24 de nov. de 2016

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje o livro em série DO OIAPOQUE AO CHUÍ que conta a viagem que o adolescente Gabriel faz com seu tio, do Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor conhecer os costumes e diversidades de nosso país.
  
DO OIAPOQUE AO CHUÍ


– Vamos, Gabriel! Ainda não arrumaste a mala, guri?
– O que, tio? Você está falando sério?
– Olha aqui as passagens, rapaz. Pensas que estou brincando?
Tio Marcos é demais. Eu não podia ter melhor presente de aniversário do que esta viagem. Estava esperando por ela há um tempão.
Alguns do meus colegas de aula já tinham ido a Disney. Chegaram contando maravilhas. Nunca me entusiasmei nem um pouco com o que me contaram. Para mim era como se estivesse vendo TV. Montanha russa, parque de diversões, pistas de roller, trem-fantasma, videogame, desde os dez anos que me desinteressei por este tipo de divertimento. Agora, com doze, o que eu queria de verdade era conhecer o Brasil por dentro.
E tudo por causa de tio Marcos, que é uma espécie de meu herói favorito. Até porque ele está aqui, é de carne e osso, ao alcance da mão. Não é como Wolverine, Batman ou o Demolidor que só existem na imaginação dos roteiristas de histórias em quadrinhos.
Claro que as aventuras do tio Marcos nem chegam aos pés das vividas pelos heróis dos quadrinhos, E pode até ser que ele aumente algum perigo ali, alguma ação corajosa aqui, porém é apenas para tornar a história de sua vida mais atraente.
Mas tio Marcos conhece o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. E de tanto de falar das viagens que fez, dos lugares que conheceu, das pessoas com quem aprendeu sempre algo diferente, não penso em outra coisa.
Por isso, quando meu pai me perguntou o que eu queria de presente pelos meus doze anos, não pensei duas vezes:
– Quero ir com o tio Marcos, quando ele for visitar sua fazenda no Pará.
– Mas, filho, naquele fim de mundo? Aquilo lá é só índio. – E, a seguir, falou para mãe:
– Marta, esse guri tem cada ideia... Ouviste essa?
– Essa o quê, Jorge?
A mãe largou o trabalho na cozinha e veio até o escritório onde eu e o pai estávamos. Eu, largadão no sofá. Ele, sentado à escrivaninha, com seus documentos do banco e calculadora. Ele é gerente de uma agência do Banco do Brasil e está sempre cheio de trabalho, tanto no banco quanto em casa.
Ele tirou os óculos e os limpou enquanto falava:
– Pensei que ele ia querer uma moto de presente, e ele me vem com história de caçar jacaré. Quer ir para Santarém, lá para a fazenda do teu irmão.
– Deixa o guri, Jorge. Apesar da pouca idade, ele é quem sabe o que é melhor para ele. E tem mais: passou por média em todas as matérias. Merece o que pede, não achas?
– Mas, Marta, aquilo lá é perigoso... – meu pai tinha ainda contra-atacado, sem êxito, capitulando enfim.
– Santa ignorância, Jorge. Acho que tu é quem estás precisando fazer essa viagem. Belém, Santarém são cidades antigas, têm tradição e cultura. No tempo da Província do Grão Pará-Maranhão...
– Aula de história para cima de mim não, Marta. Não agora. Eu prefiro ficar aqui debruçado sobre esses balanços do banco. E se tiver de viajar, minha escolha é Nova York. Quanto à viagem de Gabriel, tudo bem.

Aquela conversa tinha sido no final de novembro, eu tinha feito doze anos no dia 20 de dezembro. Agora estamos em janeiro. E estou na sala em companhia de tio Marcos e não do pai e da mãe. Com as passagens na mão, não escondo a alegria:
– Que bacana, tio! Até que enfim chegou o momento que tanto esperei. – Confere a data de embarque, acrescentando: –E é no próximo dia 14, dentro de dez dias, que legal. Que legal!
Abracei tio Marcos, enquanto lhe devolvia as passagens. Ele alisou-me a cabeça, e destacou o meu bilhete de passagem, que me entregou, dizendo:
– Guarda contigo, mas cuidado para não perderes. Sem ele, adeus viagem. – Piscou-me o olho direito, com aquele jeito de sorrir que só ele tinha – Agora tenho de ir. Nem sabes quanto coisa tenho de fazer nestes dez dias, antes do nosso embarque.
– Nem acredito, tio. Uma viagem do Oiapoque ao Chuí! – Eu estava superagitado.
– Primeiro: não é do Oiapoque ao Chuí. Segundo: já que estamos no sul, é do Chuí ao Caburaí.
– Que é isso, tio. Assim, não estou entendendo mais nada. Caburaí? Que raio é isso?
– Ora, Gabriel. Nada é imutável. Tudo está mudando de lugar, de cor, de forma, essência, a todo momento. É a lei da natureza. Mutatis mutandis.  O tio era metido a poliglota. Mas desses que não conseguem fazer uma frase completa em língua estrangeira. De vez em quando, mete lá um muchacho, um voglio bene, um três Jolie, numa frase. E só. Mas eu acho que o certo é mutatis mutantis. E ele continuou: – E como tudo muda, o ponto extremo norte do Brasil também mudou: é um tal de Monte Caburaí.
– E onde fica isso, tio?
– No estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Mas agora tenho mesmo de ir, Gabriel. Passa lá em casa depois da janta. Precisamos acertar alguns detalhes da viagem. – E o tio bateu em retirada, enquanto eu, eufórico, prometia:
– Não se preocupe, tio. Vou sim. Sete da noite, m ponto, vou estar lá.
– Então, tchau, guri.
– Tchauzão, tio.  
Quando fiquei só, a primeira pergunta que me veio, foi: será que eu vou conseguir dormir até chegar o dia da viagem? E a segunda: será que vai demorar até as sete da noite?
            Olhei o relógio de pulso: 15h20min. Nossa, faltavam só quarenta minutos para a aula de judô. Ainda bem que a escola era na Avenida Assis Brasil e daqui do Jardim Ipiranga o ônibus leva no máximo dez a doze minutos.
Tinha bastante tempo ainda. Pensei: vou tomar um banho frio, está um calor de rachar, fervendo mesmo. No mínimo uns trinta e seis graus. A tarde mais quente do ano, segundo a meteorologia das emissoras de rádio e tevês.
            Tomei um banho bastante demorado, assoviando uma música da Turma do Balão Mágico e tentando adivinhar o que me esperava naquela viagem. Tio Marcos que me desculpasse, mas eu ia crivar ele de perguntas até a hora da partida.
            Depois do banho peguei o material e fui para a academia de judô. Quando eu ia entrando, dei de cara com o Maurinho, que saía do treinamento.
             – E aí, Gabriel, tudo certo?
            – Certíssimo, Maurinho. Certissimamente certo – falei, todo contente.
– O que foi, cara, que alegria é essa? O velho te deu a moto? Foi isso? – O Maurinho tinha quinze anos e há pouco havia ganho uma moto de presente. Será que ele achava que a única coisa que pode alegrar um adolescente é uma moto? Tinha estampado na sua cara um enorme sim.
– Que nada, cara! – respondi. – Dia 14 embarco com tio Marcos para Santarém, bicho.
– Santarém? E onde diabo fica isso, cara? No Japão, na lua?
– Não, Maurinho. Em Marte. Pô, cara, deixa de burro. Santarém é uma das principais cidades do Pará.
Olhei o relógio e vi que dava para espichar aquele papo com o Maurinho por mais uns dez minutos. Era o tempo que faltava para o início da aula.
– Revisão de geografia: você sabe qual a distância daqui até lá?
– Não faço a mínima ideia  – respondeu um pensativo Maurinho. – É, mas deve ser longe, né?
– Mais de 5.000 quilômetros. Tio Marcos diz que é chão que não acaba mais.
Maurinho recostou-se no portão da academia e retirou um maço de cigarros e um isqueiro da mochila. Acendeu um, fazendo pose de Nicola Cage, no filme Coração Selvagem, com quem ele se achava parecido. Ofereceu-me um cigarro. Não me segurei.
– Qual é a tua, hein, cara? Praticando judô, respiração, meditação, pra quê? Você mal saiu do treino e já está se envenenando desse jeito.  (CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)

Raimundo Fontenele








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