16 de mar. de 2017

PAUL CELAN: UM DISTANTE CANTO ALEMÃO

A coluna QUARTA FEITA É DIA DE RF do blog LITERATURA LIMITE (WWW.literaturalimite.com.br) de hoje traz para vocês um poeta genial, muito pouco conhecido entre nós, a não ser por aqueles estudiosos, pesquisadores, críticos da grande poesia que tem sido feita ao longo dos tempos. Sim. Digo dos tempos, porque a poesia de Paul Celan tem aquela força da atemporalidade, e além de atravessar séculos e o próprio tempo, tem o dom de nos revolver o espírito, escavar (verbo que ele usa num poema seu na primeira pessoa) as emoções e sentimentos mais escondidos do ser, principalmente os sombrios, os tristes, os trágicos, os que estão cercados do sofrimento humano, como aquele que o destino lhe reservou: os campos de concentração nazistas em que sua família se desfez, e as mágoas e marcas que, a certa altura da vida, o fizeram fraquejar e atirar-se no Sena, para também perder-se.
Lembro que a primeira vez que vi sua poesia, morava em Brasília, e estava fazendo um trabalho de pesquisa para o Correio Braziliense, sobre tudo o que dissesse respeito à mudança, projetos, construção e inauguração de Brasília, como a nossa nova Capital Federal.
E no Segundo Caderno de uma edição do Correio Braziliense, datada de 21 de novembro de 1976, encontrei este trabalho do escritor e poeta Flavio Kothe, que a seguir reproduzo para o deleite daqueles que amam a poesia: não importa que ela seja hermética. É um grande prazer abrir uma Caixa de Pandora, descobrir um segredo, participar da revelação de um mistério. É isso que nos conta a poesia de Paul Celan. (RF)
PAUL CELAN: UM DISTANTE CANTO ALEMÃO
(Flavio Kothe, texto e tradução)
Paul Celan
Paul Celan (Czernowitz, 1920 – Paris, 1970) é, talvez, o melhor poeta alemão do século XX, mas nunca viveu na Alemanha. Nascido numa região da Romênia, onde se falava alemão, viveu a maior parte da vida em Paris, onde lecionava na “Ecole Normale Superieure”.
Entre 1948 e 1970 publicou 8 livros de poesia. Traduziu também para o alemão poetas como Black, Mandelstamm, Jessenin, Mallarmé, Nerval, Shakespeare, Ungaretti e Fernando Pessoa, em traduções que rivalizam com a qualidade dos originais.
Em 1957 recebeu a Menção Honrosa do “Círculo Cultural da União Federal da Indústria Alemã”; em 1958, o Prêmio Literário de Bremem; em 1960, o prêmio Georg Buchner. Em 1964, o prêmio de Nordrhein- Westfalen.
Em Celan há o encontro de dois níveis diversos de experiência, que acabam se conjugando. O primeiro surgiu de sua experiência pessoal, especialmente a de judeu que, aprisionado, teve sua família aniquilada em campos de concentração nazistas. Antes esta barbárie coletiva em meio à cultura, perde-se a fala.
Este silêncio se encontra com a principal linhagem da poesia moderna, que em Baudelaire, se inaugura com o gesto heróico de fazer poesia a partir da consciência da impossibilidade crescente de fazer e ler poesia, devido a massificação e as condições modernas de vida. O herdeiro maior desse marco foi Mallarmé, cujo hermetismo é um protesto contra a facilidade literária dos românticos, bem como um distanciamento do vulgar da realidade. Neste Poeta, o branco da página se torna metáfora do silêncio que a tipografia do poema a custo interrompe, como um gemido, uma aspiração etérea arrancada ao real.
Ali a linguagem poética apresenta a inserção de uma metalinguagem crítica, como um de seus níveis de plurivocidade, como reflexo da ameaça que sofre por não mais ter um lugar assegurado na vida social. O poeta, de modo geral, já não é mais um aristocrata abastado ou um talento protegido  por algum mecenas, mas tem de se jogar no mercado para poder sobreviver. E ninguém consegue viver de poesia. A própria beleza que a poesia quisera propor e preservar acaba por torná-la uma negação imanente da realidade.
O nazismo, enquanto a verdade do capitalismo, e o genocídio dos judeus enquanto a verdade do nazismo, deram, conjugadamente, a Paul Celan – numa ironia trágica – uma posição privilegiada para poder tornar-se, com seu genial talento, o poeta por excelência do mundo alemão da primeira metade do século XX. O que ainda resta de poesia é aquilo que consegue aflorar através da barreira do silêncio, silêncio pelo qual este Poeta optou ao suicidar-se, jogando-se, bêbado, no rio Seine, o rio que atravessa a capital da nossa cultura.
Estas traduções começaram a ser feitas em 1970, no mês em que Celan-homem faleceu, e querem testemunhar a sobrevivência do Celan-poeta. Foram uma necessidade e uma diversão: necessidade para poder transpor em vislumbres a barreira do hermetismo, além das diferenças de língu e de cultura; diversão, aos poucos pela própria necessidade de inventar variantes e versões, redescobrindo o original.
Traduzir é um modo de ler e toda tradução é uma interpretação. Processo lento, obrigando a muitos retornos, talvez nunca concluído. Para não traduzir só o nível do significado, nem só o nível do significante. Traindo às vezes o significado literal de alguma palavra, para ser mais fiel ao que a totalidade significa. Tem por meta utópica superar o próprio original, através de linhas de força presentes nele mesmo, linhas que caracterizam a sua individualidade artística. É amorosa a relação que se estabelece entre o original e a tradução. Que se procrie em outros poemas, continuadores da cambaleante série literária, eis o que, talvez, possa ser desejado.
POEMAS DE PAUL CELAN

                      HAVIA TERRA NELES , e
                      cavavam.
                      Cavavam e cavavam, assim
                      ia seu dia, sua noite. E não louvavam a Deus,
                      que assim ouviam, tudo isto queria,
                      que, assim ouviam, tudo isto sabia.
                      Cavavam e nada mais ouviam;
                      não ficaram mais sábios, não inventaram nenhuma canção,
                      não se imaginaram língua alguma.
                      Cavavam.
                      Veio um silêncio, veio também um inverno,
                      vieram todos os mares.
                      Cavo, cavas, e cava também o verme,
                      e o cantante lá diz: cavam.
Ó alguém, ó ninguém, ó nenhum, ó tu:
aonde ia, já que se ia a esperança?
Ó tu cavas e eu cavo, e eu me escavo para ti,
e no dedo nos acorda a aliança.

FINADOS
Que fiz
eu?
Fecundei a noite, como se ainda
pudesse haver outras, mais noturnas do que
esta.
Voo de ave, véu de pedra, mil
rumos escritos. Olhares,
roubados e contidos. O mar,
degustado, bebido, sonhado. Uma hora,
deprimida. A seguinte, luz outonal,
doada a um sentimento
cego, vindo da via. Outras, muitas,
sem lugar e melancólicas: vistas e evitadas.
Enjeitados, astros
negros e cheios de fala: nomeados
segundo jura calada.
E uma vez (quando? Isso também esquecido):
sentida a farpa
onde o pulso ousou o contraposto.

ASANOITE
Asanoite, de longe vinda e agora
para sempre tensa
sobre caligem e cal.
Cascalho, precipitando-se.
Neve. E mais ainda do branco.
Invisível, o que parecia marrom,
ideiascores e bravio
sufocado por palavras.
Cal e caligem.
E cascalho.
Neve. E mais ainda do branco.
Tu, tu mesmo:
no alheio
olho alojado, que isto
sobrevê.

À NOITE, quando o pêndulo do amor oscila
entre sempre e nunca,
tua palavra toca as luas do coração
e teu tempestuoso olho
azul alça o céu à terra.
De longe, do negrissonhado
bosque advém-nos o sopro
e o perdido circula,
grande como os esquemas do futuro.
O que agora sobe e desce
vale para o íntimo soterrado,
cego como o olhar que trocamos,
beija o tempo na boca.

FALAR COM OS BECOS SEM SAÍDA
Falar com os becos sem saída
sobre o de defronte
sobre sua
expatriada
significação:
com dentes de escrever,
mastigar
esse pão.

NATUREZA-MORTA COM CARTA E RELÓGIO DE PAREDE
Cera
para lacrar o inescrito,
que adivinhou teu nome,
que codificou
teu nome.
Vem agora, luz flutuante?
Dedos, também eles de cera,
puxados por
anéis estranhos, de ferro.
Fundidas as pontas.
Vens, luz flutuante?
Ocos de tempo, os favos do relógio,
o milhar de abelhas noivas,
pronto para viajar.

Vem agora, luz flutuante.


Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele

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