29 de dez. de 2016

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje mais um capítulo do livro em série DO OIAPOQUE AO CHUÍ.

Brasil enorme que parece ser vários países (e é!), Raimundo Fontenele fala sobre a nossa pluralidade cultural ao contar a viagem que Gabriel faz com seu tio, do Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor conhecer os costumes e diversidades de nosso país.
Brasília fica no Planalto Central, no Estado de Goiás. Antigamente estava localizada no coração d Goiás, mas com a divisão e criação do Estado de Tocantins, não está mais no coração de Goiás, mas continuará para sempre no coração do Brasil.
Como diz tio Marcos, cada macaco no seu galho. Por isso Brasília é toda dividida em setores. Setor Bancário. Setor Comercial. Num setor, só escolas; noutro, só clubes, e assim por diante.  E não existem ruas com esquinas como nas cidades que conhecemos. São Superquadras, numeradas: 301, 303, 305, 402, 404, 406, etc. Sabe o Eixão, o Eixo Monumental, que falei antes? Dele partem duas grandes avenidas, são as asas, norte e sul, formadas pelas superquadras. É bem mais fácil a gente se localizar do que se fossem Ruas, tipo Rua Aníbal Feitosa, número tal. Ali, chegou na superquadra ímpar é 301, 303, etc. Pares, 402, 404 etc. Não tem erro.
Depois do almoço, já por volta de duas da tarde, fomos até a Torre, o lugar ideal para a gente ficar conhecendo Brasília. É a torre de TVs, mas com restaurantes, lojinhas com artesanatos para turistas, e no chão, à sua volta, funciona uma grande feira, a Feira dos Estados, com comidas, artigos, artesanatos típicos de cada estado brasileiro.
Vende-se de tudo ali. Uma grande feira nacional. Rendas do Ceará, artesanato maranhense, comida baiana, utensílios e arte indígena dos Amazonas, Pará, Mato Grosso, queijo-de-minas, a ginga carioca e o nosso chimarrão e churrasco, é claro.
O tio conversava, perguntava preços, e eu ouvindo os vários sotaques, palavras que eu nunca tinha escutado na vida. Parecia várias línguas diferentes, mas era tudo a nossa velha língua portuguesa, com certeza.
Andamos de ônibus, andamos de táxi. Para cima e para baixo, quer dizer, lá é tudo plano, é só uma forma de falar. Visitamos o Setor do marajás, pra lá do lago Paranoá, onde ficam embaixadas, residências de ministros, o Centro Gilberto Salomão.
Conhecemos o Memorial JK, e dois grandes shoppings, um perto do outro, ao lado da antiga Rodoviária, o Conjunto Venâncio e o Conjunto Nacional, com suas lojas, várias salas de cinemas, bares, lanchonetes, cabeleireiros.
Eu estava cansado porém pra lá de satisfeito quando entrei no ônibus da empresa Transbrasiliana, rota Brasília-Belém, às nove da noite daquela segunda-feira. Tio Marcos afundou na poltrona e em meia hora dormia na maior. Mesmo arriado, eu não ia conseguir dormir tão cedo.
Puxa!, em apenas um dia eu aprendera mais sobre o Brasil do que em todos os meus dias de Geografia e História na escola. Olhei de perto como as pessoas são diferentes. Os mineiros têm um modo de falar, os cearenses outro. A cor da pele, o formato da boca, do nariz, em cada um é de um jeito.
Na noite escura, a gente estava rodando na famosa rodovia chamada de Belém-Brasília, também construída pelo Presidente Juscelino. Umas onze da noite o ônibus parou em uma borracharia nas margens da estrada. O motorista avisa que o carro está com um problema, vão ter de consertar e vai demorar mais ou menos uma hora.
– Melhor vocês descerem um pouco, esticarem as canelas – o motorista falou assim mesmo.
Tio Marcos acordou na maior bronca. Disse que isso acontecia porque a Transbrasiliana na tinha concorrente. Era só ela operando em todos aqueles estados: Goiás, Tocantins, Pará, Maranhão: um verdadeiro escândalo. E terminou dizendo, enquanto descíamos do ônibus:
– Daqui até Imperatriz a viagem não é a maravilha que foi de Porto Alegre a Brasília. Com sorte, esse ônibus que só umas duas ou três vezes, e a gente chega ao nosso destino.
Ficamos um tempão, sonolentos, esperando terminarem o tal do conserto.
Tivemos sorte porque o ônibus não enguiçou nem mais uma vez. Chegamos em Imperatriz terça-feira, por volta de dezoito horas. A primeira grande cidade já no interior maranhense. Mas a rodoviária era de fazer vergonha. Sujeira, desorganização, infestada de marginais, punguistas, larápios de toda espécie, me alertava tio Marcos. Era como diz o jornalista Boris Casoy “uma vergooooooonhaaaaa...”
A gente estava ainda no Box recebendo e conferindo nossa bagagem, quando um sujeito moreno e baixinho se aproximou de nós. Era Pedro Netto, o amigo de tio Marcos. Abraçaram-se demoradamente entre sorrisos e tapinhas nas costas. Eram amigo há mais de quarenta anos. Ele me abraçou, perguntando ao tio Marcos:
– E esse menino é o teu sobrinho, certo? – Achei gozado o modo como ele falou a palavra menino. Pra mim era como se tivesse dito “mininu”. Tive de me segurar para não rir.
Banho tomado, a mesa do jantar parecia um banquete. Sabendo que eu não conhecia alguns daqueles pratos, foi me explicando: galinha caipira ao molho pardo, baião de dois, um arroz misturado com feijão, e os outros eu conhecida: carne de porco assada, e uma farofa pra lá de gostosa. Comida caseira. Carregada no tempero. Pratos verdadeiramente quentes da cozinha do norte e nordeste brasileiro. Sal, azeite de coco, bastante pimenta.
Comi tanto que fiquei triste. E não vou esquecer os doces na sobremesa. Comi um ali na casa daquele amigo do tio Marcos que jamais vou esquecer. Doce de buriti. O melhor que já comi na vida.
O sono daquela noite foi Inesquecível. Tinha ficado sábado, domingo e segunda-feira sem saber o que era uma cama. Acho que se tio Marcos não tivesse ido me acordar uma hora da tarde, estaria dormindo até hoje.
Ficamos o resto daquela semana em Imperatriz. Comendo, passeando, nos divertindo, banhos no grande Rio Tocantins. Num dos almoços tinha um prato bastante esquisito, mas gostoso. Pedaços de carne cortados bem pequenos e um molho grosso e escuro. Repeti umas duas vezes. O tio, ao me ver repetir pela segunda vez, tinha piscado um olho, com aquele sorriso de Mona Lisa.
À noite, entendi o sinal que tio Marcos tinha me enviado com aquele piscar de olhos. Ele queria dizer “vai devagar, guri”. O certo é que fiquei num vai-e-vem desgraçado em direção ao banheiro.
De manhã, tio Marcos, ao saber do meu problema intestinal, providenciou com dona Carolina, a mulher de Pedro Netto, um chá, que foi um verdadeiro milagre. Fui só mais umas duas vezes ao banheiro naquela manhã, e pronto, estava curado.
Aquele prato que achei tão delicioso chama-se sarapatel. Feito com miúdos de gado, porco e bode. Língua, ficado, rim e nem sei mais o quê. É um prato estranho para nós, gaúchos. Mas um cara do norte também acha estranho ao comer pela primeira vez um churrasco mal-passado, a carne quase sangrando.
O povo do norte e nordeste é um povo festeiro. Alegre. E que funciona em um ritmo muito lento para nós sulistas. “Mas cada homem tem sua própria dimensão e seu próprio limite. E também a dimensão de sua dor e o limite de sua alegria”. Isso quem disse foi o tio Marcos, filosofando.
Outra coisa importante que fiquei sabendo é que norte, nordeste, centro-oeste, enfim, a maior parte do Brasil não tem quatro estações como o sul e sudeste do país. É verão e inverno, e acabou-se.
Não há essa história de frio no inverno, quente no verão. A temperatura é sempre alta, acima dos trinta graus o ano inteiro. O que se chama verão são os meses de estiagem e o inverno são os meses de chuva.
Há um lugar Inesquecível. Trata-se da região amazônica. Selva, chuvas, arte e cultura indígenas estão presentes em quase tudo na vida e no cotidiano das pessoas. Daqui saíram o poeta Thiago de Melo e o romancista Márcio Souza, autor do livro Galvez, o Imperador do Acre, indispensável para conhecermos melhor aquela parte do Brasil.
Outra coisa que quem faz uma viagem dessa não consegue entender é como existe problema de terra no Brasil. Conversando com tio Marcos sobre o assunto, ele tentou me explicar com teorias, falando sobre latifundiários, posseiros, grileiros, índios, garimpos, reforma agrária. Depois que ele falou e falou, e que nada daquilo tinha entrado na minha cabeça, só consegui dizer:
– É, tio, não adianta. Não consigo entender. É terra, terra. É muita terra, tio. Nesses estados que a gente atravessou, Pará, Maranhão, Tocantins, Goiás, a gente só vê terra. Quase não tem ninguém por aqui – continuei falando: – De um lado e outro dessa Belém-Brasília, terra. Se a gente olhar para a esquerda, terra; para a direita, terra; para frente, terra; para trás, terra; para baixo...
– E aposto que se ficares de ponta cabeça até em cima verás terra... – me atalhou o tio Marcos, sorrindo.
                      
(CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)

Raimundo Fontenele

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