23 de jan. de 2017

A COLHEITA DO MUNDO - 3


INVENÇÕES : A TERRA
adeus alaúde de prata
adeus ferro e mistério
mármore branco do passado
retinem as esporas
soltas ferraduras pelo ar
descrevem círculos sanguíneos
e nada de ver o céu
só terra
mar e terra
pedra-treva
por onde vocês foram, meninos?
como cantavam quando?
desmistério de azul
na sala toda
toalhas bússolas janeiros
repetição mortal do frouxo verso
caveiras
lixo
a cidade de pólvora
expõe as tetas ao verso
a cidade de pólvora
expõe o músculo tenso
e tudo explode como no começo
desço a Rua Saavedra
conto passos becos
forço a saída do portão do mundo
Hércules noturno e mijado
com as mãos fora dos guizos
picada nas veias
o olho em chama anunciador da morte
a poesia é morte
o meu trabalho é morte
a terra só me cabe pelo avesso
ela, a terra dura
ela, o pai ganindo pelas trepadeiras
o dia era insensível
tinha tudo
o dia não se movia
era intragável
o dia passava escuro pela garganta dos galos
o mundo não estava aberto
o falso pulso
o dia não contava
era outro mistério
o morto na sala
sal, salitre
tudo me entrava pelos olhos
as faces feras
o furor de neblina
e eu perdia pé no pesadelo
sozinho com as palavras
enumerando-as
sem enumerar-me
foi a terra quem forjou meu nascimento
foram os meses de maio
a colheita do mundo
árvore avara aziaga
no vasto ovário
a bomba que explode a outra
madura de sementes
vendida no varejo
no tédio no tempo
todos já disseram isto
é preciso avançar  para além da gula
do fumo, do ouro
da podridão das esferas
para onde se inclinavam todos  os girassóis
ô assovio
ô dente podre
como é feroz o meu grito
ô zumbido dos séculos
pondo farpas no olvido
(sim, era Garcia Lorca
quem copulava ao inverso)
eu e os girassóis
eu e a lua passando
eu e o eco dos jumentos
apaziguado sobre a pedra
eu-greve o ano inteiro
intermezzo
e não fim
todo dia me começo
procurando sapatos
tornando-me retratos
de rostos que eu possa ser

Raimundo Fontenele

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