19 de jan. de 2017

DO OIAPOQUE AO CHUÍ

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso blog Literatura Limite (www.literaturalimite.com.br) chega  hoje ao capítulo final do livro em série Do Oiapoque ao Chuí. Espero que tenham aproveitado e gostado das aventuras do garoto Gabriel e de seu tio Marcos numa viagem pelo interior do Brasil.
Na próxima Quarta-Feira retornaremos com mais literatura, cultura e arte.
São uma grande atração turística as feiras de artesanato, com muita renda e palha, e os monumentos históricos. O Passeio Público, o Teatro José de Alencar e a casa onde nasceu o autor de Iracema e O Guarani, na cidade de Mecejana, próxima à capital cearense, são alguns deles.
Ao contrário do norte, onde a farinha de mandioca predomina na alimentação, no Ceará é o milho quem dá as cartas. Cuscuz, pamonha, canjica, manuê, são alimentos feitos à base do milho, indispensável na cozinha cearense. E são famosas no mundo inteiro suas redes e bordados.
A orla marítima de Fortaleza, na altura da praia de Iracema é cheia de bares, boates, restaurantes, de onde se pode ver, nas águas, inúmeras jangadas, iluminadas pelas luzes da avenida.
No Ceará foi onde mais ouvi aquele sotaque carregado do nordestino que a gente escuta nas novelas da Globo, de forma até caricatural: “Ô xente” e “Passa pra dentro, esse mininu”, parece gozação, mas não é. O povo fala assim. Faz parte. É a cultura, diz tio Marcos.
E a música que predomina é o forró, o baião e o xaxado. Xaxado lembra um pouco a chula gaúcha, não na música ou letra em si, mas na coreografia da dança.
Em Fortaleza, eu, tio Marcos e alguns amigos deles fomos a vários restaurantes e também uma noite fomos ao Teatro José de Alencar assistir a uma montagem da peça O Rei da Vela, de autoria do escritor Oswald de Andrade, feita por um grupo amador local. Um arraso total.
Também fomo a uma praiazinha perto de Fortaleza, no município de Paracuru, uma coisa lindíssima.Comparando com uma avenida de cidade grande, cheia de barulho e poluição de carros, motos e ônibus, aquele lugar lembrar um paraíso. E ali existe aquela areia colorida que os cearenses usam para fazer pequenas esculturas dentro de vidros. Uma coisa que sempre me intrigou, desde que, em um de seus passeios, a mãe trouxe um vidro com uma igrejinha de areia dentro, com as paredes vermelhas.
Nem pude acreditar, mas o mês de fevereiro estava chegando ao fim, De Fortaleza tomamos um ônibus até o Rio de Janeiro. Eu marcava no mapa as cidades mais conhecidas por onde a gente ia passando.
Icó, ainda no Ceará, e depois Salgueiro, em Pernambuco, Feira de Santana e Vitória da Conquista, na Bahia; Colatina e Cachoeiro do Itapemirim, ih a terra do Roberto Carlos, no Espírito Santo. E depois Campos e Niterói, e a cidade maravilhosa, Rio de Janeiro.
Fizemos a travessia sobre a ponte no sentido Niterói-Rio de Janeiro às seis horas da manhã. Não resta dúvida, em algumas coisas o povo é sábio: aquela visão do Rio de Janeiro é mesmo alguma coisa encantadora. Deu vontade de ouvir uma música do Tom Jobim, que o tio Marcos vivia assoviando “Minha alma canta / vejo o Rio de Janeiro / estou morrendo de saudades / Cristo Redentor / braços abertos sobre a Guanabara...”
Nesta viagem o tio vinha concentrado na leitura de mais um livro: Nossa Senhora das Flores, de Gean Jenet, um escritor francês. Tio Marcos disse que o cara era barra pesadíssima. Viveu a maior parte da vida no submundo de Paris: becos, vielas, cadeias.
E apesar disso, de uma vida destruída assim, é um dos mais líricos poetas da moderna literatura francesa. E tio Marcos sabia do que estava falando, pois ele devorava um livro atrás o outro.
Ficamos três dias no Rio, mas foram três dias de praia. Tio Marcos quase tem um troço no pescoço de tanto olhar para um lado e para outro.. Não conseguia tirar os olhos das garotas cariocas praticamente peladas, naqueles minúsculos biquínis.
E me dizia, com o sorriso mais safado deste mundo:
– Aproveita, guri, que lá no Rio Grande não tem disso não...
No domingo, tio Marcos fez questão de me levar ao Maracanã. Dia de Flamengo X Campo Grande pela Taça Guanabara. Colorado doente como sou, tinha de ser Flamengo no Rio de Janeiro, por causa da cor vermelha. O Flamengo fez três a zero, com dois gols de Romário e um de Sávio. Vibrei como se a vitória fosse do Inter.
E o Rio de Janeiro é muito isso: praia, futebol, samba. Tio Marcos diz que é uma cultura meio de verniz, na flor da pele. O sorriso é sempre muito fácil. Parece que todo mundo está feliz. Mas o tio disse que isso pode ser apenas um disfarce. Uma forma de marcar a diferença do resto do Brasil, porque cada povo e cada homem procuram um coisa que os distinga dos outros, uma identidade pessoal que seja única.
Estávamos hospedados na casa de uns amigos de tio Marcos no Bairro Santa Tereza. Olga, a dona da casa, era viúva e com ela moravam uma irmã casada e três filhos menores de idade. Fiquei de olho em Alice, uma gatinha da minha idade, mas a pirralha não quis nada comigo. Parece que nesse assunto eu ia ficar igual ao tio Marcos. Não podia ver um rabo de saia sem ir atrás.
Fevereiro e as férias chegaram ao fim.
 – E o Chuí – perguntei, adivinhando a resposta.
– Tens fôlego ainda?
– Claro que não – respondi, mais por ele do que por mim.
– Fica para outra vez. Aí sim a gente completa a viagem.
Ficou pensando, acho que querendo explicar-se um pouco.
– Também, com esse tamanhão todo... Fica impossível fazer o Brasil de ponta a ponta numa viagem apenas, e de ônibus...
Tio Marcos estava saudoso de Porto Alegre. Quando começava a assoviar ou cantarolar Deu pra ti, dos irmãos Kleiton e Kledir, era sinal de que ele não estava mais se agüentando longe do velho Rio Grande, tchê.
Saudoso de um bom churrasco e de um papo furado na Esquina Democrática, como é conhecida a esquina da rua dos Andradas e da avenida Borges de Medeiros, no centro da capital gaúcha.
Chegamos às seis horas da manhã, no primeiro domingo de março, na rodoviária de Porto Alegre. O pai esperava a gente num carro novo: tinha trocado seu Monza 90 por outro 93. A mesma cor vermelha. Como eu, ele também é um colorado doente.
Fiquei dias e dias contando tudo o que tinha visto e vivido para a Selma e para o Maurinho. Era assunto que não acabava nunca.
Cada um deles ficava boquiaberto com as coisas que eu contava. Cada região com sua fala própria, seus costumes, comida, danças, músicas. E suas lendas.
Nada de Negrinho do Pastoreio. Falei sobre o Boto-branco do Amazonas, por exemplo. Diz a lenda que o boto seduz as moças que moram nas cidades ribeirinhas, atraindo-as para os afluentes do rio Amazonas, tornando-se pai de todas as crianças de paternidade ignorada. Por isso que no Pará se usa a expressão “filho do boto” a respeito de uma criança de quem não se sabe quem é o pai.
Nas primeiras horas da noite, o boto se transforma num jovem bonito e sedutor, que dança bem pra caramba. Vai nos bailes, namora e marca encontro com as garotas na beira do rio. E tudo isto tem de ser antes da madrugada, pois depois da meia noite tem de pular na água e voltar a ser boto.
No Maranhão, tem o touro encantado na Ilha de São Luís, que dizem tratar-se de Dom Sebastião, El-Rei de Portugal. Um dia esse touro vai desencantar, e Dom Sebastião virá do mar com seus exércitos para implantar na ilha um reino de paz e felicidade, e que vai durar, no mínimo, mil anos.
Sem esquecer o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, o Caipora montada num porco, e todas as lendas do sul contadas pelo escritor Simões Lopes Neto. É o nosso rico folclore brasileiro.
Estava me preparando para o retorno ao colégio e às aulas de judô e tio Marcos já estava mais uma vez de partida. Tinha encontrado uma velha amiga, que não via há tempos. Ela estava querendo dar uma esticada no Caribe, mas tinha medo de ir sozinha, coitada. O tio era um perfeito cavalheiro. Ele ia fazer um sacrifício e ia com ela, falou-me, dando aquela piscadela de olho que dizia mais que mil palavras.
Dois anos depois desta inesquecível viagem, vi na MTV um clipe do Carlinhos Brown, onde ele cantava “o Brasil não é só verde, anil e amarelo / o Brasil também é cor-de-rosa e carvão...”
É assim que eu sinto agora o Brasil, o mundo e a mim mesmo. A gente não é nunca uma só coisa. A gente é sempre várias coisas em uma só.
FIM

Raimundo Fontenele

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