A
coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje o livro em série DO OIAPOQUE AO
CHUÍ que conta a viagem que Gabriel faz com seu tio, do Rio Grande do Sul ao
Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata de paisagens exóticas
e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa concisa, que menciona
aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor conhecer os costumes e
diversidades de nosso país.
DO OIAPOQUE AO CHUÍ
– Até sexta no tatame, bicho.
O Maurinho é fogo. Já que estava tudo bem entre
nós, não lhe custava nada colocar um pouquinho de lenha na fogueira com aquela
história de tatame. Para me lembrar como eu tinha ido mal, e ele, provavelmente
bem, hoje à tarde na aula de judô. Mas como é que ele soube disso se quando
cheguei pro treino ele estava de saída? Será que ficou por ali, azarando,
pensando sobre a nossa discussão anti e pró-droga? O Maurinho tinha mesmo uma
pegada firme e uma rapidez fora do comum. Dizia, ou sonhava, melhor dizendo,
que ia ser campeão olímpico.
Quando eu brincava com ele, dizendo “campeão
olímpico, Maurinho? Você já tem quinze anos e não ganhou nada até agora!”, ele
retrucava, rindo:
– O Maguila, depois de velho, não chegou lá? Por
que eu também não posso?
– Ah, mas o Maguila só existiu por causa da Band e
do Luciano do Valle. – Quando eu dizia isso, a gente enveredava por uma
discussão ridícula, mas apaixonada. E acabávamos, com ginga de boxeadores, nos
socando de brincadeira e rindo à toda.
Nem o pai nem a mãe estavam em casa. Só a
empregada, Ana. Eu vivia louco para dar uns amassos nela. Mas ela séria demais
para o meu gosto. Nunca ria. Para os outros, podia ser. Comigo era sempre de
cara amarrada. Mas eu não ia desistir.
Quem sabe quando eu voltasse da viagem não teria
mais sorte?! Ia ser um cara viajado, igual ao tio Marcos, com muita história
para contar. Podia ser que ela ficasse interessada em conhecer como era a vida
lá no norte. É, quando eu voltasse, a Ana ia ver que eu não era mais nenhum
garotinho.
Terminei de jantar e fui até a cozinha, levando meu
prato. Na verdade, era só uma desculpa para ver Ana.
– Olha aqui o prato, Ana – falei.
– Ah, neném, não precisava trazer. Eu mesma ia
pegar lá na mesa.
Ela não imaginava como eu ficava pê da vida com
aquele papo de neném. Porque eu sabia que ela não dizia aquilo de forma
carinhosa, nem estava minimamente interessada em mim. Na verdade, para ela eu
não passava mesmo de um guri, uma criança...
Retornei à sala no justo momento em que a chuva voltava
a cair. Passava das dezenove horas, a chuva continuava caindo em grossos
pingos, dando a impressão de que tão cedo não iria parar.
Liguei a TV no canal MTV que, no verão, tinha uma
programação especial. Entrevistas, gincanas e brincadeiras conduzidas pelo João
Gordo, do Ratos de Porão. Um verdadeiro sarro. Em seguida, entravam os clips
musicais, com as bandas mais pesadas do planeta.
Ana já tinha ido embora, nem esperou a chuva
passar. Ela não dormia no serviço. Portanto, estava sozinho em casa e louco
para que aquele dilúvio acabasse. Tinha ficado de ir até a casa de tio Marcos,
não sabia ao certo o que ele desejava falar comigo. Era sobre a viagem, mas o
quê?
O telefone toucou pela segunda vez, atendi e era o
tio.
– E aí, como está esse nortista? – brincou ele.
– Ah, tio essa maldita chuva...
– Não fala assim, Gabriel. Bendita chuva, rapaz.
Isso é o que a gente deve dizer.
– É que fiquei de ir aí hoje à noite, se lembra?
Você mesmo me convidou. E côo esta chuva fica difícil eu sair. Nem o pai nem a mãe
estão em casa para me darem uma carona.
– Não te preocupa. Amanhã a gente conversa. Foi pra
isso que te liguei.
Tio Marcos me conhecia bem. Sabia que eu estava tri-ansioso para ir à
casa dele e tratava de me acalmar. Acho que me conhecia até mais que o pai, que raramente conversava
comigo. Estava sempre ocupado com a papelada do banco.
Dez horas da manhã Tio Marcos tocou a campainha do
apartamento. Eu estava em companhia da MTV e do Chico Science (que morreu faz
pouco, 30 anos apenas, num desastre de carro) e Nação Zumbi. Eles fazem um som
que chamam de mangue-beat: uma mistura de maracatu, forró, frevo, baião, rock,
rap, o diabo. E letras iradas, falando da miséria do nordeste, dos catadores de
caranguejos nos mangues de Recife e de outras importantes cidades do litoral
nordestino como Salvador, Maceió, Fortaleza, São Luís.
O grupo está fazendo o maior sucesso, até na Europa
já fizeram uma tournée. Os caras que entendem e escrevem sobre música não
poupam elogios ao pernambucanos da hora.
Abri a porta e o Tio Marcos entrou com a pasta de
couro marrom, da qual ele não se desgrudava nunca. Eu tinha a maior curiosidade
em saber o que havia de tão importante naquela pasta, para tio Marcos estar
sempre com ela, fosse onde fosse.
Morava sozinho, na Rua Botafogo, Bairro Menino
Deus, em uma casa de dois pavimentos, grande demais para uma pessoa. Tio Marcos
vivia insistindo com o pai para me deixar morar com ele, ao que o velho
respondia, com seu costumeiro mau humor:
– Corta essa, Marcos. Contigo esse guri só vai
aprender sacanagem.
Tio Marcos jogou-se no sofá da sala, um metro e
oitenta desabando, a camisa empapada de suor.
– Essa hora da manhã e já esse calor dos infernos –
praguejou, enxugando-se com um lenço. Depois, dirigiu-se a mim:
– Gabriel, me vê aí uma água gelada, um suco,
refrigerante, uma pedra de gelo, qualquer coisa fria, meu filho. Senão vou
virar o Tocha Humana.
Fui na geladeira e peguei um litro com suco natural
de maracujá. Tio Marcos virou uns três copos em alguns segundos. Estalou a
língua, satisfeito.
– Tio Marcos – falei –, estou na maior dúvida.
Depois que você saiu, dei uma nova olhada na passagem “Porto Alegre – Brasília”,
é esse o trecho marcado no bilhete. Não vá me dizer que você quer fazer turismo
em Brasília...
Tio Marcos interrompeu antes que eu dissesse mais
besteiras.
– Gabriel, já falei isso um monte de vezes. Não tem
ônibus direto daqui para Santarém, nem para várias outras cidades do norte.
Temos deir por Brasília, ou então via Rio ou São Paulo.
– É, tio, lembrei agora.
Ele ficou falando e aguçando o meu apetite. Não
íamos logo para Santarém, como eu pensava. Primeiro a gente ia até a cidade de
Imperatriz, no Maranhão. O tio tinha um primo lá, chamado Pedro Netto. Fazia
anos que não se viam. E os dois foram criados praticamente juntos, além de
terem sido companheiros na juventude, nos anos de esbórnia, como o tio falava. E enchia a boca com a
palavra es-bór-ni-a, que se tornava mais gorda e mais redonda.
De Imperatriz, onde o tio planejava ficar uma
semana, a gente seguiria para Santarém. E na volta ele ia dar uma chegada a
Fortaleza. Tinha velhos e grandes amigos na capital cearense. Íamos também
demorar pelo menos uns três dias em Recife e, claro, não podíamos deixar de ir
curtir uma praia carioca, quando chegássemos na cidade maravilhosa de São
Sebastião, o Rio de Janeiro. Várias perguntas que eu fazia ficavam sem resposta.
– Não adianta, Gabriel. Pode perguntar à vontade. A
resposta tu só terás ao vivo, quando chegares nesses lugares.
(CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)
Raimundo Fontenele
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