25 de dez. de 2016

A COLHEITA DO MUNDO – 2

I

INVENÇÕES : A ÁGUA


madura para germinar a flor desbota
sua cor líquida de carbônio e olfato
cheiro de flor em flor
o espinho do mundo
crescem cardos
tateio
no escuro da água tateio
pousa o olho e o olhar na água escura
põe a camisa de listras no cabide
ferve a vida na água
fecha o mundo
onde línguas estalam
há somente suor e estalactite
há somente as escamas
do meu coração aberto

há na janela um mal que não descora
palavra e verbo não me consomem inteiro
cego de nascença
vejo a marca da lama
onde o pé afunda
para lá da sede e para além da água
está fundada a ilha dos sozinhos:
destroços da minha fala
podem conter o mundo

entraste em mim
nome de mãe
esparadrapo colado à minha boca
por isso te reescrevo mil vezes
ninguém me espera ali
onde a água se move
ali ninguém se move
e a água não me limita
mas imito os antigos
inventando mitos

sobreveio o temor
ecos primitivos
sobreveio o farol
o muro o risco
e sobrevoando tudo
a sombra de um cisco na água
na voracidade da água
na paixão líquida pelas ruas desertas
                     
flor escura do canto
a vida é um aguaceiro
nódoa gelada
entre mim e o que fito
a vida toda é espelho
do primeiro grito
para lá me encaminho
vestido de asperezas
para ti me dispo e canto
a água contaminada
véu espesso da alma
por onde escorrem detritos


Raimundo Fontenele

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