A
coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje mais um capítulo do livro em série
DO OIAPOQUE AO CHUÍ.
Brasil
enorme que parece ser vários países (e é!), Raimundo Fontenele fala sobre a
nossa pluralidade cultural ao contar a viagem que Gabriel faz com seu tio, do
Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata
de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa
concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor
conhecer os costumes e diversidades de nosso país.
Brasília fica no Planalto Central, no Estado de Goiás.
Antigamente estava localizada no coração d Goiás, mas com a divisão e criação
do Estado de Tocantins, não está mais no coração de Goiás, mas continuará para
sempre no coração do Brasil.
Como diz tio Marcos, cada macaco no seu galho. Por isso Brasília
é toda dividida em setores. Setor Bancário. Setor Comercial. Num setor, só
escolas; noutro, só clubes, e assim por diante.
E não existem ruas com esquinas como nas cidades que conhecemos. São
Superquadras, numeradas: 301, 303, 305, 402, 404, 406, etc. Sabe o Eixão, o
Eixo Monumental, que falei antes? Dele partem duas grandes avenidas, são as
asas, norte e sul, formadas pelas superquadras. É bem mais fácil a gente se
localizar do que se fossem Ruas, tipo Rua Aníbal Feitosa, número tal. Ali,
chegou na superquadra ímpar é 301, 303, etc. Pares, 402, 404 etc. Não tem erro.
Depois do almoço, já por volta de duas da tarde, fomos até a
Torre, o lugar ideal para a gente ficar conhecendo Brasília. É a torre de TVs,
mas com restaurantes, lojinhas com artesanatos para turistas, e no chão, à sua
volta, funciona uma grande feira, a Feira dos Estados, com comidas, artigos,
artesanatos típicos de cada estado brasileiro.
Vende-se de tudo ali. Uma grande feira nacional. Rendas do
Ceará, artesanato maranhense, comida baiana, utensílios e arte indígena dos
Amazonas, Pará, Mato Grosso, queijo-de-minas, a ginga carioca e o nosso
chimarrão e churrasco, é claro.
O tio conversava, perguntava preços, e eu ouvindo os vários
sotaques, palavras que eu nunca tinha escutado na vida. Parecia várias línguas
diferentes, mas era tudo a nossa velha língua portuguesa, com certeza.
Andamos de ônibus, andamos de táxi. Para cima e para baixo,
quer dizer, lá é tudo plano, é só uma forma de falar. Visitamos o Setor do
marajás, pra lá do lago Paranoá, onde ficam embaixadas, residências de
ministros, o Centro Gilberto Salomão.
Conhecemos o Memorial JK, e dois grandes shoppings, um perto
do outro, ao lado da antiga Rodoviária, o Conjunto Venâncio e o Conjunto
Nacional, com suas lojas, várias salas de cinemas, bares, lanchonetes,
cabeleireiros.
Eu estava cansado porém pra lá de satisfeito quando entrei no
ônibus da empresa Transbrasiliana, rota Brasília-Belém, às nove da noite
daquela segunda-feira. Tio Marcos afundou na poltrona e em meia hora dormia na
maior. Mesmo arriado, eu não ia conseguir dormir tão cedo.
Puxa!, em apenas um dia eu aprendera mais sobre o Brasil do
que em todos os meus dias de Geografia e História na escola. Olhei de perto
como as pessoas são diferentes. Os mineiros têm um modo de falar, os cearenses
outro. A cor da pele, o formato da boca, do nariz, em cada um é de um jeito.
Na noite escura, a gente estava rodando na famosa rodovia
chamada de Belém-Brasília, também construída pelo Presidente Juscelino. Umas
onze da noite o ônibus parou em uma borracharia nas margens da estrada. O
motorista avisa que o carro está com um problema, vão ter de consertar e vai
demorar mais ou menos uma hora.
– Melhor vocês descerem um pouco, esticarem as canelas – o
motorista falou assim mesmo.
Tio Marcos acordou na maior bronca. Disse que isso acontecia
porque a Transbrasiliana na tinha concorrente. Era só ela operando em todos
aqueles estados: Goiás, Tocantins, Pará, Maranhão: um verdadeiro escândalo. E
terminou dizendo, enquanto descíamos do ônibus:
– Daqui até Imperatriz a viagem não é a maravilha que foi de
Porto Alegre a Brasília. Com sorte, esse ônibus que só umas duas ou três vezes,
e a gente chega ao nosso destino.
Ficamos um tempão, sonolentos, esperando terminarem o tal do
conserto.
Tivemos sorte porque o ônibus não enguiçou nem mais uma vez.
Chegamos em Imperatriz terça-feira, por volta de dezoito horas. A primeira
grande cidade já no interior maranhense. Mas a rodoviária era de fazer
vergonha. Sujeira, desorganização, infestada de marginais, punguistas, larápios
de toda espécie, me alertava tio Marcos. Era como diz o jornalista Boris Casoy
“uma vergooooooonhaaaaa...”
A gente estava ainda no Box recebendo e conferindo nossa
bagagem, quando um sujeito moreno e baixinho se aproximou de nós. Era Pedro
Netto, o amigo de tio Marcos. Abraçaram-se demoradamente entre sorrisos e
tapinhas nas costas. Eram amigo há mais de quarenta anos. Ele me abraçou,
perguntando ao tio Marcos:
– E esse menino é o teu sobrinho, certo? – Achei gozado o
modo como ele falou a palavra menino. Pra mim era como se tivesse dito
“mininu”. Tive de me segurar para não rir.
Banho tomado, a mesa do jantar parecia um banquete. Sabendo
que eu não conhecia alguns daqueles pratos, foi me explicando: galinha caipira
ao molho pardo, baião de dois, um arroz misturado com feijão, e os outros eu
conhecida: carne de porco assada, e uma farofa pra lá de gostosa. Comida
caseira. Carregada no tempero. Pratos verdadeiramente quentes da cozinha do
norte e nordeste brasileiro. Sal, azeite de coco, bastante pimenta.
Comi tanto que fiquei triste. E não vou esquecer os doces na
sobremesa. Comi um ali na casa daquele amigo do tio Marcos que jamais vou
esquecer. Doce de buriti. O melhor que já comi na vida.
O sono daquela noite foi Inesquecível. Tinha ficado sábado,
domingo e segunda-feira sem saber o que era uma cama. Acho que se tio Marcos
não tivesse ido me acordar uma hora da tarde, estaria dormindo até hoje.
Ficamos o resto daquela semana em Imperatriz. Comendo,
passeando, nos divertindo, banhos no grande Rio Tocantins. Num dos almoços
tinha um prato bastante esquisito, mas gostoso. Pedaços de carne cortados bem
pequenos e um molho grosso e escuro. Repeti umas duas vezes. O tio, ao me ver
repetir pela segunda vez, tinha piscado um olho, com aquele sorriso de Mona
Lisa.
À noite, entendi o sinal que tio Marcos tinha me enviado com
aquele piscar de olhos. Ele queria dizer “vai devagar, guri”. O certo é que
fiquei num vai-e-vem desgraçado em direção ao banheiro.
De manhã, tio Marcos, ao saber do meu problema intestinal,
providenciou com dona Carolina, a mulher de Pedro Netto, um chá, que foi um
verdadeiro milagre. Fui só mais umas duas vezes ao banheiro naquela manhã, e
pronto, estava curado.
Aquele prato que achei tão delicioso chama-se sarapatel.
Feito com miúdos de gado, porco e bode. Língua, ficado, rim e nem sei mais o
quê. É um prato estranho para nós, gaúchos. Mas um cara do norte também acha
estranho ao comer pela primeira vez um churrasco mal-passado, a carne quase
sangrando.
O povo do norte e nordeste é um povo festeiro. Alegre. E que
funciona em um ritmo muito lento para nós sulistas. “Mas cada homem tem sua
própria dimensão e seu próprio limite. E também a dimensão de sua dor e o
limite de sua alegria”. Isso quem disse foi o tio Marcos, filosofando.
Outra coisa importante que fiquei sabendo é que norte,
nordeste, centro-oeste, enfim, a maior parte do Brasil não tem quatro estações
como o sul e sudeste do país. É verão e inverno, e acabou-se.
Não há essa história de frio no inverno, quente no verão. A
temperatura é sempre alta, acima dos trinta graus o ano inteiro. O que se chama
verão são os meses de estiagem e o inverno são os meses de chuva.
Há um lugar Inesquecível. Trata-se da região amazônica. Selva,
chuvas, arte e cultura indígenas estão presentes em quase tudo na vida e no
cotidiano das pessoas. Daqui saíram o poeta Thiago de Melo e o romancista
Márcio Souza, autor do livro Galvez, o Imperador do Acre, indispensável para
conhecermos melhor aquela parte do Brasil.
Outra coisa que quem faz uma viagem dessa não consegue
entender é como existe problema de terra no Brasil. Conversando com tio Marcos
sobre o assunto, ele tentou me explicar com teorias, falando sobre
latifundiários, posseiros, grileiros, índios, garimpos, reforma agrária. Depois
que ele falou e falou, e que nada daquilo tinha entrado na minha cabeça, só
consegui dizer:
– É, tio, não adianta. Não consigo entender. É terra, terra. É
muita terra, tio. Nesses estados que a gente atravessou, Pará, Maranhão,
Tocantins, Goiás, a gente só vê terra. Quase não tem ninguém por aqui –
continuei falando: – De um lado e outro dessa Belém-Brasília, terra. Se a gente
olhar para a esquerda, terra; para a direita, terra; para frente, terra; para
trás, terra; para baixo...
– E aposto que se ficares de ponta cabeça até em cima verás
terra... – me atalhou o tio Marcos, sorrindo.
(CONTINUA
NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)
Raimundo
Fontenele
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