangue escorria do seu queixo, mas ele não sentia dor
alguma. Ficou ali caído, ofegante.
Abriu
os olhos e estava sozinho. Mais de quarenta minutos se passaram, e só agora ele
pode ver, com espanto, o local em que se encontrava. Na chegada o pânico foi
tanto que praticamente não enxergou nada. A não ser a mesa, a máquina, o banco
e a penumbra.
Chegou
e pôs todos os sonhos na mesa. Eles iam ter do bom e do melhor, comer nos
melhores restaurantes, viajar para qualquer ponto do universo. Falou aquilo e ela
acreditou. Nem sabia como pode prometer tanto, logo ele que desde os sete anos
de idade sabia que a vida nunca seria uma promessa. O certo é que estavam ali,
ele e Sara, num lugar chamado Frango Sem
Nariz. Era uma casa para lá de suspeita. Espécie de bar, restaurante,
e, nos fundos, salas de jogatina, lugar para consumir drogas, quartos para a
prática do sexo. Se você tivesse duzentos mangos para pagar uma hora, podia
fazer o que quisesse.
Era
um tempo de suspeitos, de asas lúgubres sobrevoando nossas cabeças e de sombras
negras que se misturavam a nossa própria sombra. Foi assim que tudo começou
naquela tarde chuvosa de setembro de uma quarta-feira, às duas e meia, num
estacionamento de uma rua no bairro Barigui. Era primavera, mas não eram
flores, e sim revólveres apontados na direção de Caronte e seu amigo Paçoca.
Haviam
estacionado o volksblue, o Paçoca desceu e foi até um barzinho fazer um contato
para entrega da mercadoria. Caronte permaneceu no carro, mas logo que Paçoca
desapareceu, um nó apertou-lhe a garganta, alguma coisa girou angustiada na sua
cabeça e ele desceu e foi tudo instantâneo.
Enquanto
Caronte descia, ao mesmo tempo em que largava a droga no piso do carro, um Gol
da polícia militar entrava no pátio, e dois policiais saltaram e caminharam em
sua direção com revólveres em punho e engatilhados.
–
Não se mexe... deita no chão, de bruços, porra! – falou um deles, alto, magro,
moreno, com aquele bigodinho fino e bem aparado, em cujo crachá podia-se ler
Soldado Rodolfo.
A
vida tinha se tornado uma coisa valiosa para Caronte e cada ano agora era
vivido intensamente, cada ano valia por dez. Se ele tivesse que escrever a
história da sua vida seria assim que começaria o livro. Mas ele não estava
escrevendo e sim contanto a história da sua vida.
Se
ele tivesse outra vida, mesmo que fosse essa que se está contando agora, ele
iria querer vivê-la de novo, porque achava que um homem era uma ponte entre o
cão raivoso e feroz que se urina de ódio e aquela pomba branca sobre um gramado
verde, anunciadora de paz e esperança.
Um
fora da jogada.
Desesperado
de amor e encharcado com a chuva persistente que caía naquele sábado.
Felizmente Caronte estava com o estômago vazio. Não comera nada o dia todo e já
eram cinco e picos da tarde, por isso não vomitou na sala de espera do
consultório médico. Sara estava lá a uma eternidade.
Aí
ela saiu, pálida e linda. Na rua, tonto, o coração cravado por esporas e
esperas, quase se afogou nas palavras.
–
E aí, Sara, fala logo.
–
O doutor passou uns remédios e repouso absoluto, senão vou abortar. Disse que é
estresse, cansaço, nervosismo, essas coisas.
Foi
tudo o que falaram no trajeto para casa. Estava anoitecendo, Caronte iria ligar
a TV, Sara ia ficar no quarto com suas dores e esquisitices, e foi o que
aconteceu. Dez horas da noite Caronte não suportou mais aquilo ali, Sara
dormia, na rua entrou no primeiro bar que encontrou, pediu um conhaque e uma
cerveja e repetiu a dose até perder a conta de quanto s conhaques e cevas
derrubara.
Uma
noite de infernos se arrastava pelas ruas junto com ele. Instantes de lucidez
repetiam martelando em seu cérebro que amar é perder, amar é esquecer, amar é
sair de foco.
Caronte
sabe apenas que esteve no apê de Verinha, uma puta novinha de tetas imensas que
gozava gritando “ai tio, ai tio”, mas foi enxotado de lá aos primeiros claros
da manhã. A embriaguez se dissipara um pouco, pés enlouquecidos o levaram a uma
viela cheia de barracos de madeira no bairro Barigui.
Bateu
três vezes na porta. Duas batidas aceleradas e uma mais lenta, era esta a
senha. O cara que lhe abriu a porta com os olhos empapuçados era o Mahala,
bicho grilo dono daquela boca-de-fumo, que tocou de leve em seu ombro, fechou a
porta e lhe apresentou um baseado apagado e fumado pela metade. Caronte acendeu
a guimba, deu uns três fortes tragadas e sentou-se num caixote de madeira no
canto da sala.
–
Tá mal, hein mano? – perguntou Mahala, cuspindo-lhe na cara por entre as falhas
dos dentes.
Raimundo
Fontenele
(do
livro Pedaços de Alberto Caronte)
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