20 de mar. de 2017

VIRIATO CORREIA, HOMENAGEM DO MÊS

             O texto abaixo que trata da obra capital do nosso homenageado do mês, Viriato Correia, é de autoria da professora e escritora Ana Elisa se Arruda sora analisa o romance de formação Cazuza, um livro que certamente traz muitos traços autobiográficos do maranhense Viriato.
            Todavia, o que ressalta da análise da mestra é enfoque da Educação na sociedade brasileira dos anos trinta. Uma oportunidade para aprofundarmos também nos dias atuais a questão da reforma do ensino, atualização de currículos, e procurar tornar a escola algo diferente do que é hoje: um espaço ondPenteado, Mestra em Literatura da Unicamp. Excelente trabalho em que a profese o ministrar conteúdos ficou em segundo plano, dando lugar ao debate político ideológico, numa deformação mental de nossos jovens. Aliás nem é debate ideológico e sim doutrinação pura e simples, principalmente a de cunho marxista-gramsciana.
            E além disso, desta leitura da professora Elisa sobre o Cazuza de Viritato, nosso interesse também é despertado para o conhecimento desta obra bem escrita, historicamente localizada, e que devolve o prazer de ler. (RF)

UM ESTUDO SOBRE CAZUZA, DE VIRIATO CORREIA 

Quando foi publicado em 1938, o livro Cazuza, verdadeira história de um menino de escola, de Viriato Correia, causou impacto e estranheza pelo fato de ocorrer numa época em que grande parte dos textos infantis brasileiros parecia comprometida com a formulação, defesa e difusão de uma determinada imagem de Brasil e de cidadão que certamente convinha à estética e ideologia do Estado Novo. E a obra Cazuza fugia a estes padrões estabelecidos.
“Não me lembro qual a minha idade quando ficou decidido que, no ano seguinte, eu entraria na escola. Mas eu devia ser muito e muito pequeno. Tão pequenino que não pronunciava direito as palavras e ainda chupava o dedo e vestia roupinhas de menina”.
Com essas linhas, o menino Cazuza inicia o relato de sua infância, que há quase 80 anos vem sendo contada em livro homônimo de Viriato Correia. Na esteira da tradição dos romances de formação, Cazuza ou a história verdadeira de um menino de escola, como o autor afirma ter pensado em chamá-lo, disseca, em tom memorialista, o cotidiano da escola primária no período compreendido entre o fim do século XIX e início do século XX.
Seria um bom título, não fosse sua extensão, uma vez que a idéia da escolarização como rito de passagem é bastante forte no livro, sendo, inclusive, o mote de toda a história – a adentrar o mundo da escola significa tornar-se um “homenzinho” e, de uma vez por todas, “deixar os vestidinhos” para “ganhar calcinhas de menino”. Era costume da época meninos e meninas usarem uma espécie de camisolão para dormir, daí o “vestidinhos” que o autor cita.
Aproveitando o calor do momento, em que a educação revelava-se imprescindível à formação do cidadão e à legitimação do regime estadonovista, Viriato Correia finalizou sua obra Cazuza – verdadeira história de um menino de escola, na qual não se furtou de abordar o valor da educação formal na constituição do cidadão. A educação é um tema sobre o qual o autor se debruçou com cuidado – e nem poderia ser diferente, uma vez que a obra Cazuza retrata a vida de um estudante – contemplando, principalmente, a instituição escolar, seus professores e a metodologia por eles empregada, num constante contraste entre a inovação e a tradição.
É ainda num pequeno povoado, Pirapemas, onde nascera e vivera seus primeiros anos, que Cazuza se interessa pela primeira vez por frequentar a escola. O menino recorda-se de que Pirapemas “era um dos lugarejos mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do Itapecuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio. Uma ruazinha apenas com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização a escola apenas”.
E se a primeira motivação para o menino Cazuza ir à escola foi a possibilidade de passar a usar “calcinhas de menino”, como ele confessa logo no início do livro, a segunda, certamente, foi o seu primeiro contato com a escola, ainda em Pirapemas, que aconteceu num dia de festa – a festa da palmatória. Vale lembrar que as festas de encerramento escolar visavam estimular as crianças e suscitar no povo o interesse pela escola, por isso o capricho da decoração, a solenidade dos discursos e a alegria das crianças desfilando pelas ruas.
A escola estava enfeitada com flores e bandeirinhas, as crianças contentes ouviam o discurso do mestre que “começava desejando que os alunos fossem felizes durante as férias e terminava lembrando-lhes que não se esquecessem das lições aprendidas e de nenhum dos deveres de moral e disciplina”.
Este contato inicial proporcionou ao menino tal sensação de enlevo que lhe ficou a lembrança “de que a escola era um lugar de alegria (...) um lugar agradável, que dava prazer à gente”, por isso foi “com o coração aos pulos, numa alegria tão risonha” que Cazuza recebeu de seus pais a notícia de que, finalmente, no ano seguinte, poderia frequentar a escola do povoado. A notícia instigou a curiosidade de seus colegas da vizinhança e “durante uma semana não se conversou outra coisa. O Chiquinho entusiasmou-se. Ia também dizer aos pais que queria entrar para a escola. O Vavá e o Maneco decidiram-se: entrariam também”.
Conforme se aproximava a tão esperada data, a excitação de Cazuza aumentava: mal podia conter a expectativa de partilhar aquela alegria que julgava existir no ambiente escolar. Porém, mais que momentos alegres e festivos, o menino ansiava por sua mudança de status: a entrada na escola excitava-lhe orgulho, pois lhe conferia uma posição diferenciada entre as crianças que ainda não a frequentavam, a começar pela exigência de um novo guarda-roupa, que foi confeccionado pela mãe:
Além das calcinhas de menino, ela me fizera uma camisa igualzinha às camisas de meu pai (...). Havia também uns sapatos novos, um gorro azul com borla de seda e uma blusa à marinheira. E mal me acabaram de vestir, pus-me a passear pela calçada de minha casa, cheio de mim como um pavãozinho que expõe o esplendor de suas penas bonitas”.
Os sapatos novos, as calcinhas de menino e a camisa “igualzinha” à que vestia seu pai evidenciam o “abandono” do mundo infantil de brincadeiras e poucas responsabilidades. Até então o papel social de Cazuza consistia em ser um bom filho, obedecer a seus pais e amar sua família. Uma vez na escola, aprenderia a portar-se como um cidadão. Alargariam-se os limites de sua casa: o respeito deveria ser voltado à coletividade e o amor e a obediência que devotava a sua família deveriam ser devotados também e, principalmente, à sua pátria, como prescrevia o ideário estadonovista.
Neste sentido, a entrada na escola constitui-se um rito de passagem para o mundo adulto, simbolizado, no livro, pela concessão de um direito a Cazuza: o de se desfazer de sua vestimenta infantil.
Transcorrem os dias e a imagem de escola como um “lugar de festa” logo cede espaço para a realidade, e a desilusão manifesta-se já no início do ano letivo. A construção deteriorada pelo tempo e mal arejada, as paredes desnudas e sem caiação, a falta de mobiliário e de material adequados tornam o ambiente escolar bastante deprimente, como explicitam as palavras do protagonista:
A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha, caiado por fora. Dentro unicamente um grande salão, com casas de marimbondos no teto, chão batido, sem tijolo. De mobiliário, apenas os bancos e as mesas estreitas dos alunos, a grande mesa do professor e o quadro-negro, arrimado ao cavalete. A minha decepção começou logo que entrei (...) as paredes nuas, cor de barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista. Durante minutos fiquei zonzo, como a duvidar de que aquela fosse a casa que eu tanto desejara.(...) As paredes sem caiação, a mobília polida de preto tudo grave, sombrio e feio, como se a intenção fosse entristecer a gente”.

No dia-a-dia, nada havia de festivo na escola – descobriu muito rapidamente Cazuza –, muito pelo contrário. As flores e os enfeites presentes no dia da festa da palmatória não estavam mais lá e as palavras do discurso do mestre, tão bonitas e amáveis, se transformaram em trovões que reboavam sobre as cabeças das crianças. Ao final deste primeiro dia de aula Cazuza estava “murcho, mole, fatigado e triste”. Sentia-se logrado em suas expectativas, e, como ele, as outras crianças, em cujos rostos Cazuza buscava, em vão, algum consolo: “Os meninos pareciam condenados: olhos baixos, voz assustada e dolorosa expressão de terror na fisionomia”. Não podia acreditar que esperara tanto por isso...
Escola, realmente, não podia ser aquilo. Escola não podia ser aquela coisa enfadonha, feia, triste, que metia medo às crianças. Não podia ter aquele aspecto de prisão, aquele rigor de cadeia. Escola devia ser um lugar agradável, cheio de atrativos, de encantos, de beleza, de alegria, de tudo que recreasse e satisfizesse o espírito”.
O narrador parece carregar propositadamente nas tintas com que pinta a escola do povoado – a “escuridão” do quadro metaforiza a escuridão intelectual que grassava naquele espaço. A precariedade do ambiente evidencia a enorme distância que separa a escola do povoado daquelas que vinham sendo construídas nos centros urbanos, desde o início da República. O atraso da escola frequentada por Cazuza é denunciado pelo menino ao relembrar que “as escolas antigamente não tinham, às vezes, mobiliário que prestasse, material de ensino que servisse, professores que cuidassem das lições, mas uma palmatória, rija, feita de boa madeira, não havia escola que não a tivesse”, o que denota que o atraso, a que nos referimos, obviamente não se restringia às péssimas condições do espaço físico mas estendia-se aos métodos de estudo – bastante diferentes dos modernos processos pedagógicos que começavam a entrar em voga.
A escola do povoado evocada pelo narrador guarda muitos resquícios das escolas de primeiras letras do tempo do Império, que funcionavam, muitas vezes, na própria casa do professor ou em salas ou cômodos (mal) adaptados, pouco arejados e sem iluminação adequada e cuja despesa com aluguéis ficava por conta do próprio mestre-escola. Este quadro permaneceu ainda nas primeiras décadas da República, na zona rural, onde as escolas careciam de livros, cadernos, salas apropriadas e salários para os professores.
Afastadas dos centros urbanos, as escolas isoladas, como eram conhecidas, sobreviveram obscurecidas pelos grupos escolares que se erguiam imponentes nas cidades.
Embora fossem de extrema importância para a difusão do ensino alfabetizador de que a República tanto necessitava, as escolas isoladas não recebiam a devida atenção do Estado, que as privava de recursos. A prioridade do governo, estava claro, eram os investimentos na melhoria do espaço urbano, como saneamento básico, iluminação, água, transporte público, entre outras benfeitorias. O grupo escolar não só se insere neste conjunto de melhorias, como é a garantia do progresso da localidade que o possuía, pois era um símbolo de modernização cultural, irradiador de um dos mais caros valores urbanos -– a cultura letrada.
O narrador já se ocupa de apresentar a escola como único símbolo de civilização, quando apresenta ao leitor o povoado em que vivia, perdido no interior do Maranhão. É bem verdade que se tratava de uma escola retrógrada e ineficiente, mas, ainda assim, era um espaço reservado ao saber, que demarcava os indivíduos entre aqueles que a frequentavam e os outros. Sem perder de vista o caráter formativo de seu livro, o discurso viriatiano segue insistindo nos benefícios e nas alegrias da escolarização. A Escola é o passaporte para a civilidade, é a alegria da socialização com outras crianças, é, enfim, a iniciação ao mundo moderno.
E moderna era uma qualidade que se podia empregar ao descrever a escola da Vila. Apresentado como um grupo escolar, a escola dirigida por Dona Janoca, era bem diferente da escola do povoado:
A escola funcionava num velho casarão de vastas salas, que devia ter mais de meio século. Quando lá entrei, no primeiro dia, (...) senti no peito o coração bater jubilosamente.(...) Os salões, amplos e claros, abriam-se de um lado e de outro do vasto corredor, com filas de carteiras escolares, vasos de plantas, aqui e ali, e jarras de flores sobre as mesas. As paredes, por si só, faziam as delícias da pequenada. De alto a baixo uma infinidade de quadros, bandeiras, mapas, fotografias, figuras recortadas de revistas, retratos de grandes homens, coleções de insetos, vistas de cidades, cantos e cantinhos do Brasil e do mundo. E tudo aquilo me encantava de tal maneira que eu, às vezes, deixava de brincar todo o tempo do recreio, para ficar revendo paisagem por paisagem, mapa por mapa, figurinha por figurinha”.
A extrema e constante valorização da escola em Cazuza evidencia-se ainda neste diálogo travado entre a professora e o pai de um menino muito “vivo, dócil, inteligente e trabalhador” que, apesar de seus doze anos, nunca havia frequentado a escola. Seu pai, mostrado como um homem rude, acreditava que não havia a necessidade de um homem instruir-se, – portanto, criara seus filhos todos analfabetos. O menino trabalhava com o pai,  lenhador, por isso não podia frequentar a escola. A professora, inconformada, insistia:
“– É um crime deixar um menino destes sem instrução. Um pequeno que podia dar tanta coisa!
Eu tenho necessidade dele no mato, para me ajudar.
Ele que vá à escola depois que anoitecer, que eu, por exceção, o ensinarei à noite.
À noite ele quer dormir. (...)
Lembre-se de que, sem instrução, ninguém vive.(...) Sem instrução não há felicidade. (...) O seu filho poderia ser muito feliz se se instruísse. Mande o pequeno para a escola (...).
Escola para quê? Tudo que ele precisa saber, e tudo que eu precisava que ele soubesse, ele sabe. Na escola a senhora não tem menino mais inteligente e sabido do que ele.
Por isso mesmo deve instruir-se.
Mas ele faz as coisas tão direitinho.
Melhor as fará se tiver instrução. A perfeição é para quem tem saber. O analfabeto, por mais hábil que seja, nunca faz nada direito.”
O desejo de frequentar a escola, acalentado pelo menino com uma alegria ansiosa, é traço que distingue o livro Cazuza de outros romances escolares tornados clássicos na literatura nacional, como, por exemplo, O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Doidinho (1933), de José Lins do Rego e Infância (1945), de Graciliano Ramos.
Em Cazuza a hora de estudar não se reveste de angústia, mas de excitação como próprio narrador nos confessa:
Desde que me entendi, tive a preocupação de ser homem e nunca pude me ajeitar nos vestidinhos rendados de menina.(...) E, por amor às calças, comecei a mostrar amor aos livros”.
Se, à primeira vista, a motivação que levou o menino a entrar em contato com o mundo das letras pode parecer supérflua, ou derivada de vaidade, deve-se olhá-la mais acuradamente. A preocupação em deixar os “vestidinhos de menina” simboliza o desejo de Cazuza, aliás, como o de qualquer criança, de crescer. O crescimento de Cazuza, no entanto, vai além de seu desenvolvimento físico – compreende a formação de seu caráter, a construção do cidadão de que o país tanto precisava nesse momento.
O livro Cazuza foi gerado pelos ideais e pelas ideias do Brasil dos anos de 1930 e, por isso, está comprometido com as tendências estéticas e literárias do momento, cuja tônica era o nacionalismo ufano daquela década. Viriato Correia preocupava-se, em suas obras, principalmente naquelas dedicadas à infância, com “as ‘coisas e gentes brasileiras’ e com a formação da conduta ‘moral e cívica’ das crianças”, desvelando aos olhos infantis um Brasil que precisava ser construído como nação. Ao escrever Cazuza, o autor transformou em literatura os impulsos que estavam no cerne de um movimento nacional, então em processo, “que pode ser sintetizado na nova palavra de ordem: o deslocamento das populações do interior para as capitais, a fim de impulsionarem, com sua força de trabalho, a modernização do país, a industrialização e as novas relações produto/consumo”.
O livro insere-se perfeitamente no amplo projeto que estava empenhado em construir o Estado Nacional e o novo cidadão que a ele convinha, projeto civilizador que já começara a ser esboçado logo nos primórdios da República. O país modernizava-se e equipava-se para ingressar numa nova era do desenvolvimento do capitalismo, e a educação do povo revelava-se de fundamental importância para que esse projeto fosse levado a cabo com sucesso. Embora a ação da narrativa transcorra no entresséculos, são claramente perceptíveis os traços do ideário estadonovista, que repaginou muitos dos ideais dos primeiros republicanos como, por exemplo, a visão da educação como a redentora de uma nação ainda atada à ignorância e que, só através da escola, poderia o país alinhar-se nos trilhos do progresso, pois de lá é que sairia formado o cidadão produtivo e ciente de seus deveres para com a coletividade e para o engrandecimento da Pátria.
O livro acompanha, portanto, os anos de escolarização de Cazuza, cujo término coincide com o término da própria infância - que durava o tempo do ciclo escolar, entendido como o tempo necessário para a formação do indivíduo. Durante esse período, as experiências vividas pelo menino, protagonista e narrador da história, em casa, na rua e, finalmente, na escola – revelados como espaço de aprender – proporcionam-lhe o conhecimento necessário que orientará a formação de sua conduta ética.
À medida que o menino cresce, aumenta seu repertório de experiências, resultado de sua interação com a família, com os amigos da vizinhança e com os professores. Por isso, o processo de educação de Cazuza só estará concluído quando este tornar-se “um homenzinho”, como Viriato Correia se refere ao personagem ao final do curso primário.
Adulto em miniatura, seu processo educativo encerra-se com a conclusão do ciclo escolar: o menino estará finalmente pronto, moldado, constituído como cidadão.
O percurso de Cazuza em busca de sua formação inicia-se com seu ingresso na escola de primeiras letras no povoado de Pirapemas, onde nasceu. Frequenta, depois, a escola da Vila, em Coroatá, para onde seus pais se mudaram, em virtude de questões de ordem financeira, e, por fim, ingressa no Colégio Interno, em São Luís, capital do Maranhão.

A trajetória de Cazuza por estes locais e a diversidade de escolas por ele experimentada oferecem-lhe a oportunidade de vivenciar episódios variados, dos quais é sempre possível retirar um aprendizado. Viriato Correia introduz suas personagens, principalmente as infantis, apresentando-as por meio de traços distintivos, fortemente marcados, o que as tornam fácil e rapidamente identificáveis pelo leitor. Estes traços aderem de tal modo a cada uma delas, que não seria exagero afirmar terem sido construídas num processo quase caricatural. Portadoras de uma única característica, revelada desde logo, elas desfilam pela narrativa encarnando virtudes e vícios que, ao serem exacerbados, visam unicamente a um bem sucedido ensinamento.
Em Cazuza, o protagonista vive algumas das experiências mais típicas do gênero, a saber: a separação em relação à casa paterna, a atuação de mentores e de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, experiências intelectuais eróticas, experiência em um campo profissional e eventualmente também contato com a vida pública, política. Embora a experiência erótica não faça parte do universo do menino Cazuza, todas as outras experiências citadas podem ser aplicadas à sua trajetória: o colégio interno e o convívio com os professores desta instituição, em especial com o Professor João Câncio, com quem aprendia além dos conteúdos escolares, muitas lições de vida; as luzes e as vitrines da cidade e seu teatro que permitiram à criança roceira o contato com o Belo, e, finalmente, o contato direto com as ambiguidades políticas, ao vivenciar o embate travado na própria instituição escolar entre o menino rico e o menino pobre.
A questão da Pátria é generosamente contemplada em diversas circunstâncias ao longo do livro. São, porém, os capítulos intitulados “Que é Pátria”, “Que é Brasil” e “A obra dos brasileiros” aqueles que traduzem de forma mais explícita as questões que Viriato Correia julga interessantes para a formação do caráter infantil e é, neles, principalmente que vou me ater para a discussão do tema Pátria. Tais capítulos estão impregnados de um nacionalismo eufórico e de um civismo ímpar, bastante condizentes com o momento histórico.
O tema em questão surge, no capítulo “Que é Pátria”, com a discussão, em sala de aula, sobre um dos símbolos pátrios – a bandeira nacional – sugerido pelo professor como tema de uma produção de texto:
”– O tema que eu vou dar para a composição de hoje, (...), além de belo, deve ser grato para vocês. E escreveu no quadro-negro: A Bandeira Nacional.
De ponta a ponta das carteiras as fisionomias se alegraram”.
A alegria compartilhada pelos alunos provém, primeiramente, do fato de que discorrer sobre a bandeira nacional seria uma novidade em relação aos velhos temas de composições enfadonhos e inexpressivos a que eram sempre submetidos, mas, principalmente, porque esse seria um tema de fácil execução. A facilidade ao executar a tarefa proposta pelo professor revela o apreço e o orgulho que estas crianças nutrem pelos símbolos pátrios, aqui representados pela bandeira nacional.
Em Cazuza, Correia também procura resgatar o passado histórico, com o intuito de reforçar o sentimento nacionalista. Assim, o professor, durante as aulas, não poupa os alunos de uma rememoração incansável sobre os feitos de nossos heróis, arrolando desde nossos primeiros patriotas, os defensores do solo brasileiro, como Estácio de Sá, Mem de Sá, Araribóia e Jerônimo de Albuquerque e a coragem desses homens para expulsar os franceses do Rio de Janeiro e do Maranhão, assim como os pernambucanos que arrasaram o domínio holandês no Norte, até chegar a um herói anônimo, um voluntário da Guerra do Paraguai, que era gratificado com um pequeno soldo que a nação lhe pagava por ter lutado em defesa da pátria.
Assim como faz com as virtudes, Viriato elege alguns valores a serem trabalhados com seus pequenos leitores. O ideal de liberdade é um deles e pulsa forte na escrita desse autor, que tem bastante firme a ideia de que os brasileiros trazem em seu caráter o gérmen da liberdade.
Em Cazuza, o discurso viriatiano também consagra várias linhas à defesa da liberdade, cujo valor é exaltado tanto através de situações corriqueiras, quanto através de fatos importantes para a história do país. Singelo, porém revelador, é o episódio em que o menino Cazuza, desobedecendo sua mãe, prende num alçapão um corrupião que “andava a cantar, todas as manhãs, na cerca da casa de moer cana”. A mãe do menino se contraria:
”– Cazuza, eu já te disse que isso não se faz!(...)
Mas este não foi tirado do ninho expliquei-lhe. Já é grande, não tem mãe.
Mas tinha liberdade e tu lhe roubaste a liberdade. Deus fez as aves para viverem livremente no espaço e tu queres encerrá-las nas grades de uma gaiola.
Mas eu lhe dou comida, água, tudo, acrescentei. Ela pegou-me pelo braço.
Onde mamãe vai me levar? Indaguei assustado.
Vou prender-te no quarto, uma semana, um mês.
Não, não! Bradei.
Mas eu te dou água, comida, tudo. Por que não queres?
Porque é ruim, respondi. Assim não brinco, não corro, não vejo nada.
Ah! Exclamou mamãe. Então a comida, água, não bastam. É preciso a liberdade que tu não podes dispensar, é a liberdade que queres tirar ao corrupião. A prisão que te assusta é a prisão que queres dar ao pássaro.
A conclusão a que a mãe induz o filho a chegar é a de que não basta prover, suprir um ser com as necessidades mais básicas de sobrevivência, se ele não puder provar o sabor de ser livre.
A preocupação com a formação do professorado é outra questão que emerge das páginas de Cazuza, ao explicitar, por exemplo, que a diretora da escola da vila, para onde o menino se mudara com seus familiares, tinha feito um curso na capital, que a ensinara a trabalhar com as crianças. Conhecida por abolir de sua escola os castigos físicos, a jovem diretora era questionada por muitos adultos da comunidade – claros representantes da ala retrógrada – sobre seus métodos, pois estes adultos não podiam compreender que diretora não tivesse o costume de castigar os alunos. A sua resposta era a de que preferia fazer os alunos estudarem usando os meios brandos, o estímulo e o exemplo.
Dona Janoca, a diretora, recebeu-me com o carinho com que se recebe um filho. Os meninos e as meninas, que me viram chegar, olharam-me risonhamente, como se já tivessem brincado comigo. Eu, que vinha do duro rigor da escola do povoado, de alunos tristes e de professor carrancudo, tive um imenso consolo na alma. A escola da vila era diferente da escolinha do povoado como o dia é da noite. Dona Janoca tinha vindo da capital, onde aprendera a ensinar crianças. Havia em suas maneiras suaves um quê de tanta ternura que nós, às vezes, a julgávamos nossa mãe.
Sua voz era doce, dessas vozes que nunca se alteram e que mais doces se tornam quando fazem alguma censura. Mostrava, sem querer, um grande entusiasmo pela profissão de educadora: ensinava meninos porque isso constituía o prazer de sua vida”.
CAZUZA E A PALMATÓRIA

"Cada par copiava um mesmo trecho de prosa e vencia o aluno que apresentasse a letra mais bonita. O prêmio que se lhe dava era meter-lhe na mão a palmatória para que castigasse o vencido com uma dúzia de “bolos”. O professor chamou o meu nome e o nome do Doca. Aproximamo-nos da grande mesa. Eu tremia. Durante três minutos o velho examinou e comparou as duas escritas. Depois disse:
As duas letras são bem parecidas. Não se pode dizer que uma seja melhor do que a outra. Ambas são boas.
E lançou o julgamento:
“Empate”.
Respirei livremente.
O professor entregou-me a palmatória. 
“Para que isso?”, perguntei.
“Para que há de ser?”, disse-me. Os dois não empataram?. Você dá seis ‘bolos’ nele, e ele lhe dá seis ‘bolos’”.
Achei aquilo um disparate. Olhei o velho com surpresa.
“Que é que você está olhando?”, roncou ele asperamente.
A minha língua travou. 
“Não posso compreender isso!, exclamei. Por que houve empate? Porque o Doca tem letra boa e eu tenho letra boa. Então quem tem letra boa apanha?”
João Ricardo ergueu-se da cadeira com um berro.
“Não quero novidades! Sempre e sempre foi assim. Atrevido! Quem é aqui o professor?”
E entregou a palmatória ao Doca.
Pesquisa e texto final:
Raimundo Fontenele

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