17 de nov. de 2016

CRÔNICAS DO PUCUMÃ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br).
Hoje trazemos a última postagem das CRÔNICAS DO PUCUMÃ, mas os leitores poderão, a partir de fevereiro do próximo ano, ter em mãos o livro impresso com outros episódios inéditos, inclusive a entrevista histórica com o senhor JOÃO BINA, cujo relato traz fatos anteriores até à década de vinte. Portanto, muitas surpresas ainda serão reveladas. Acompanhe aqui no nosso Blog o andamento desse projeto histórico.
Não esqueçam: a partir da próxima quarta feira, dia 23, uma nova série os aguarda, cumprindo assim esse blog o objetivo a que se propôs: levar a todos a boa literatura, a arte, o livro, os assuntos palpitantes que enriquecem a nossa vida e o nosso cotidiano. www.literaturalimite.com.br. Visualize, compartilhe e inscreva-se no nosso canal do youtube.
O TEMPO PASSANDO... (continuação)
Por esse tempo outro serviço de alto falante alegrava as noites são-dominguenses. Tratava-se do Serviço de Alto Falante Tupinambá, de propriedade do senhor Firmino Azevedo, pai do nosso amigo Ivar, funcionando na Rua Sete de Setembro, que era também sua residência.
Andei fazendo um programa de curta duração em que promovi um sorteio para crianças, com prêmios, para quem cantasse melhor. Arrecadei alguns prêmios com os comerciantes.
Competição realizada, maior empolgação, sorteio realizado, escolhido os ganhadores que foram premiados em seguida. Acontece que alguns capetinhas que não ganharam ficaram me esperando com pedras na mão perto da esquina da dona Dudu do João Antônio e tive que sair no pinote com a gurizada atrás.
Também o Paulo do João Padeiro possuiu um serviço de alto falante. A minha referência de data é que quem fazia muito sucesso nesse tempo era o Ronie Von, com a música O Carpinteiro, portanto já início dos anos sessenta.
Com esse serviço de som do Paulo, ele, eu e o Zé Queimado passamos o dia inteiro fazendo propaganda pela cidade do grande show que haveria em São Domingos. Era o cantor de maior sucesso em todo o norte e nordeste brasileiro, adivinhem quem era. Acertou quem disse ou pensou Valdick Soriano.
Teve até brigas de namorados que sentiam ciúme e não queriam que as namoradas fossem ver o pilantra, perdão, o cantor. E as meninas por nada do mundo iriam deixar de ver o galã número um da cena musical daquele momento, e, por conta disso, até romances chegaram ao fim.
Mas o Valdick Soriano era chegado numa birita, e depois do show o cara foi tomar umas e outras lá pelos lados do Pavão (nome chic da região dos cabarés) e, quando ele chegou no hotel, teve o maior quebra pau com a mulher que andava em sua companhia. Resultado: eles anoiteceram e não amanheceram, devendo o nosso serviço de propaganda e também a conta no hotel, que não era outro senão o Hotel Brasília.
A Eva, que não era de brincadeira, fretou um jeep e foi lá em Presidente Dutra onde o Waldick ia se apresentar e conseguiu arrancar do malandro o que ele lhe devia. E nós, que fizemos a propaganda, bem, nós entramos pelo cano.


SAPATOS, CALÇAS E CAMISAS, E POEIRÃO DA ESTRADA
Assim vejo os ciclos econômicos do município. Visão puramente de cronista e sem nada da rigidez fria e exata das análises científicas. Mas da forma que elas se refletiram na minha vida e na vida dos meus amigos, colegas, conhecidos mais chegados.
Estávamos no final da década de cinquenta. O comércio era exercido pelos próprios proprietários que, às vezes, quando muito tinham ali um parente ou agregado que os ajudava aos sábados quando o movimento aumentava por causa da Feira.
Funcionalismo público? A gente contava nos dedos da mão esquerda. Então a grande classe, fora do comércio, era a dos sapateiros. Com oito anos de idade fui colocado na Sapataria do senhor João Miguel, como aprendiz, e tive como mestres Rosalino, Luís Canivete e Dominguinho. Não esqueço o amigo Filadélfio.
Nessa Sapataria, localizada no primeiro quarteirão após a Praça Getúlio Vargas, vivi boas experiências, pra não dizer traquinagens. Como quando comecei a faltar, chegava em casa no meio da tarde pra fazer um lanche, suado, cansado, vermelho do sol e do jogo de bola, e minha mãe estranhava e perguntava porque eu estava daquele jeito.
– Ah, mãe, é de lixar a sola do sapato..
E quando ela dizia que ia lá ver como é que eu estava no serviço, eu rebatia de pronto:
 – Pelo amor de Deus, mamãe, não vá. Sapateiro não respeita ninguém, principalmente gente velha. Dão vaia, jogam garra de sola...
Um dia ela resolveu aparecer por lá e nada de me encontrar e os caras abriram o jogo e lhe disseram que fazia quase um mês que eu não aparecia. Aí em casa o couro comeu.
A outra grande Sapataria era a do senhor Enéas Miguel, irmão do João Miguel, também na Rua de Colinas, esquina com a Rua Clodomir Cardoso.  E lá fui aprendiz de um dos sapateiros mais famosos e dos que mais ganhava dinheiro nessa arte em São Domingos: o Zé Garrincha.
Nos fins de semana o Zé Garrinha metia uma calça e camisa de linho branco, impecáveis, e com o bolso recheado, solteiro, subia a conhecida ladeira que ia dar no Pavão, farrear com as primas.
Ele trabalhava com até seis aprendizes em volta da banca. Após receber o rosto do sapato tinha que fazer o solado e montar. E dizia pra nós o seguinte: o negócio é trabalhar ligeiro, não importava algum defeito, algum prego que ficasse mal rebatido, e que certamente iria incomodar o comprador. O segredo era o brilho final. Sapato pretinho, brilhante, o caboclo comprava sem muito lenga-lenga. E assim sua produção era maior que a de todos os outros.
 Então teve essa fase em que o sapateiros eram os caras que tinham dinheiro, faturavam bem, eram bem vistos na cidade pelas moças que estavam a fim de arranjar um namorado.
E os senhores João Miguel e seu irmão Enéas Miguel foram dois nomes da maior importância no comércio calçadista da São Domingos do fim da década de 50 e início da década de 60. Possuíam as duas maiores sapatarias da cidade, ambas na Rua Major Delfino Calvo, antiga Rua de Colinas e hoje chamada de Rua Principal.
A classe de sapateiros era, àquela época, o que havia de mais chic em termos de emprego e trabalho. Filadélfio, Luís Canivete, Dominguinhos, Marceu, Rosalino, os irmãos Elias e Olavo que, além de sapateiros, eram craques do Palmeira Futebol Clube, e tantos outros passaram e serviram nestas casas comerciais.
Depois, com a inauguração das Casas Pernambucanas e com outras casas comerciais que começaram a vender calçados comprados em outras praças como Fortaleza, Recife, Floriano, a atividade de confecção de calçados declinou bastante e os empregados das Casas Pernambucanas assumiram o lugar que pertencera aos sapateiros.
Parece que eu estava em todas e sempre fazendo das minhas. Foram selecionados os funcionários para trabalharem na instalação da loja e prepará-la para a inauguração. O gerente era o senhor Zé Carlos, vindo de São Luís, se não estou enganado, e para atender na loja, com grande experiência, vieram o Borges, de Pedreiras e o Walfredo, parece que de Bacabal.
De São Domingos era o João Paulo, o Jonas, o Neguinho do Zeza, e para trabalhar no escritório me lembro da Creuza, e menores de idade eu, que trabalhava no escritório, mas aos sábados ficava na entrada da loja, numa banca de retalhos, onde fazia o serviço de locução e propaganda e o outro era o Patônio, tipo ofice boy. E o João Paulo e o Neguinho do Zeza se revezavam como os grandes campeões em vendas, numa concorrência que só ajudava a lucratividade daquela casa comercial.
A gente estava num trabalho de abrir fardos de tecidos, arrumar as prateleiras, e tendo que trabalhar à noite para a inauguração que seria no sábado. Na sexta feira à noite tinha uma festinha de aniversário na Rua dos Cardoso e lá fui eu, inventando para o senhor Zé Carlos que estava doente. Dia seguinte alguém contou que eu estava na tal festa e ele já me dispensou de cara. Despedido antes mesmo da inauguração da loja.
Mas nem sei quem intercedeu por mim, o que sei é que fui chamado de volta. E assim, naquele momento, os funcionários da Pernambucana eram os caras. Todo fim de semana tinha cervejada na casa do Walfredo, sempre matavam um jabuti, sua casa era na Rua dos Cazé e assim a vida seguia, e era essa nossa turma que tinha agora a preferência feminina.
Pouco tempo depois chegaram os cassacos. Os caras que vieram trabalhar na estrada de rodagem, como se chamava na época, nada de BR, era a estrada que vinha de São Luís até São Domingos.
Tinha engenheiro, tinham outros profissionais e os cassacos, só sei que chegaram e faturavam muito bem, tornando-se concorrentes dos rapazes de São Domingos, que se mordiam de ciúme, como na música do Ultraje a Rigor. Eu mesmo quase perdia uma namorada para um pilantra desses. Lembro de um tal de Ribamar, apelidado Ribamar Quebra Galho, por quem as garotas suspiravam e foi esse malandro que andou arrastando a asa para a minha garota.
Mas a gente precisava da estrada. Porque antes, o que havia de transporte, era um ônibus da companhia Estrela Dalva fazendo a linha Floriano-Imperatriz, dirigido pelo Bertoldo, uma viagem que durava dias, no inverno, então, nem se fala.
O ônibus era daqueles de bancos inteiriços de madeira, as entradas eram de um lado ao outro, e além dos apetrechos que o motorista levava para vencer os atoleiros, como pás, enxadas, grossas correntes, os passageiros podiam levar animais vivos, tudo no bagageiro, e sacas de tudo que era mantimento.
Os donos eram os Caetanos, e o que eu conheci de perto era o senhor Pedro Caetano e essa empresa Estrela Dalva prosperou, eles enriqueceram e ela foi o embrião da que viria se transformar depois nessa gigante das estradas, a Transbrasiliana.
E assim, meses e meses, os trabalhadores da estrada permaneceram em São Domingos, incrementando também a economia local, pois muito do que ganhavam era gasto nas casas de comércio de São Domingos, e assim o município prosperava e se desenvolvia.
Mas os rapazes não estavam nem aí para esse lance de economia, o problema era que aqueles forasteiros estavam sempre em volta das moças, amigas e namoradas, e aquele Ribamar Quebra Galho, que tinha um charme todo especial, pois várias moças se atiravam pra ele, terminou casando com uma são-dominguense, a Irecê.
Pra quem se lembra e para quem não sabe, a Irecê era irmã da Marifran e do Patônio, meu colega de Pernambucana, os três filhos de dona Marica, proprietária de uma pensão na Rua de Colinas, onde depois funcionou o clube dirigido pelo Antônio Pinto, ali por perto de onde se localiza o comércio do Chico do Horácio.
E a cidade se expandia, além dos comerciantes da Praça, a Rua de Colinas tinha, além das duas Sapatarias dos irmãos Miguel, João e Enéas, o comércio do senhor Francisco Maia, do João Torres, o Cartório do Zé Freitas, senhor Raimundo Cosmo, senhor Tonho de dona Alvina, a Padaria do João Padeiro, senhor Francisco Mariano, ou Chico Marreteiro, e o senhor José do Fargo, dono de uma Usina de beneficiar arroz e de um caminhão com essa marca que lhe servia de complemento no nome, já bem próximo do início da subida da ladeira de Colinas.
Na Rua José Tibúrcio Feio, que a gente chamava a Rua da Lagoa, tinha a Igreja da Assembléia de Deus, e onde hoje é a Câmara Municipal funcionou a antiga e inesquecível Escola Municipal Teixeira de Freitas, do outro lado da rua o Hotel da Eva e a Padaria do senhor João Nogueira.
O comércio do Tião Cazé no final da Rua dos Cazé, onde residia o senhor Horácio Cazé, que foi também sapateiro, a Farmácia e residência do senhor Sebastião Mota, a família do Titita, José Pedro, Lourinho, Tião, gente, muita gente, povoando São Domingos e os meus sonhos e as minhas lembranças.
Seu Antônio Mota, pai do Brequiô ou Melquisedech, residente na Travessa Sete de Setembro, de novo na Rua de Colinas lembro do  Francisquinho e da Rosilda, depois ali morou o Didé, que em determinado momento foi uma das grandes fortunas de São Domingos. 
E assim vaga o meu pensamento, pulando de uma recordação a outra, nesta peregrinação e visitação ao passado e ao presente, sentindo os cheiros das comidas daquele tempo, do arroz misturado com feijão, o espeto da carne seca assada na brasa, o peixe com leite de coco, a galinha ao molho pardo, e as abóboras e batatas assadas nas fogueiras nas Noites de São João.
            
Raimundo Fontenele

            

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