A coluna QUARTA FEITA É DIA DE RF
do blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br)
de hoje traz para vocês um poeta genial, muito pouco conhecido entre nós, a não
ser por aqueles estudiosos, pesquisadores, críticos da grande poesia que tem
sido feita ao longo dos tempos. Sim. Digo dos tempos, porque a poesia de Paul
Celan tem aquela força da atemporalidade, e além de atravessar séculos e o
próprio tempo, tem o dom de nos revolver o espírito, escavar (verbo que ele usa
num poema seu na primeira pessoa) as emoções e sentimentos mais escondidos do ser,
principalmente os sombrios, os tristes, os trágicos, os que estão cercados do
sofrimento humano, como aquele que o destino lhe reservou: os campos de
concentração nazistas em que sua família se desfez, e as mágoas e marcas que, a
certa altura da vida, o fizeram fraquejar e atirar-se no Sena, para também
perder-se.
Lembro que a primeira vez que vi
sua poesia, morava em Brasília, e estava fazendo um trabalho de pesquisa para o
Correio Braziliense, sobre tudo o que dissesse respeito à mudança, projetos,
construção e inauguração de Brasília, como a nossa nova Capital Federal.
E
no Segundo Caderno de uma edição do Correio Braziliense, datada de 21 de
novembro de 1976, encontrei este trabalho do escritor e poeta Flavio Kothe, que
a seguir reproduzo para o deleite daqueles que amam a poesia: não importa que
ela seja hermética. É um grande prazer abrir uma Caixa de Pandora, descobrir um
segredo, participar da revelação de um mistério. É isso que nos conta a poesia
de Paul Celan. (RF)
PAUL CELAN: UM DISTANTE CANTO ALEMÃO
Paul
Celan (Czernowitz, 1920 – Paris, 1970) é, talvez, o melhor poeta alemão do
século XX, mas nunca viveu na Alemanha. Nascido numa região da Romênia, onde se
falava alemão, viveu a maior parte da vida em Paris, onde lecionava na “Ecole
Normale Superieure”.
Entre
1948 e 1970 publicou 8 livros de poesia. Traduziu também para o alemão poetas
como Black, Mandelstamm, Jessenin, Mallarmé, Nerval, Shakespeare, Ungaretti e
Fernando Pessoa, em traduções que rivalizam com a qualidade dos originais.
Em
1957 recebeu a Menção Honrosa do “Círculo Cultural da União Federal da
Indústria Alemã”; em 1958, o Prêmio Literário de Bremem; em 1960, o prêmio Georg
Buchner. Em 1964, o prêmio de Nordrhein- Westfalen.
Em
Celan há o encontro de dois níveis diversos de experiência, que acabam se
conjugando. O primeiro surgiu de sua experiência pessoal, especialmente a de
judeu que, aprisionado, teve sua família aniquilada em campos de concentração
nazistas. Antes esta barbárie coletiva em meio à cultura, perde-se a fala.
Este
silêncio se encontra com a principal linhagem da poesia moderna, que em
Baudelaire, se inaugura com o gesto heróico de fazer poesia a partir da consciência
da impossibilidade crescente de fazer e ler poesia, devido a massificação e as
condições modernas de vida. O herdeiro maior desse marco foi Mallarmé, cujo
hermetismo é um protesto contra a facilidade literária dos românticos, bem como
um distanciamento do vulgar da realidade. Neste Poeta, o branco da página se
torna metáfora do silêncio que a tipografia do poema a custo interrompe, como
um gemido, uma aspiração etérea arrancada ao real.
Ali
a linguagem poética apresenta a inserção de uma metalinguagem crítica, como um
de seus níveis de plurivocidade, como reflexo da ameaça que sofre por não mais
ter um lugar assegurado na vida social. O poeta, de modo geral, já não é mais
um aristocrata abastado ou um talento protegido por algum mecenas, mas tem de se jogar no
mercado para poder sobreviver. E ninguém consegue viver de poesia. A própria
beleza que a poesia quisera propor e preservar acaba por torná-la uma negação
imanente da realidade.
O
nazismo, enquanto a verdade do capitalismo, e o genocídio dos judeus enquanto a
verdade do nazismo, deram, conjugadamente, a Paul Celan – numa ironia trágica –
uma posição privilegiada para poder tornar-se, com seu genial talento, o poeta
por excelência do mundo alemão da primeira metade do século XX. O que ainda
resta de poesia é aquilo que consegue aflorar através da barreira do silêncio,
silêncio pelo qual este Poeta optou ao suicidar-se, jogando-se, bêbado, no rio
Seine, o rio que atravessa a capital da nossa cultura.
Estas
traduções começaram a ser feitas em 1970, no mês em que Celan-homem faleceu, e
querem testemunhar a sobrevivência do Celan-poeta. Foram uma necessidade e uma
diversão: necessidade para poder transpor em vislumbres a barreira do
hermetismo, além das diferenças de língu e de cultura; diversão, aos poucos
pela própria necessidade de inventar variantes e versões, redescobrindo o
original.
Traduzir
é um modo de ler e toda tradução é uma interpretação. Processo lento, obrigando
a muitos retornos, talvez nunca concluído. Para não traduzir só o nível do
significado, nem só o nível do significante. Traindo às vezes o significado
literal de alguma palavra, para ser mais fiel ao que a totalidade significa. Tem
por meta utópica superar o próprio original, através de linhas de força
presentes nele mesmo, linhas que caracterizam a sua individualidade artística. É
amorosa a relação que se estabelece entre o original e a tradução. Que se
procrie em outros poemas, continuadores da cambaleante série literária, eis o
que, talvez, possa ser desejado.
POEMAS DE PAUL CELAN
HAVIA
TERRA NELES , e
cavavam.
Cavavam
e cavavam, assim
ia
seu dia, sua noite. E não louvavam a Deus,
que
assim ouviam, tudo isto queria,
que, assim ouviam, tudo
isto sabia.
Cavavam
e nada mais ouviam;
não
ficaram mais sábios, não inventaram nenhuma canção,
não
se imaginaram língua alguma.
Cavavam.
Veio
um silêncio, veio também um inverno,
vieram
todos os mares.
Cavo,
cavas, e cava também o verme,
e o cantante lá diz:
cavam.
Ó
alguém, ó ninguém, ó nenhum, ó tu:
aonde
ia, já que se ia a esperança?
Ó
tu cavas e eu cavo, e eu me escavo para ti,
e
no dedo nos acorda a aliança.
FINADOS
Que
fiz
eu?
Fecundei
a noite, como se ainda
pudesse
haver outras, mais noturnas do que
esta.
Voo
de ave, véu de pedra, mil
rumos
escritos. Olhares,
roubados
e contidos. O mar,
degustado,
bebido, sonhado. Uma hora,
deprimida. A seguinte, luz outonal,
doada
a um sentimento
cego,
vindo da via. Outras, muitas,
sem
lugar e melancólicas: vistas e evitadas.
Enjeitados,
astros
negros
e cheios de fala: nomeados
segundo
jura calada.
E
uma vez (quando? Isso também esquecido):
sentida
a farpa
onde o pulso ousou o contraposto.
ASANOITE
Asanoite,
de longe vinda e agora
para
sempre tensa
sobre
caligem e cal.
Cascalho,
precipitando-se.
Neve.
E mais ainda do branco.
Invisível,
o que parecia marrom,
ideiascores
e bravio
sufocado
por palavras.
Cal
e caligem.
E
cascalho.
Neve.
E mais ainda do branco.
Tu,
tu mesmo:
no
alheio
olho
alojado, que isto
sobrevê.
À
NOITE, quando o pêndulo do amor oscila
entre
sempre e nunca,
tua
palavra toca as luas do coração
e
teu tempestuoso olho
azul
alça o céu à terra.
De
longe, do negrissonhado
bosque
advém-nos o sopro
e
o perdido circula,
grande
como os esquemas do futuro.
O
que agora sobe e desce
vale
para o íntimo soterrado,
cego
como o olhar que trocamos,
beija
o tempo na boca.
FALAR
COM OS BECOS SEM SAÍDA
Falar com os becos sem saída
sobre o de defronte
sobre sua
expatriada
significação:
com dentes de escrever,
mastigar
esse
pão.
NATUREZA-MORTA
COM CARTA E RELÓGIO DE PAREDE
Cera
para lacrar o inescrito,
que adivinhou teu nome,
que codificou
teu
nome.
Vem
agora, luz flutuante?
Dedos, também eles de cera,
puxados por
anéis estranhos, de ferro.
Fundidas
as pontas.
Vens,
luz flutuante?
Ocos de tempo, os favos do
relógio,
o milhar de abelhas noivas,
pronto
para viajar.
Vem
agora, luz flutuante.
Pesquisa
e texto final:
Raimundo
Fontenele
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