A
coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) apresenta hoje mais um capítulo do livro em série
DO OIAPOQUE AO CHUÍ.
Brasil
enorme que parece ser vários países (e é!), Raimundo Fontenele fala sobre a
nossa pluralidade cultural ao contar a viagem que Gabriel faz com seu tio, do
Rio Grande do Sul ao Pará. Mas não se trata de um livro daqueles que só trata
de paisagens exóticas e costumes regionais. DO OIAPOQUE AO CHUÍ é uma narrativa
concisa, que menciona aspectos interessantes de nossas cidades para o leitor
conhecer os costumes e diversidades de nosso país.
– De um lado e outro dessa Belém-Brasília, terra. Se a gente
olhar para a esquerda, terra; para a direita, terra; para frente, terra; para
trás, terra; para baixo...
– E aposto que se ficares de ponta cabeça até em cima verás
terra... – me atalhou o tio Marcos, sorrindo.
– Você está me gozando, tio. Mas não consigo entender. É como
diz o Chaves: “não tem por onde” entender uma coisa dessas. – Lembrando uma
pergunta que queria fazer: – Ah, tio Marcos, qual é a capital do Tocantins?
– Palmas. É uma cidade que está sendo construída ainda, mas
já é bastante próspera. É uma região muito rica esta aqui. Madeira e ouro fazem
nascer qualquer cidade da noite para o dia. Satisfeito?
– Claro, perguntei só o nome da capital, mas o senhor sempre
dá um toque a mais.
Às vezes me pegava achando que gostava mais do tio Marcos do
que do pai. É que ele tem um jeito legal de tratar com as pessoas. Tanto faz
ser criança ou adulto, homem ou mulher, rico ou pobre, ele termina conquistando
a gente.
Dia 23, uma segunda-feira, de manhã, nos despedimos e tomamos
a estrada para Santarém. De lá, fomos de táxi até a fazenda de tio Marcos,
distante umas duas horas do centro da cidade. Fomos recebidos pelo caseiro, seu
Manoel Tatu e a mulher, dona Esmeraldina. Como eles diz\em naquela região, o
casal tinha uma “penca” de filhos. Contei oito. De todos os tamanhos e idades.
O mais velho tinha 22 e o mais novo tinha 4. E dona Esmeraldina estava grávida
de novo.
– Barriga de quatro meses, no mínimo – cochichou tio Marcos
no meu ouvido, notando como eu estava curioso e abobado com tanta criança.
Aquela vida e os dias passados ali parecem um sonho. Às vezes
tio Marcos me acordava cedinho, cinco horas da manhã e me levava até o curral,
onde tomávamos uma caneca de leite quentinho, tirado da vaca naquele momento
pelo seu Manoel Tatu. O leite vinha quente e espumando e o gosto nada tem a ver
com o desse leite industrializado que a gente toma.
A propriedade de tio Marcos chamava-se Fazenda Estrela
Vermelha, Havia uma grande placa de madeira na entrada com o nome escrito em
letra vermelha. Tio Marcos explicou que colocara aquele nome durante sua breve
passagem pelo Partido Comunista, ainda nos anos sessenta.
– Vê como são as coisas, Gabriel. Foi justamente no meu
período comunista que me tornei proprietário – e tio Marcos piscou-me o olho,
que era também seu jeito de ser irônico e debochado.
A Fazenda Estrela Vermelha tinha umas cem cabeças de gado e
ele estava começando uma plantação de soja. Mas o tio ajudava toda aquela gente
necessitada. Ele dizia que a falta de investimentos e industrialização daquela
região era uma das causas do atraso e da miséria daquela gente. A outra causa,
a primeira, era a falta de educação e consciência do povo.
Era comum no café da manhã dona Esmeraldina servir uma bebida
de cor roxa, uma espécie de suco, açaí, também chamada de Jussara no Maranhão.
Elas comem com açúcar e farinha de
mandioca, uma farinha amarela e de grãos do tamanho de um grão de arroz,
farinha de puba, ou de carema, assim chamavam. Eu preferia adoçar e tomar normalmente
como um suco qualquer. Mas a farinha de mandioca é um dos alimentos mais
consumidos pelos habitantes do norte e nordeste. É talvez a contribuição mais
forte da cozinha indígena.
Nas duas vezes em que tio Marcos foi até o centro de Santarém
e me convidou a ir com ele, eu disse que
não queria, preferia ficar brincando com os filhos do caseiro. Estava gostando
daquela tranquilidade.
Mas o motivo era outro. Eu andava dando uns amassos na filha
mais velha do seu Manoel Tatu. Chamava-se Cristina e tinha doze anos. Morena de
cabelos e olhos pretos, olhos puxados como os dos índios e dos japoneses. Mas
bonita de doer. Uma prenda que dava de dez a zero na maioria dessas gatinhas da
cidade.
Ficava me sentindo meio culpado por causa da Selminha. Tio
Carlos disse que era assim mesmo. Nada de culpa ou remorso. A gente tem de
aproveitar a vida. Não pode desperdiçar um momento, deixar escapar nenhuma
presa.
Em Porto Alegre, quando lhe falei da viagem, ela fez o maior
auê. Disse que eu tinha prometido passar uns dias com ela na praia, aquelas
coisas que as garotas inventam quando querem chorar, ou nos deixar preocupados,
ou chateados, ou até mesmo as duas coisas juntas.
Ela brigou comigo, chorou um pouco, e aí ficou tudo legal
entre a gente. Disse que ia lhe escrever assim que chegasse na fazenda do tio e
foi o que fiz.
“Santarém, 28 de janeiro de 1997
Selminha,
Mil beijos.
Desde que cheguei aqui que não paro de pensar em ti. Gata, tu
não imaginas como isso aqui é longe. Agora eu sei que existe o fim do mundo.
Tudo que faço é pescar, tomar banho de rio e andar a cavalo.
Melhor do que bike. E fica tranqüila que não tem nenhuma garota aqui na
fazenda. É só eu, tio Marcos e um casal de velhos que toma conta da
propriedade.
Puxa, Selma! Nem sei como te contar tudo que vi e aprendi. O
Brasil é um país imenso, cada região é diferente da outra.
O calor aqui é de matar. Faz sol o dia inteiro, e calor dia e
noite. O ano todo assim. Até mudei de cor.
O povo é alegre e comunicativo. Fico até encabulado quando as
pessoas me cercam para ouvirem o jeito que eu falo. A mesma diferença que eu
vejo neles eles veem em mim. Por exemplo: a letra O que a gente pronuncia ô,
eles pronunciam ó. E o E, nosso ê para eles vira é. E o O no final das palavras
é pronunciado como se fosse U.
Do Amazonas até o Piauí o Bumba-meu-boi é uma das maiores
festas do folclore do norte e nordeste. E o tio diz que é uma manifestação
cultural rica e forte. Faz parte do dia a dia das pessoas. Assim como no Rio de
Janeiro algumas comunidades vivem única
e exclusivamente em função das escolas de samba, aqui algumas localidades vivem
em função do Bumba-meu-boi, ensaiando e dançando quase o ano inteiro.
Tá vendo como estou sabido?
E tu, guria, aprontando muito?
Não deixa aquele panaca do Euclides ficar dando em cima de
ti. Se tenho ciúme é porque te gosto muito.
Sinto falta do meu som. Aqui o que eles mais ouvem é aquela
música chamada carimbo, lambada, esses troços. Esses ritmos quentes, cheios de
tambores e atabaques. Não é minha praia.
Selminha, vou terminar te enviando um beijão daqueles e um
forte abraço nos teus ´velhos´.
Beijos, beijos, beijos.
Gabriel”.
Tio Marcos acordava cedo, pegava um jeep velho da fazenda, e
ia d uma casa a outra, conhecia todo mundo ao redor.Gostava de conversar, de
fazer amigos, cercar-se de pessoas, sempre falando, rindo, gesticulando. Na
beira do rio, conversava com pescadores e lavadeiras, se informava de tudo, da
vida de cada um, dos problemas que estavam enfrentando. E deixava todo mundo
animado e esperançoso.
Quando saímos da beira do rio, ele comentou comigo:
– O Paulo Francis, um dos maiores jornalistas brasileiros de
todos os tempos, tinha razão. Não posso deixar de concordar com ele quanto a
essa gente. São pouco as manifestações culturais realmente profundas. Assim não
pode haver transformação. Ignorância, miséria e crendice é tudo o que a gente
vê por aqui. Na véspera do século XXI, essa região é igual àquela África mais
desgraçada e miserável que a gente vê todos os dias na tevê.
– Falou e disse, tio – concordei, batendo palmas. – Se fosse
candidato, você estava eleito.
– Mais respeito
comigo, guri – brincou o tio para demonstrar o quanto detestava os nossos
políticos.
De novo com o pé na estrada.
De Santarém fomos de avião até Fortaleza, a bonita capital do
Ceará.
Ficamos hospedados no Hotel Sobral, localizado na Avenida
Monsenhor Tabosa. Nessa avenida ficava também o Seminário da Prainha, onde o
tio Marcos havia sido seminarista durante apenas dois anos. Segundo ele dizia,
foi expulso porque um colega fofocou para o Reitor do seminário que ele estava
beijando uma garota na sacristia da igreja.
– O que era pura verdade – completava rindo.
Fortaleza é umas das principais cidades nordestinas, com uma
população de quase dois milhões de habitantes. Importante centro comercial e
cultural do nordeste, com três universidades. E é um dos grandes pólos
turísticos do país, principalmente pela suas praias, como Iracema, do Futuro e
Meireles.
São atração turística as feiras de artesanato, com muita
renda e palha, e os monumentos históricos. O Passeio Público, o Teatro José de
Alencar e a casa onde nasceu o autor de Iracema e O Guarani, na cidade de
Mecejana, próxima à capital cearense, são alguns deles.
(PARTE FINAL NA PRÓXIMA QUARTA-FEIRA)
Raimundo
Fontenele
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