15 de fev. de 2017

NOS ANOS 60

A coluna QUARTA É DIA DE RF do nosso Blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br) dá um tempo na poesia e traz hoje outro gênero da literatura muito cultuado por grandes escritores: o conto. Não que eu seja um deles, mas estou me arriscando na finalização de um livro de contos, chamado PEDAÇOS DE ALBERTO CARONTE, que faz referência no seu título ao barqueiro Caronte que transportava as almas até o inferno, e que espero muito em breve proceder a sua publicação e difusão entre os apreciadores dessas invenções literárias.
Nos Anos 60 é um relato sobre a pintura e arte, através do personagem Ernesto Fontes e cujo cenário para a sua aventura é famosa década de sessenta com sua revolução e contracultura, seus hippies, seu lema de paz e amor e a esperança numa sonhada Era de Aquário que, por enquanto, continua sendo apenas um pesadelo capricorniano.
Espero que gostem dessa minha tentativa de também aventurar-me pelos caminhos da prosa.  Boa leitura. (RF)
  
NOS ANOS 60
"Um homem não é estúpido ou
 inteligente: ele é livre ou não é." 

1
Ernesto Fontes, pintor revelação daquele ano de 1967, acordou, naquela fria manhã de uma segunda-feira de julho de 2001, mergulhado em lembranças. Ficou a maior parte do tempo em seu ateliê sem conseguir dar uma pincelada sequer. Ali estava a tela branca, imóvel e sem vida: 1,10m por 70cm, eram essas as dimensões daquele quadro que o pintor imaginava sua grande obra prima, na qual iria colocar toda seu amor e entusiasmo.
Quando fez sua aparição pública, em forma de uma exposição individual, conseguida com muito esforço e suor, estava com 20 anos. Os 15 quadros expostos pertenciam a uma série chamada A bomba atômica, um verdadeiro sucesso de crítica e público, sempre ávidos por novidades.
E Ernesto Fontes era o novo e, mais que isso, novo e original, segundo o mais renomado crítico de arte da cidade, Aniceto Palhano. A mídia dedicou grande espaço do seu noticiário ao aparecimento daquele “novo gênio”, segundo alguns.
O equivalente a cem mil reais, essa a quantia que Ernesto embolsou com a venda dos quadros. Isto, é claro, depois que marchand, crítico, dono de galeria e toda a chusma de aproveitadores pegou cada um a sua parte na transação.
De qualquer sorte, era um bom dinheiro para quem andava sempre “liso” como ele, que ganhava uma ninharia como escriturário numa firma comercial e andava cheio da escola, da prisão do lar, das regras e convenções sociais.
As mesmas regras e convenções que fizeram com que fosse expulso do curso de desenho, após dois anos de notas máximas nos boletins escolares, embora tivesse se ferrado na disciplina e no comportamento.
Assim, o jovem pintor, com 20 anos e uma boa grana no bolso, numa noite quente, enquanto todos dormiam, colocou alguma roupa e o pouco mais que coube numa sacola média de viagem e se mandou num ônibus da empresa Expresso de Luxo em direção a Fortaleza.
Viveu três meses nababescamente. Mas, oh! louca juventude, os dias voaram e com eles a grana.
Ernesto Fontes tinha conhecido uma turma de hippies no Passeio Público e já que havia abandonado o lar e a escola, e deixado um emprego de salário mínimo por mês; e assim como tinha perdido também a namorada numa festa de carnaval no Clube de Sargentos e Tenentes (a garota lhe dera um pé na bunda bem na hora que o alto-falante da pracinha do bairro deixava rolar uma música melosa do Roberto Carlos, “que não adianta mais seu carinho procurar / que não adiantará pedir nem ficar...”); e já que agora perdera a vontade de pintar, a crença na humanidade, a fé em Deus e a confiança nas autoridades e em si mesmo, resolveu cair na estrada com aqueles caras cabeludos.
Jeans surrados e sujos, camisetas cheias de inscrições, frases, dísticos, símbolos da contracultura, signos da época e das transformações radicais que estavam vivendo, Ernesto rodou por aí pelas cidades brasileiras: Tianguá, Piripiri, Recife, Campina Grande, Balsa Nova, Caxias do Sul e andou pela Bahia, em Ilhéus, Feira de Santana, Juazeiro do Norte, e Floriano, no Piauí.
A pé e de carona, sem lenço, sem documento. O negócio era ouvir todas aquelas bandas que estavam bombando: Beatles e Roling Stones; Led Zeppelin e Doors; Pink Floyd e Genesis; e Janis Joplin, Hendrix, Santana. O negócio era estar ligado a alguma arte revolucionária, nas canções de Bob Dylan, e fumar muito baseado, um atrás do outro, sentados em grupo, formando uma roda, o cigarro passando de mão em mão, de boca em boca, num lance tribal, e rolando aquele papo cabeça.
― É isso aí, meu irmão, a sociedade não presta, não passa de um bando de hipócritas!
― Saca só, esses caras de terno e gravata, correndo pra lá e pra cá, tudo com cara de desesperado, aflito, sei lá...
― E o governo, xará? Só tem maluco. Esses caras é que deviam estar internados no hospício.
― Ih, tô muito doido, meu irmão. Pega o fumo aqui...
― Essa é da boa, dá a maior lombra...
― É, compadre, esse fumo é do Maranhão. Foi o Mahala que trouxe.
― O Mahala não é aquele carinha da Bahia? Cadê ele?
― Saiu pra dar uma banda. Ele é legal às pampas.
― É um cara maneiro. Desde que ele se juntou a nós tudo ficou mais fácil.
― Ele consegue tudo o que quer. Sabe conversar e tirar sorrindo aquilo que necessita. O cara tira leite de pedra. Tudo que se precisa aparece na mão dele por encanto.
― E ele lê muito, bicho. Quer se tornar uma espécie de Don Juan, aquele bruxo do Carlos Castañeda.
― Ah, deixa de onda, mano. Vamos acender mais um charo. Bacana, faz outro aí, essa tua marijuana também é da boa.
― Eu comprei de um cara na Praça do Ferreira. Ele disse que veio de Alagoas ou de Arapiraca...
― De Alagoas ou de Arapiraca, maluco?
― Ah, sei lá, tanto faz. Eu tô cagando e andando, meu. Vou é dar um rolê nessa City. O governo que se foda. E vocês também.
― Ainda bem que ele se foi... Esse cara é da sombra, Bacana, pode crer.
― Um cara com o nome de Sarampo não pode ser flor que se cheire, Ernesto.
― Ernesto não, Bacana; é pra chamar ele de pintor.
― Pô, não exagerem. Eu só pintei uns quadrinhos aí sem nenhum valor...
― Taí a coisa, velho, pode acender.
                                               
2
         Meio dia em ponto Ernesto desceu do ateliê para a sala onde fazia as refeições. Morava em uma casa de dois andares, espaçosa e ventilada, com amplas janelas e samambaias subindo pelas paredes. No térreo, além da sala de jantar, do escritório-biblioteca, dois banheiros, um quarto para hóspedes, um terraço de grama verdinha e tulipas azuis, begônias, gerânios, azaléias. Um minijardim com uma mesinha branca e quatro cadeiras, onde Ernesto tomava café e lia os jornais pela manhã, ou onde apenas sentava para meditar ou conversar com algum amigo que lhe visitava, coisa rara então.
         Carneiro grelhado, arroz com cenoura e ervilha e uma salada de alface, agrião, tomate e cebola, e temperada apenas com azeite de oliva, foi esse o almoço de Ernesto.
Acompanhou a refeição com um saboroso tinto chileno e subiu para o andar superior, onde, além do ateliê, ficava o seu quarto de dormir, na verdade uma grande suíte com um enorme banheiro, um jardim de inverno e mais três quartos transformados em depósitos de quadros.
Muitos. Acabados uns, outros iniciados e que jamais seriam terminados. Outros riscados, cortados, estragados. Além dos milhares que existiam na sua imaginação.
Estirou-se na cama espaçosa, imensa àquela primeira hora da tarde. Pela janela do quarto podia ver a chuva fina, um chuvisco que aos poucos foi aumentando de intensidade até cair num aguaceiro que não acabava mais. Guitarras alucinadas, a voz firme e cortante do lead vocal na música do Pink Floyd Pigs on the wing (part one) uma das preferidas de Ernesto. As outras duas de sua preferência, e que ele ouviu a seguir, eram Blood the Rooftops do Gênesis e Whole lotta love do Led Zeppelin.
Era um dia de balanço, um dia para lembrar, embora a tela branca, muda, estivesse no ateliê à espera de que Ernesto fosse dar-lhe vida, fazê-la vibrar, emocionar pessoas.
Ernesto fechou os olhos. Agora eram as baquetas do baterista que voavam ligeiras, a guitarra de Jimi Page cuspindo trovões e as asas daquela música prontas para nos levar aonde fosse a nossa imaginação. De olhos fechados, como estava, Ernesto lembrou a primeira vez que fumou maconha em sua vida.
Estava com uma turma na praia no final dos anos sessenta. Fim de tarde em um barzinho típico da Ponta d`Areia, em São Luís do Maranhão, a cerveja rolando solta, todo mundo falando ao mesmo tempo, jovens poetas, jovens músicos, jovens artistas, simples aventureiros dilacerados pela pressa de falar tudo, pensar tudo, sentir tudo, viver tudo.
― Ei, garçom, repete aí essa música. Três vezes, porra, três vezes...
― Devagar com a cerveja, Ernesto, tu já estás muito alto.
― Merda, deixa eu beber, deixa eu gritar, chorar, morrer...
― E aí, Vi, cadê o ácido?
― Acabou, tenho só uns dois baseados, um fumo do Paraguai.
― Não pode ser, cara, fumo bom é o nosso.
― Acende a erva, meu irmão, e deixa de lero.
― Deixa eu ver que graça tem isso ― pediu Ernesto.
Ernesto já havia emborcado vários e vários copos de cerveja. Estava naquela nebulosa que precede a embriaguez. Deu algumas tragadas no cigarro de maconha que Vi lhe passara.   
         Ficou alguns minutos na mesa, completamente fora do ar, e quando voltou a si levantou=se e saiu caminhando pela praia. Vi o seguiu. Era uma garota de 1,58m, seios pequenos e firmes, a pele rosada, os cabelos louros encaracolados. Vestia um shortinho jeans e uma top amarela. O corpo bem feito, uma garota e tanto.
Ernesto começou a rir e a seguir sentiu-se mal. Ânsia de vômito, amarelou e suou frio. Vi segurou sua mão, Ernesto vomitou na praia, as estrelas no céu giraram loucamente e começou a cair uma chuva típica de verão.
― Estou me sentindo como se fosse morrer, Vi.
― Bobagem, Ernesto, tu ta legal.
Ernesto pensou em sua mãe. Que desgraça seria ela vê-lo naquele estado. Mas o que estava feito, feito estava e pronto. Não podia voltar atrás. Ouviu novamente a voz da garota, procurando lhe dar uma força:
― Vamos andar um pouco, respira fundo, esse vento e essa chuva não são legais?
Enquanto Ernesto caminhava sentiu-se realmente melhor. Uma sensação de relaxamento, bem estar, esquecido da mãe e da culpa, do pai e do remorso. Sorriu em seu íntimo com aquela nova liberdade. Abraçou a menina, e Vi chegou-se a ele de uma forma leve e carinhosa. Ernesto beijou seus cabelos e depois sua boca.
Transaram ali mesmo na areia, já tinha anoitecido e a chuva estava indo embora. O frio não os incomodava, abraçaram-se mais fortemente, um novo e gostoso calor pulsando naqueles corpos jovens e sedentos.
Ernesto Fontes sumia algumas vezes. Isolava-se da companhia dos amigos e colegas. Com seus vinte e poucos anos sentia vida como um peso, o cotidiano era um obstáculo intransponível, era-lhe conviver com a hipocrisia do mundo, e, até então, não sabia que o homem estava fadado a habitar dois polos extremos, o passado e o futuro. O presente era só uma passagem estreita, uma ponte pênsil, uma areia movediça em que muitos afundavam.
Havia, também, uma certa melancolia exterior que se transformava em desespero dentro dele. Era preciso retratar isso, pintar isso, mostrar ao mundo esse sofrimento e essa podridão humana, um século tão nobre, uma estirpe tão ilustre, pra tudo terminar assim, ali, naquele lixo, naquela falsidade, em tudo que é guerra, fome e pesadelo.
Ouvindo o som daquelas bandas de rock, era como se aquela música trouxesse ou revelasse dentro de si todas as angústias dos séculos passados, todas as inquietações da filosofia e das religiões, da cultura e do próprio destino do homem sobre a terra.
Por tudo isso, e para aplacar uma fúria e uma revolta quase doentia, Ernesto isolava-se para ouvir música e para pintar. Pintava freneticamente, perdia a noção do tempo, não via a passagem duas horas, espantava-se que fosse meia-noite, surpreendia-se com o sol do amanhecer. Estava sujo de tinta, os dedos da mão que seguravam o pincel estão dormentes, sentia-se cansado e esgotado, faminto e sedento, e adormecia ali mesmo, deitado sobre um colchonete.
Ernesto resolveu que partir dali não ia mais fazer nenhuma exposição. Ia pintar para si mesmo. Nem era egoísmo o que lhe movia nessa direção. Não queria fazer da pintura uma carreira. Não ia, conhecendo-se como se conhecia agora, poder conviver com as tais leis do mercado, as exigências e exploração de marchands e donos de galeria.
Acerca daqueles 15 quadros, cuja exposição recebeu o nome de A bomba atômica, os críticos explicaram, um por um, o que significavam. Mas não é sempre que os críticos estão com a verdade. Podiam ter razão quanto à técnica empregada, ao material utilizado, as descobertas, as inovações, a originalidade de cada quadro, mas no quesito conteúdo parece que os críticos ficavam sempre boiando na superfície. Não conseguiam ir ao fundo do poço.
Um exemplo. Aquele quadro em que haviam pessoas assustadas, rostos deformados, seres híbridos, toda a espécie de monstruosidade humana que se possa supor, e que os críticos disseram que eram as vítimas da explosão da bomba atômica, na verdade Ernesto pintou aquela tela para livrar-se dos seus demônios interiores.
O medo do inferno, a culpa original e o castigo. O tabu do incesto, o complexo de Édipo, os desejos proibidos, e sempre a culpa, o castigo, a maldição. Era para limpar-se dessas culpas que Ernesto pintava. E sofria.
No quadro de n° 2, daquela série de 15, o céu estava azul, mas com nuvens brancas enroscando-se, dobradas sobre si mesmas, e no canto direito superior do quadro o céu já estava cinza, sombrio, ameaçador. Havia uma lagoa de águas cristalinas e uma criança sendo conduzida por uma espécie de ninfa, os cabelos louros e cacheados descendo até a cintura.
E essa deusa das águas cobria-se apenas com vestes de tule, fino e transparente. A crítica falou que o quadro representava a integração ser/natureza antes que a bomba viesse com toda sua volúpia e destruição.
Depois que leu aquilo numa coluna de jornal Ernesto, rindo muito, comentou para um amigo que aquele quadro era mais ou menos verdadeiro. Parece que tinha de dois para três anos de idade e diante da visão de uma tia sua saindo molhada das águas, é certo que naquele momento teve o seu primeiro desejo sexual, mesmo inconsciente, e talvez sua primeira ereção consciente.
Falando tal assunto ali com Vi, Ernesto disse-lhe:
― Repara naquele quadro e vê se o garoto tem ou não cara de safado...
― De tarado, você quer dizer – emendou Vi, sorrindo.
Ernesto levantou por volta das três da tarde. Precisava ir até o centro da cidade, distante uns dois quilômetros, e este trajeto o pintor gostava de fazê-lo andando. Meditando, lembrando. Os loucos e iluminados anos 60.
  3
 O pintor Ernesto Fontes não podia esquecer todas as descobertas intelectuais, existenciais e espirituais que vivera e experimentara. Com o auxílio das drogas, é verdade, vivendo os tais paraísos artificiais do doidão poeta francês Charles Baudelaire. Mas nem tudo fora droga em sua vida como pensavam os caretas.
Foi por essa época, e lá se vão longos anos, que, em meio à pintura, baladas noturnas regadas a muito sexo, álcool, drogas, e rock pesado Ernesto encontrou motivação para, de repente, largar tudo e aprofundar seus estudos de filosofia e arte. Queria libertar cada vez mais sua pintura da escravidão da forma, das especificidades técnicas, do rigor embalsamatório que acabava destruindo vocações genuínas e originais. Precisava libertar a pintura para também libertar-se.
Fosse no meio estudantil, ou com seus amigos poetas, músicos, pintores, com a patota de hippies e até mesmo quando se reunia com uma turma de desocupados para se drogar, o papo era sempre o mesmo: Marcuse, Era de Aquário, Paz e Amor, Bicho!, Abaixo a Ditadura, todas. Jeans surrados, cabelos compridos e barba por fazer, a contestação aberta da autoridade paterna ou institucional. O avesso dos dogmas e os dogmas pelo avesso. Nietzsche e sua releitura: “quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.
― Não estou nem aí, meu. Saí de casa porque não aguentava mais as brigas dos velhos. Qualquer dia vão sair no tapa.
 ― Lá em casa também rolava a maior hipocrisia. Chegava um vizinho lá em casa e era o maior tre-lê-lê. Mal deixava nossa casa os coroas metiam o pau. Aí eu descobri que conosco, os filhos, era a mesma coisa.
 ― Comigo foi diferente. Eu simplesmente achava a minha casa chata, a cidade chata, meus pais, as pessoas, aquele mundo uma chatice só. Por isso preferi sair com um bando de malucos sem destino por aí.
― Olha, cara, a nossa civilização está decadente. No mundo todo, seja por quais forem as razões, as pessoas estão super ocupadas carregando cadáveres para cima e para baixo.
― Por mim, na tinha esse negócio de governo, sistema disso, sistema daquilo. Nem essas corporações policiais,  militares ou civis.
― Ah, cara, mas aí ia ser a maior loucura...
― O que? Maior loucura do que essa que a gente vive? Pô!, tu estás brincando.
― O negócio, meu irmão, é escolher entre Vietnã e Shangri-la.
― Até que enfim uma palavra sensata. Então, acendam um baseado aí e vamos todos pra Shangri-la.
― Essa viagem é o maior barato, cara, legal. 
Foi assim que Ernesto, quando jovem, acabou se metendo em tudo o que, para ele naquele momento, era vivo e se mexia e se mexia: hippies, desocupados, estudantes, artistas, política, cultura, contracultura. E, apesar das perdas e danos, tinha sido importante viver tudo.
Os anos setenta e a rebordosa careta, bélica e fálica que se seguiu, foram encontrar o pintor Ernesto Fontes casado, com filhos, lutando pela sobrevivência.
Ingressou no serviço público e conseguiu comprar uma casa confortável, onde agora vivia sozinho, após enviuvar e os filhos, criados, irem embora, cada um cumprir o seu destino. Possuía algumas parcas economias para uma eventualidade ou emergência.
Como fizera quando jovem, pintando seus terrores e medos infantis, Ernesto, quando se decidiu por tentar fazer aquilo que poderia vir a ser a sua obra prima, estava também tentando livrar-se de uma chateação e de um perigo muitos mais reais que os da infância.
A chateação era ter de conviver com uma dor contra a qual a medicina nada podia fazer, ou nada tinha feito até ali. Numa briga de rua, tinha dez ou onze anos, com um garoto mais velho e mais taludo, Ernesto caiu em conseqüência de um soco e bateu com o rosto numa pedra.
Pois no lugar do siso, que nunca nasceu, apareceu uma dor, que sumia e voltava ao seu bel prazer, tendo algumas noites lhe tirado o sono, fazendo-o, por vezes, gemer e sentir-se impotente e humilhado.
E o perigo era que, achando que sua vida atual não fazia mais sentido e que mesmo o seu sonho mais caro que era o de tornar-se um pintor não se realizara, viesse a tomar uma decisão da qual, mesmo arrependendo-se, não pudesse voltar atrás.
Agora Ernesto Fontes, mais de cinquenta anos de vida, estava ali em pleno século vinte e um, bem longe dos seus adorados anos sessenta, lutando contra o frio e a solidão. O frio da solidão física e uma espécie de escuridão na alma que se aproxima com uma suposta velhice e um inevitável fim.
E em nome daqueles velhos ideais e de tanta gente bacana dos anos 60, da viagem à lua, dos filósofos e dos poetas franceses, da contracultura, de maio de 68 em Paris e no resto do mundo, Ernesto resolveu voltar à pintura. E mais: daria uma vasculhada naquelas centenas de quadros espalhados, jogados, atirados nos três quartos do andar superior e faria uma última exposição daquilo que achasse digno de algum valor, ou que tivesse algo novo e original a ser mostrado.
  
4
 Dois meses depois daquela manhã fria e da tela nua, muda, imóvel e sem vida, as coisas tinham mudado rapidamente em sua existência, Ernesto sentia isso. Dulce, uma moça que veio posar como modelo, vinte anos mais jovem, acabou ficando ao seu lado, e era bela e deliciosa qual uma uva, e macia e delicada como pêssegos maduros.
         Ernesto havia escolhido 20 quadros para montar a sua exposição. Vinte e um, contando com aquela tela, antes nua, e que agora estava ali diante de seus olhos, enfim terminada. E que lhe consumira, pintando, cerca de dezoito horas de trabalho ininterrupto.
         O quadro fora pintado nas cores verde e cinza. Um olho imenso projetava-se do centro do quadro, expandindo-se, enquanto um casal de mãos dadas estava prestes a entrar naquele olho. De qualquer ângulo que a gente olhasse aquele quadro sentia-se incomodado, era como se aquele olho estivesse vivo e visse dentro de nós. Ao contemplá-lo, sentíamos não apenas incomodados, mas também devassados em nossos segredos mais íntimos.
         Entretanto, se olhássemos de um determinado ângulo e à noite o casal transformava-se numa espécie de Cristo crucificado; e de um outro ângulo, e à luz do sol, nem casal nem Cristo crucificado, o que se via, na verdade, era uma espécie de  espantalho.
Enfim, era um quadro belo e perturbador. Parecia que todos os estilos de pintura se fundiram naquela obra para torná-la tão profunda e original. Tinha a loucura de Bosch e o desespero de Van Gogh: a alegria de Paul Cézanne e a ingenuidade dos pintores acadêmicos; o barroco e o impressionismo; a genialidade de Picasso e o surrealismo mais desenfreado.
Do lado esquerdo do quadro, havia uma cerca de arame farpado e máscaras vermelhas, caindo, e talvez pelas cores, ou pelo estilo, havia algum eco da pintura vanguardista de Hélio Oiticica e o tropicalismo brasileiro naquilo que ele possuía de contestação e enfrentamento.
Os outros quadros também tinham cada um algo novo e genuíno. E todos possuíam um elemento desconcertante e desagregador. Ninguém ficava imune, mexia com os nossos sentimentos e emoções que preferíamos não enfrentar e que queríamos esconder ou esquecer para sempre. Talvez, por isso, a exposição de Ernesto tenha sido o retumbante fracasso que foi. Nenhum quadro vendido, nenhuma crítica favorável.
Aliás, a crítica foi impiedosa. E todos apontaram suas baterias de guerra justamente contra seu último trabalho. A fusão casal-Cristo-espantalho era vista como uma afronta aos dogmas cristãos, enfim o quadro todo era um acinte e um desrespeito aos valores morais e à família, um insulto às religiões e uma traição à pátria.
Na tarde seguinte à exposição, após ter lido tudo o que escreveram não só sobre a sua pintura, mas também sobre si mesmo, sua vida pessoal, reprovando-o moralmente pelo fato de estar vivendo com uma jovem que bem poderia ser sua filha, Ernesto comentou, rindo, acariciando os cabelos de Dulce:
― O importante, babyzinha, é saber que eu mudei, mas os caras não mudaram. O mundo, a vida, tudo mudou, menos esses caras. Aquela figura no quadro que chamam de casal-Cristo-espantalho nada mais é que a raiz de um dente. De um dente quebrado, ficou um pedaço da raiz que de tempos em tempos inflamava e cuja dor suportei durante doze anos. Uma simples dor numa raiz de dente e os críticos disseram que eu estou fazendo ou propondo uma revolução dos costumes, a derrubada dos governos e o fim das religiões...
― Ah, Ernesto, deixa esses caras pra lá. Se falaram tão mal vai ver esse teu último quadro talvez seja mesmo uma obra prima. Vamos sair à noite, tomar um vinho e depois...
― Vamos sim, Docinho, sair, jantar, tomar um vinho e depois...
Ernesto e Dulce entraram no banheiro abraçados.
Ele estava feliz e sereno. Sabia que dera o melhor de si. Tudo fora feito em razão da pintura, à procura de dar um sentido digno a sua vida e a sua arte. E era isso a sua obra prima: o somatório de tudo o que havia visto e pintado, sentido e vivido, sofrido e experimentado.

Raimundo Fontenele

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