A nossa homenageada do mês de junho, escritora maranhense MARIA FIRMINA DOS REIS, é considerada uma pioneira na luta pela igualdade racial e intelectual entre homens e mulheres, muitos antes que as feministas botassem a cabeça de fora, ou melhor, queimassem sutiãs.
Nesta nossa
homenagem, além de uma pequena biografia, apresentamos um trabalho dos
professores José Geraldo
da Rocha e Patricia Luisa Nogueira Rangel, intitulado Úrsula: A voz dos excluídos
do século XIX no romance de Maria Firmina Dos Reis, e recomendamos também a
leitura de mais dois trabalhos excelentes: trata-se de Maria
Firmina dos Reis: A trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no
Brasil oitocentista, de Rafael Balseiro Zin, e A Voz e a Memória dos Escravos:
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, de autoria de Bárbara Loureiro Andreta e
Anselmo Peres Alós.
E gostaria de contar que também fui um
dos primeiros a participar, como auxiliar do professor e escritor Nascimento de
Moraes, na redescoberta de Maria Firmina nos idos dos anos setenta. Ainda muito
jovem, meio poeta e metido em vagabundagens mil, aceitei o convite do professor
Nascimento de Moraes para trabalhar como seu assistente na feitura do seu livro
sobre Maria Firmina dos Reis, fragmentos de uma vida.
Meu trabalho consistia em datilografar
seus escritos e quanto ao romance Úrsula datilografá-lo, mas atualizando alguma
coisa da sua linguagem que o tornasse mais inteligível naqueles novos tempos.
E assim, pude testemunhar o quanto ela
estava além do seu tempo, seu valor como mulher e ser humano, sua coragem de
enfrentar aquela sociedade rica, branca, europeizada e preconceituosa de então,
inserindo seu nome na história da literatura maranhense e brasileira. (RF)
Dados
biográficos:
Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha
de São Luís no Maranhão, em 11 de outubro de 1825. Foi registrada como filha de
João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Negra, bastarda, era prima do
escritor maranhense Francisco Sotero dos Reis por parte da mãe. Em
1830, mudou-se com a família para a vila de São José de Guimarães, no
continente. Viveu parte de sua vida na casa de uma tia materna mais bem situada
economicamente. Em 1847, concorreu à cadeira de Instrução Primária nessa
localidade e, sendo aprovada, ali mesmo exerceu a profissão, como professora de
primeiras letras, de 1847 a 1881.
Negra e bastarda,
enfrentou a barreira dos preconceitos e publicou, em 1859, o
romance Úrsula, considerado o primeiro romance abolicionista do
Brasil e um dos primeiros escritos produzidos por uma mulher brasileira.
Em 1887, Maria Firmina escreveu também
um conto sobre o mesmo tema, "A Escrava". Em 1971,
publicou a coletânea de poesias Cantos à beira-mar. Também
colaborava com jornais literários.
Em 1880, fundou
uma escola gratuita e mista, para meninos e meninas, o que causou escândalo no
povoado de Maçaricó, em Guimarães. Afinal, a escola teve que ser fechada
em menos de três anos.
O romance “Úrsula” consagrou Maria
Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura
afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em
1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A
Escrava”, reforçando sua postura antiescravista. Ao aposentar-se, em 1880,
fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de
Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de
José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da
escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
Principais obras da autora:
·
Úrsula.
Romance, 1859.
Gupeva. Romance,
1861/1862 (O jardim dos Maranhenses) e 1863 (Porto Livre e Eco
da Juventude).
Poemas
em: Parnaso maranhense, 1861.
A
escrava. Conto, 1887 (A Revista Maranhense n° 3)
Cantos
à beira-mar. Poesias, 1871.
Hino
da libertação dos escravos. 1888.
Poemas
em: A Imprensa, Publicador Maranhense; A
Verdadeira Marmota; Almanaque de Lembranças Brasileiras; Eco
da Juventude; Semanário Maranhense; O Jardim dos
Maranhenses; Porto Livre; O Domingo; O País; A
Revista Maranhense; Diário do Maranhão; Pacotilha; Federalista.
Composições
musicais: Auto de bumba-meu-boi (letra e música); Valsa (letra
de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis); Hino à
Mocidade (letra e música); Hino à liberdade dos escravos (letra
e música); Rosinha, valsa (letra e música); Pastor
estrela do oriente (letra e música); Canto de recordação (“à
Praia de Cumã”; letra e música).
ÚRSULA:
A VOZ DOS EXCLUÍDOS DO SÉCULO XIX
NO ROMANCE DE MARIA FIRMINA DOS REIS
José Geraldo da Rocha e Patricia Luisa Nogueira
Rangel
Introdução
Este artigo
possibilitará a análise de representações de elementos excluídos pela sociedade
do século XIX, como mulheres e negros, dentro do romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis.
A autora é
considerada a primeira escritora brasileira, e por ser negra, também assume a
categoria de primeira escritora da literatura que aborda temas sobre o negro.
Sua literatura, portanto, revela a importância da mulher na literatura
brasileira, como reconstrução da história.
A literatura
afrobrasileira é uma grande fonte histórica, em que ocorre o resgate da
identidade de negros escravizados, os quais sofreram com tentativas de
aculturação de uma classe dominante. O livro Úrsula,
de Maria Firmina dos Reis, é um romance que trata do tema escravidão, em que a
oralidade dos personagens retoma os saberes africanos, de forma que esta obra
resgatou uma nova construção do sentido e perspectiva histórica, pois deu voz
aos negros para expressar seus pensamentos, sentimentos e contar a sua história.
Outra questão
abordada por Firmina foi a questão da mulher no sistema patriarcal da época.
Suas personagens, Úrsula e Luísa B…, fogem ao padrão da época. Luísa B… casa-se
contra a vontade do irmão e, quando viúva, assume as responsabilidades de casa.
Úrsula se apaixona por Tancredo e não se submete ao casamento com seu Tio. Reis
apresenta mulheres fortes. A narrativa Úrsula trata
do romance entre Úrsula e Tancredo, no entanto, surge um terceiro, Fernando F…,
tio da mocinha, que a deseja e, para tê-la, é capaz de ir até as últimas
consequências. Surgem na trama, como aliados do casal, os escravos: o jovem
Túlio e a Velha e boa Suzana.
Enfim, o
trabalho em questão evidencia o resgate de uma escritora do século XIX, por
meio do seu romance, de uma herança histórica, política, literária e revolucionária.
1. Maria Firmina dos Reis: a autora e a obra
Maria Firmina
dos Reis nasceu em 1825, na cidade em Ilha de São Luís, capital da província do
Maranhão. Mestiça e filha ilegítima de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos
Reis. Aos cinco anos mudou-se para Vila de Guimarães, município de Viamão,
ainda no mesmo estado, em que sofreu forte influência do primo, por parte da
mãe, Sotero dos Reis, escritor maranhense. Segundo Mendes (2006), Firmina era
autodidata e seus conhecimentos se deram através de muitas leituras, inclusive,
lia e escrevia francês fluentemente.
Martin (1988),
segundo a pesquisa de José Nascimento Moraes Filho (1975), declara que, em
1847, Maria Firmina foi a única aprovada no concurso de professora primária na
Vila de Guimarães, se aposentando em 1881. Em 1880, aos 55 anos, ela fundou a
primeira escola mista de Maranhão, no entanto, Mendes (2006) comenta que esta
escola foi fechada em 1890. Faleceu em 1917, pobre e cega, aos 92 anos.
De acordo com
Martin (1988), o romance Úrsula foi
publicado em 1859, no entanto, o nome da autora era representado por um
pseudônimo “uma Maranhense” e começa a circular em 1860. Esta obra foi o
primeiro romance abolicionista e o primeiro escrito por uma mulher. No entanto,
Lima (2009) comenta que embora Reis tivesse escrito sua narrativa antes de o Poeta dos escravos, Castro Alves,
escrever seu poema expressivo “Navio negreiro”, em 1869, somente no século XX é
que recebe o reconhecimento devido, após sua morte.
A partir de
1860, Maria Firmina dos Reis começa a colaborar com diversos textos literários
de sua autoria em diversos jornais da época, como A
Imprensa, O Jardim dos Maranhenses, Porto Livre, Semanário Maranhense, O
Domingo, O País, e outros do estado, conforme Martin (1988). Firmina não
assinava seu nome em seus trabalhos, mas as iniciais M.F.R., tática usada para
maior aceitação na sociedade.
Ainda segundo o
autor, citando José Nascimento de Moraes Filho (1975), o romance Úrsula foi recuperado através do
pesquisador Horácio de Almeida, em 1962, quando comprou um lote de livros
usados e entre eles se encontrava o único exemplar que se conhece do romance.
Nesse momento, Maria Firmina dos Reis ficou reconhecida como a primeira escritora
brasileira e da literatura negra. Em 1973, José Nascimento Morais Filho (1975)
encontrou outras obras da escritora e as registrou na Seção de Livros Raros da
Biblioteca Pública Benedito Leite, em 10 de dezembro do mesmo ano.
Mendes (2006)
declara que Firmina escreveu, esteticamente, dentro do contexto da realidade na
época, com dificuldades econômicas e geográficas por sempre viver em Guimarães
e São Luís (MA), e inserida numa sociedade patriarcal. Seus temas eram o que
escritores de seu tempo negavam, de forma que demonstrava não só sua
contemporaneidade, como também consciência política e social fora dos padrões
da sociedade interiorana daquele século.
Mendonça (1999,
p. 68) comenta que a leitura de obras escritas por mulheres, além do
reconhecimento de suas presenças, como escritora, também funcionam como sujeito
histórico que participa de diferentes contextos discursivos. Firmina,
antecipadamente, propõe “a necessidade de um redirecionamento da história do
país, sugerindo sutilmente a valorização e o resgate das minorias (negro,
índios e até detentos), para que também elas fizessem parte do contexto
histórica”.
Schmidt (1999,
p. 37) comenta que os textos literários de autoria de mulheres possibilitam
críticas, pois sua “função e valor são produzidos em relação a contextos
culturais e sociais que são historicamente específicos”:
À medida que a herança
literária deixada por mulheres se torna visível e suas continuidades começam a
se somar em direção ao mapeamento de uma nova cartografia simbólica, desarticula-se
a visão canônica do passado literário e se instala a demanda pela reescritura
da história literária (SCHMIDT, 1999, p. 37).
No prólogo de Úrsula, Maria Firmina se justifica por não
seguir os padrões da época e apresenta seu livro como sendo humilde e certa de
que passaria pelo indiferentismo de uns e deboche de outros. Ela enfatiza a
desvalorização do romance por ser mulher, além de pouca escolaridade, numa
sociedade em que os homens dominam.
Sei que pouco
vale este romance escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação
acanhada e sem o trato e conversação dos homens iletrados, que aconselham, que
discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a
língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo
(REIS, 1988, p. 19).
No final do
prólogo, ela compara seu livro a uma donzela que a natureza negou a formosura,
e solicita que deixem seu livro circular, apesar de sua humildade para que ela
própria venha escrever coisa melhor ou que sirva de incentivo para outras.
A narrativa do
romance Úrsula é uma crítica
feita por Maria Firmina Reis da sociedade do século XIX, pelas vozes dos
personagens, dando visibilidade aos pensamentos de mulheres e de negros
escravos, de maneira que, as personagens apresentam características diferentes,
com suas individualidades e experiências, fugindo do estereótipo definido pela
sociedade literária da época.
A partir da
obra, se desestabiliza a linha divisória da história, pois são várias vozes, e
não uma só, da classe dominante, de forma que a história se transforma em
blocos de verdades. Enquadrando-se ao que Walter Benjamin (1987, p. 222)
entende por história, uma postura de narrar e colocar-se ao lado dos oprimidos,
além de “levar em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido para a história”, questionando assim, o conceito de verdade.
2. Negros e escravos
Maria Firmina
dos Reis aborda a temática do negro, situando-o no tempo e espaço do sistema
colonial, uma sociedade patriarcal e escravocrata, com discurso ideológico,
refletindo assim “uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado
oprimido” (BENJAMIN, 1987, p. 231). A favor dos escravos, Firmina apresentou,
ao leitor, o negro com outra visão – bom, generoso, fiel, com memória, sofrido
e, principalmente, como ser humano.
Através de seu
romance, é possível uma leitura nas entrelinhas o que era ser negro naquela
sociedade, levando o leitor a refletir sobre o universo escravista. Benjamin
(1987) declara que o cronista ao narrar os acontecimentos, não faz distinção
entre os grandes e os pequenos, levando em consideração a verdade de cada um,
porque não se pode descartar a experiência vivida e o que um dia aconteceu não
pode ser considerado perdido para a história.
Um dos
personagens negros em Úrsula é
Túlio, jovem que socorreu Tancredo, jovem cavaleiro branco e melancólico,
ferido em uma queda de cavalo.
Caiu, e de um
jato perdeu o sentimento da própria vida; porque a queda lhe ofendeu o crânio,
e aturdido, e maltratado, desmaiou completamente. Para mais desastre o pobre
animal no último arranco do existir, distendendo as pernas, foi comprimir
acerbamente o pé direito do mancebo, que inerte e imóvel, como se fora frio
cadáver, nenhuma resistência lhe opôs (REIS, 1988, p. 23).
Reis (1988)
apresenta Túlio como uma pessoa que sofria com o cativeiro, considerando-se
mísero escravo, pois a condição escravo era de infelicidade, levando uma vida
mesquinha. Mas apesar do rigoroso desprezo dos homens brancos, Túlio não se
tornou desumano, porque
Os sentimentos
generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros
como a sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração
enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista (REIS,
1988, p. 25).
Maria Firmina
mostra o negro numa visão positiva, considerando-o nobre por se dispor em
ajudar alguém que não conhecia e se compadecer da dor do mesmo, mas essa
característica não foi obtida com o convívio com os brancos, mas era próprio de
Túlio como ser humano. “Túlio observava-o com angústia: as dores do mancebo
senti-as ele no coração” (REIS, 1988, p. 32). Dessa maneira, Firmina
desconstrói a ideologia de que os negros eram coisas ou animais, mas
possibilita uma nova visão sobre eles ao mostrá-lo como seres humanos com
sentimentos.
O escravo tinha
um amor desinteressado e tinha empatia, se colocando no lugar do outro e como
resultado foi alforriado pelo jovem Tancredo como símbolo de gratidão e
amizade. O jovem negro ansiava pela liberdade, “a liberdade era tudo quanto
Túlio aspirava; tinha-a – era feliz!” Mesmo livre decidiu acompanhar Tancredo,
porque não significava trocar “cativeiro por cativeiro”, e sim, trocar
“escravidão por liberdade, por ampla liberdade!” (REIS, 1988, p. 37, 81). De
forma que a autora reforça que a amizade e relação interpessoal entre etnias
diferentes, branco e negro, é possível.
Apesar de
jovem, Túlio discursa em conformidade com a razão, de forma sensata, quando
reconhece que seu corpo pode ser escravizado, mas sua mente não. O escravo tem
os seus pensamentos livres, no entanto, o corpo não. Ele geme e sofre.
Cadeia infame e
rigorosa, a que chamam: – escravidão?!… E, entretanto este também era livre,
livre como pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta
a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios da sua
mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma lho
compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar! Nas asas do
pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África… E a realidade
opressora lhe aparece – é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os areais
ardentes, as sombras projetadas pelas árvores, o oásis no deserto, a fonte e a
tamareira – foge a tranquilidade da choupana, foge a doce ilusão de um momento,
como ilha movediça; porque a alma está encerrada nas prisões do corpo! Ela
chama-o para a realidade, chorando, e o seu choro, só Deus compreende! Ela não
se pode dobrar, nem lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre,
mas o corpo geme, e ela sofre, e chora; porque está ligada a ele na vida por
laços estreitos e misteriosos (REIS, 1988, p. 35, 36).
Túlio é um
personagem secundário na trama, mas de grande importância, pois foi o
responsável pelo encontro de Tancredo e Úrsula e
está diretamente ligado a eles na Trama, tornando-se amigo fiel e companheiro
dos dois, a ponto de perder a vida. Também, foi o personagem responsável pelas
vozes da escrava Susana e do escravo Antero, porque foi para ele que
discursaram ideologicamente sobre a escravidão e trouxe a realidade da África.
Benjamin (1985)
diz que narrar é intercambiar experiência, é uma troca dialógica em que um
enriquece o outro. Em Úrsula, foi
justamente Túlio, o outro, enriquecido pelas narrativas de uma velha escrava de
Luísa B…, Suzana.
Trata-se de uma
escrava que narra suas reminiscências e no seu romance, Firmina chama atenção
para a brutalidade do processo de escravidão, através da voz e experiência de
Suzana. De acordo com Benjamin (1987), o historiador precisa articular o
passado, ou seja, apropriar-se das reminiscências, ao momento do perigo
(presente), a fim de responder os questionamentos do momento.
E logo dois
homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma
escrava! Foi embalde que supliquei em nome da minha filha, que me restituíssem
a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem
compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… a
sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles
lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu
Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!…
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro
no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de
falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura
até abordarmos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria
humana no porão fomos amarrados em
pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais
ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa.
Davam-nos água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda porca:
vimos morrer ao nosso lado companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É
horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que
não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (Reis
1988, p. 82, 83).
A voz da
escrava, que experimentou a liberdade/escravidão, assume um papel social e
histórico. A narrativa de Suzana não se trata de um simples discurso ao Túlio,
mas a representação de todo processo escravagista, desde que é arrancada de sua
terra natal até o momento em que chega numa terra estranha e é tratada como
objeto do homem branco para o trabalho.
A história se
apropria das recordações do passado para preservar a memória e provocar
reflexões no presente, enquanto a classe dominante se prevalece da memória
fraca das pessoas para que sua ideologia permaneça.
A história é
objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um
tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um
passado carregado de ‘agoras’, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução
Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda
cita um vestuário antigo. A moda tem faro para o atual, onde quer que ele
esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao
passado. Somente ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo
salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o
concebeu Marx (BENJAMIN, 1987, p. 229, 230).
Em Úrsula, quando o jovem negro perguntou “para
que essas recordações?”, a escrava mostrou quão importante são as recordações.
Ela respondeu que “não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera,
pois vivem comigo todas as horas.” (REIS, 1988, p. 82).
Benjamin (1987)
assinala que o narrador relata suas experiências, incorporando à experiência da
outra pessoa, tratando-se de uma forma artesanal, imprimindo a marca do
narrador, que não está interessado em transmitir a coisa narrada como uma
informação ou relatório. Através de suas experiências, a escrava Susana
acreditava que a verdadeira liberdade só poderia acontecer na sua terra natal e
não somente com a alforria, como Túlio acreditava ter.
Liberdade!
Liberdade… ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura. –
Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais
ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol
rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que
tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com
minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz
no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas
areias daquelas vastas praias… (REIS, 1988, p. 81).
Firmina também
aborda, através de Suzana, outra ideia de liberdade, a morte. Quando oferecida
a oportunidade de fuga antes de ser condenada a morte, Suzana recusou por ser
inocente.
Outra inovação
de Firmina é com respeito à caracterização. Freyre (1998) comenta sobre como as
mulatas e negras eram vistas pelos homens naquela sociedade:
Provocação de
mulatinhas e negras da casa se arredondando, em moças; de molecas criando
peitos de mulher; e tudo fácil, ao alcance da mão mais indolente… Parece que as
negras não ficavam velhas tão depressa, nos trópicos, como as brancas; aos
quarenta anos dão a impressão de corresponder às famosas mulheres de trinta
anos dos países frios e temperados. Uma preta quarentona é ainda uma mulher
apenas querendo ficar madura; ainda capaz de tentações envolventes… O
intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive eclesiásticos,
sem dúvida nenhuma, dos elementos, mas seletos e eugênicos na formação
brasileira – com escravas, negras e mulatas foi formidável (FREYRE, 1998, p.
442).
A
caracterização das negras era a exploração do lado sexual, enquanto Susana é
descrita como reflexo de sua amargura e sofrimento. De acordo com Reis (1988,
p. 80), a velha escrava usava “saia com grosseiro tecido de algodão preto, cuja
orla chegava-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas como todo o seu corpo”
e na cabeça um lenço encarnado e amarelo, que mal tampava os cabelos brancos.
Outra
caracterização que acontece em Úrsula é
o da África sem nunca ter estado lá e, através da voz da escrava, envolve o
leitor, a ponto de transportá-lo ao local e mostrá-lo que lá, na África, eles
tinham uma vida comum – casavam, tinham filhos, eram felizes, desmistificando a
ideia de uma sub-raça, conforme Mendes (2006).
Outra figura
negra que aparece é do pai Antero. Apesar de pequena participação no romance
não é tão grande quanto de Túlio e da escrava Susana, mas sua experiência é
valiosa, pois através de suas recordações, resgata uma particularidade da
cultura africana – as festas e a bebida.
Pois ouça-me,
senhor conselheiro: na minha terra há um dia em cada semana que se dedica à
festa do fetiche, e nesse dia, como não se trabalha, a gente diverte-se,
brinca, e bebe. Oh! Lá então é vinho de palmeira mil vezes melhor que a
cachaça, e ainda que tiquira (REIS, 1988, p. 143).
Conforme a
autora Reis (1988, p. 141), “Antero era um escravo, que guardava a casa, e cujo
maior defeito era a afeição que tinha a todas as bebidas alcoolizadas.” Mesmo
em condição servil, o personagem revela o negro num aspecto diferente da
escravidão, aparecendo como um escravo saudosista, que sente pela pátria
perdida e lembra-se o quão feliz era, fazendo referência às festas e bebidas
que tomava. Lamenta a vida como escravo e afirma que somente o vício da tiquira
lhe permite suportar a escravidão.
A identidade
cultural desse escravo não foi ignorada, mas suas lembranças resgatadas por
permitir que conversasse com Túlio. Benjamim (1987, p. 225), assinala que “o
processo de transmissão de cultura”, pode “escovar a história a contrapelo”, ou
seja, por narrar as experiências vividas, pode levar o outro a refletir sobre
pensamentos, ações e outros elementos que a classe dominante definiu como
natural e lógico.
Através da voz
do escravo Antero, Firmina aborda a questão do trabalho. Quando criticado por
Túlio por fumar e beber, o velho escravo disse ser o único vício que tem e o
conserva, até porque não prejudica ninguém. E acrescenta que quando vivia na
África, “bebia muitas vezes, embriagava-me, e ninguém me lançava isso no rosto;
porque para sustentar meu vício não me faltava meios. Trabalhava, e trabalhava
muito, o dinheiro era meu, não o esmolei” (Reis, 1988, p. 143).
Firmina mostra
que na África, os negros trabalhavam para se manterem e se divertiam nos dias
de descanso. E através do trabalho podiam comprar produtos de boa qualidade,
tendo assim uma vida tranquila e satisfatória, diferente da vida que levavam no
Brasil, em que como escravo tinha o pior tratamento e lhe sobravam o pior de
tudo.
Enfim, Maria
Firmina dá, historicamente, visibilidade ao negro e as relações sociais entre
eles e os seus senhores, compondo, assim, a realidade em que os escravos se
encontravam, concedendo-lhes dignidade humana, sentimentos e memória. Eles
passam a ser agente, sujeito de sua história.
3. Mulher no sistema patriarcal
Segundo Martin
(1988), no século XIX, raros livros expunham a tirania do homem com respeito à
mulher, como Reis descreveu. Schmidt (1999) comenta que em obras resgatadas de
escritoras do passado, mesmo com dificuldade em instituir sua autoria,
questionam e discutem aspectos relacionados a personagens femininas, provocando
deslocamentos semânticos significativos do campo convencional e tradicional sob
a ótica masculina. A ideia de autor no século XIX estava diretamente associada
à identidade masculina, como pai da obra, e não mãe, e era ele que tinha
direito a voz.
Tais deslocamentos
abrem espaços de resistência, de não submissão dos textos à coerção ideológica
dos scripts impostos pelo contexto histórico-social e pelos valores estéticos
da época em que os mesmos foram produzidos (SCHMIDT, 1999, p. 37).
A representação
das mulheres brancas em Úrsula é
uma visão crítica do papel delas na sociedade patriarcal no século XIX.
Mendonça (1999) expõe que enquanto o poder patriarcal se impunha sem
contestações, essa nova perspectiva quanto à posição da mulher, considerada
inferior, se instaurava imperceptivelmente livre de questionamento. Ainda de
acordo com a autora, uma das características do Romantismo era a preparação de
uma nova perspectiva de mudanças sociais, econômicas, que iriam influenciar as
ideologias da época. E foi nesse período, século XIX, Maria Firmina dos Reis
rompe com a ideologia da época e promove uma mudança de posturas, ou seja,
surge uma nova relação identitária.
Reis (1988)
mostra a personagem como a típica heroína romântica: tão caridosa; bela; olhos
negros, formosos e melancólicos; tímida, ingênua e singela em todas as ações. A
personagem é apresentada como sendo uma donzela frágil e desamparada é
disputada pelo bom moço, Tancredo, e o vilão, seu tio Fernando P… De acordo com
Mendes (2006), na tentativa de estar em sincronia com os padrões literários da
época, Reis reproduz alguns Estereótipos femininos que atenda a perspectiva
masculina.
Mendonça (1999)
declara que as personagens femininas desestabilizaram a ordem patriarcal,
fazendo, sob o ponto de vista imaginário, outras escolhas. Reis (1988) narra
que a casa de Luísa B… e de Úrsula era diferente dos padrões da época, em que
não havia um homem para assumir o comando: eram as duas e os escravos. Além
disso, a casa era simples e modesta, porém agradável.
Simples e
solitária era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro, donde a vista
dominava a imensidade dos campos. Um aspecto de nobre singeleza apresentava;
pouca extensa era, mas coroava-a um agradável mirante, orlado de largas
varandas, por onde uma onda de ar tépido divagava rumorejando (REIS, 1988, p.
29).
Conforme Mendes
(2006), a casa da matriarca na narrativa é um espaço privilegiado, pois
representa o lugar em que a mulher reina como soberana, detentora do poder. Na
visão da autora, o casa também simboliza o refúgio, a proteção e o seio materno.
A obra fala de
Luísa B…, mãe de Úrsula, levou uma vida de sofrimento com o irmão Fernando P… e
depois com o marido e mãe de Tancredo que sofreu sob o jugo do marido opressor.
Tancredo
comenta sobre sua mãe, que não tem o nome revelado, ser uma mulher santa e
humilde, pois convivia com seu pai, Comendador P…, homem impiedoso e orgulhoso,
que a magoava a ponto de chorar de infelicidade e desgosto. O personagem
continua contando seu passado, mostrando o quanto o sistema patriarcal era
forte, porque ele ficou afastado de sua mãe por seis anos para estudar direito
e ela estava cheia de saudades. Ela sofria a sua ausência, “porque era vontade
de seu esposo”, além de temê-lo e respeitá-lo, conforme Reis (1988, p. 49).
Nesse sentido,
a mãe de Tancredo, submissa ao marido, é a representação do sistema patriarcal
do século XIX. Mendes (2006) conta que Maria Firmina usa um homem, Tancredo,
para denunciar e criticar a relação hierárquica entre homem e mulher naquela
época, em que era natural o mundo ter comando masculino, demonstrando o desejo
de igualdade de gêneros, uma vez que a mulher era vista como ser inferior.
Meu pai era o
tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se
com sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso
– minha mãe era uma santa e humilde mulher (REIS, 1988, p. 49).
Ainda no núcleo
dramático de Tancredo, surge Adelaide, por quem se apaixonara quando retornou
da faculdade de direito para casa e que o fizera sofrer de amor até encontrar
Úrsula. A personagem Adelaide, bela e encantadora, era órfã de pai e mãe e foi
acolhida pela mãe de Tancredo como uma filha. Comendador P… não aceitava a
união dos dois, mas após muitas insistências, permitiu o casamento entre eles,
desde que o filho esperasse um ano, trabalhando em outra província. Tancredo
aceitou a proposta do pai: “Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e
submeti-me a sua vontade férrea. Saí do seu quarto prostrado de amargura, e
porque a dor era funda em meu coração” (REIS, 1988, p. 58).
Quando retorna
para casa, devido à morte de sua mãe e na tentativa de encontrar seu amor,
Adelaide, é surpreendido com o casamento entre ela e seu pai.
– Mulher infame! –
disse-lhe – perjura… onde estão os teus votos? É assim que retribuíste a
estremecida paixão que te rendi? É com um requinte de vil e vergonhosa traição
que compensaste o ardente afeto da minha alma?… Monstro, demônio, mulher fementida,
restitui-me minha pobre mãe, essa que também foi tua mãe, que agasalhou no seio
a áspide que havia de mordê-la!… (REIS, 1988, p. 66).
Mendes (2006)
explana que Adelaide representa a mulher do povo, que submete a tudo pela
sobrevivência, aceitando determinadas práticas em prol da sobrevivência. Ela
inicialmente é apresentada como uma pessoa sofredora e de repente reverte o
jogo, ou seja, passa de agregada à amante. Adelaide, portanto, representa a
imagem das diabas, sereias e medusas, simbolizando a luxúria.
Luísa B…, mãe
de Úrsula, na trama é uma mulher paralítica, que sofre com o ódio do irmão,
após contrariá-lo, uma vez que ele reprovava seu casamento.
Seu coração só
se abriu uma vez, foi para o amor fraterno. Amou-me, amou-me muito; mas quando tive
a infelicidade de incorrer no seu desagrado, todo esse amor tornou-se em ódio,
implacável, terrível, e vingativo. Meu irmão jamais me poderá perdoar… Amou-me
na infância com tanto extremo e carinho que o enobreciam aos olhos de meus
pais, que o adoravam, e depois que ambos caíram no sepulcro, ele continuou a
sua fraternal ternura para comigo. Mais tarde, um amor irresistível levou a
desposar um homem que meu irmão no seu orgulho julgou inferior a nós pelo
nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B… (REIS, 1988, p. 73, 74).
O ódio de
Fernando P… surgiu com o casamento de Luísa B… com Paulo B…, porque julgava o
cunhado de nível inferior a sua irmã. Uma transgressão de valores na época, em
que se uma mulher cria um conflito com o detentor do poder no sistema
patriarcal da época.
Paulo B… não
compreendeu a grandeza do amor de Luísa B…, e ela cumulou desgostos e aflições,
pois seu esposo desrespeitava seus deveres conjugais, gastando sua fortuna com
amantes. Seu marido foi assassinado e, meses depois, ela ficou paralítica e com
muitas dívidas, que foi comprada por seu irmão, deixando-as no infortúnio. A
sua alegria, no casamento, foi a sua filha Úrsula.
Com a morte de
Luísa B…, Tancredo a leva para o convento, como proteção de Fernando P…, que
tenta de todas as formas possíveis tomar sua sobrinha em casamento.
Pouco antes do
casamento entre os dois protagonistas, Tancredo e Úrsula, Túlio é capturado,
mas consegue escapar do cativeiro. Túlio é morto antes de avisar ao amigo da
perseguição de Fernando P…, de forma que o tio de Úrsula encontra o casal feliz
por ter sua amada como esposa e mata Tancredo antes de consumar o matrimônio.
Úrsula fica louca até a morte. Mendes (2006) aponta que Úrsula sofre duplo
martírio, um grande sofrimento, perda do esposo e da razão, ao amar Tancredo e
sofrer com os assédios do tio e as consequências disso: Seu amado assassinado
pelo tio antes da consumação do matrimônio.
Novamente, Reis
(1988) reforça, de modo crítico, o poderio do homem naquela sociedade. Tanto o
Comendador P… como o Fernando P… são representações do machismo da época.
Segundo Mendes (2006), eles simbolizam a encarnação do mal, o vilão que
destruiu a vida de várias pessoas para alcançar os seus objetivos, assumindo
assim o papel de antagonista.
Considerações finais
Esse artigo
permitiu uma análise do romance Úrsula,
que possibilita conhecer a história, não nas vozes dos dominantes, mas nas dos
excluídos, como mulheres e negros, mas com perspectivas diferentes dos demais
escritores de sua época.
Maria Firmina
dos Reis, como mulher e afrodescendente, foi uma escritora, que, por muito
tempo, teve suas obras esquecidas, sendo reconhecida após sua morte, como a
primeira escritora brasileira, quando um pesquisador encontra um único exemplar
do livro Úrsula, que é considerado o
primeiro romance abolicionista na literatura brasileira. O resgate dessa
produção literária, ao ser escrita por uma mulher, e que assumiu uma posição
inferiorizada, pois diante do domínio literário masculino, traz à tona uma nova
história que permite rediscutir conceitos sobre negros e mulheres no século XIX.
Pesquisa
e texto final:
Raimundo
Fontenele
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