7 de dez. de 2016

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje o livro em série DO OIAPOQUE AO CHUÍ que conta a viagem que Gabriel faz com seu tio, do Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor conhecer os costumes e diversidades de nosso país.

DO OIAPOQUE AO CHUÍ


– Até sexta no tatame, bicho.
O Maurinho é fogo. Já que estava tudo bem entre nós, não lhe custava nada colocar um pouquinho de lenha na fogueira com aquela história de tatame. Para me lembrar como eu tinha ido mal, e ele, provavelmente bem, hoje à tarde na aula de judô. Mas como é que ele soube disso se quando cheguei pro treino ele estava de saída? Será que ficou por ali, azarando, pensando sobre a nossa discussão anti e pró-droga? O Maurinho tinha mesmo uma pegada firme e uma rapidez fora do comum. Dizia, ou sonhava, melhor dizendo, que ia ser campeão olímpico.
Quando eu brincava com ele, dizendo “campeão olímpico, Maurinho? Você já tem quinze anos e não ganhou nada até agora!”, ele retrucava, rindo:
– O Maguila, depois de velho, não chegou lá? Por que eu também não posso?
– Ah, mas o Maguila só existiu por causa da Band e do Luciano do Valle. – Quando eu dizia isso, a gente enveredava por uma discussão ridícula, mas apaixonada. E acabávamos, com ginga de boxeadores, nos socando de brincadeira e rindo à toda.
Nem o pai nem a mãe estavam em casa. Só a empregada, Ana. Eu vivia louco para dar uns amassos nela. Mas ela séria demais para o meu gosto. Nunca ria. Para os outros, podia ser. Comigo era sempre de cara amarrada. Mas eu não ia desistir.
Quem sabe quando eu voltasse da viagem não teria mais sorte?! Ia ser um cara viajado, igual ao tio Marcos, com muita história para contar. Podia ser que ela ficasse interessada em conhecer como era a vida lá no norte. É, quando eu voltasse, a Ana ia ver que eu não era mais nenhum garotinho.
Terminei de jantar e fui até a cozinha, levando meu prato. Na verdade, era só uma desculpa para ver Ana.
– Olha aqui o prato, Ana – falei.
– Ah, neném, não precisava trazer. Eu mesma ia pegar lá na mesa.
Ela não imaginava como eu ficava pê da vida com aquele papo de neném. Porque eu sabia que ela não dizia aquilo de forma carinhosa, nem estava minimamente interessada em mim. Na verdade, para ela eu não passava mesmo de um guri, uma criança...
Retornei à sala no justo momento em que a chuva voltava a cair. Passava das dezenove horas, a chuva continuava caindo em grossos pingos, dando a impressão de que tão cedo não iria parar.
Liguei a TV no canal MTV que, no verão, tinha uma programação especial. Entrevistas, gincanas e brincadeiras conduzidas pelo João Gordo, do Ratos de Porão. Um verdadeiro sarro. Em seguida, entravam os clips musicais, com as bandas mais pesadas do planeta.
Ana já tinha ido embora, nem esperou a chuva passar. Ela não dormia no serviço. Portanto, estava sozinho em casa e louco para que aquele dilúvio acabasse. Tinha ficado de ir até a casa de tio Marcos, não sabia ao certo o que ele desejava falar comigo. Era sobre a viagem, mas o quê?
O telefone toucou pela segunda vez, atendi e era o tio.
– E aí, como está esse nortista? – brincou ele.
– Ah, tio essa maldita chuva...
– Não fala assim, Gabriel. Bendita chuva, rapaz. Isso é o que a gente deve dizer.
– É que fiquei de ir aí hoje à noite, se lembra? Você mesmo me convidou. E côo esta chuva fica difícil eu sair. Nem o pai nem a mãe estão em casa para me darem uma carona.

– Não te preocupa. Amanhã a gente conversa. Foi pra isso que te liguei.
Tio Marcos me conhecia bem.  Sabia que eu estava tri-ansioso para ir à casa dele e tratava de me acalmar. Acho que me conhecia  até mais que o pai, que raramente conversava comigo. Estava sempre ocupado com a papelada do banco.
Dez horas da manhã Tio Marcos tocou a campainha do apartamento. Eu estava em companhia da MTV e do Chico Science (que morreu faz pouco, 30 anos apenas, num desastre de carro) e Nação Zumbi. Eles fazem um som que chamam de mangue-beat: uma mistura de maracatu, forró, frevo, baião, rock, rap, o diabo. E letras iradas, falando da miséria do nordeste, dos catadores de caranguejos nos mangues de Recife e de outras importantes cidades do litoral nordestino como Salvador, Maceió, Fortaleza, São Luís.
O grupo está fazendo o maior sucesso, até na Europa já fizeram uma tournée. Os caras que entendem e escrevem sobre música não poupam elogios ao pernambucanos da hora.
Abri a porta e o Tio Marcos entrou com a pasta de couro marrom, da qual ele não se desgrudava nunca. Eu tinha a maior curiosidade em saber o que havia de tão importante naquela pasta, para tio Marcos estar sempre com ela, fosse onde fosse.
Morava sozinho, na Rua Botafogo, Bairro Menino Deus, em uma casa de dois pavimentos, grande demais para uma pessoa. Tio Marcos vivia insistindo com o pai para me deixar morar com ele, ao que o velho respondia, com seu costumeiro mau humor:
– Corta essa, Marcos. Contigo esse guri só vai aprender sacanagem.
Tio Marcos jogou-se no sofá da sala, um metro e oitenta desabando, a camisa empapada de suor.
– Essa hora da manhã e já esse calor dos infernos – praguejou, enxugando-se com um lenço. Depois, dirigiu-se a mim:
– Gabriel, me vê aí uma água gelada, um suco, refrigerante, uma pedra de gelo, qualquer coisa fria, meu filho. Senão vou virar o Tocha Humana.
Fui na geladeira e peguei um litro com suco natural de maracujá. Tio Marcos virou uns três copos em alguns segundos. Estalou a língua, satisfeito.
– Tio Marcos – falei –, estou na maior dúvida. Depois que você saiu, dei uma nova olhada na passagem “Porto Alegre – Brasília”, é esse o trecho marcado no bilhete. Não vá me dizer que você quer fazer turismo em Brasília...
Tio Marcos interrompeu antes que eu dissesse mais besteiras.
– Gabriel, já falei isso um monte de vezes. Não tem ônibus direto daqui para Santarém, nem para várias outras cidades do norte. Temos deir por Brasília, ou então via Rio ou São Paulo.
– É, tio, lembrei agora.
Ele ficou falando e aguçando o meu apetite. Não íamos logo para Santarém, como eu pensava. Primeiro a gente ia até a cidade de Imperatriz, no Maranhão. O tio tinha um primo lá, chamado Pedro Netto. Fazia anos que não se viam. E os dois foram criados praticamente juntos, além de terem sido companheiros na juventude, nos anos de esbórnia,  como o tio falava. E enchia a boca com a palavra es-bór-ni-a, que se tornava mais gorda e mais redonda.
De Imperatriz, onde o tio planejava ficar uma semana, a gente seguiria para Santarém. E na volta ele ia dar uma chegada a Fortaleza. Tinha velhos e grandes amigos na capital cearense. Íamos também demorar pelo menos uns três dias em Recife e, claro, não podíamos deixar de ir curtir uma praia carioca, quando chegássemos na cidade maravilhosa de São Sebastião, o Rio de Janeiro. Várias perguntas que eu fazia ficavam sem resposta.
– Não adianta, Gabriel. Pode perguntar à vontade. A resposta tu só terás ao vivo, quando chegares nesses lugares.
(CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)


Raimundo Fontenele

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