O
CALIFADO DOS APICUNS
Pra quem não sabe, principalmente as
novas gerações: há em São Luís, nas imediações da Rua do Passeio, aquela quadra
antes da Avenida Kennedy, próximo ao Socorrão, por trás do Hospital Português,
também perto de um endereço famoso que era o Cine Rialto, atrás do SENAC,
enfim, situa-se neste endereço um tanto impreciso pela pobreza da minha
descrição, a Rua dos Apicuns. Bem que poderia esse quadrilátero geográfico
tomar o nome de Bairro dos Apicuns, se já não o fez.
Pois este território é um pedaço
mágico na recordação de muitos poetas e literatos, políticos e pensadores,
boêmios e vagabundos. Falo vagabundos, porque vocês não imaginam a finesse e o
glamour dos vagaus de outrora.
E nessa Rua dos Apicuns residia uma
espécie de Califa de Bagdá, e ele certamente me quebraria os ossos, fosse vivo
e me ouvisse falando tal sacrilégio, pois o grande José Erasmo de Fontoura e Esteves
Dias (na verdade seu nome verdadeiro era José Erasmo Dias, mas ele resolveu
acrescentar o de Fontoura e Esteves para dar um certo ar de nobreza, e ele
fazia questão de que assim fosse chamado e assim também fosse grafado seu nome),
pois Erasmo era um judeu convicto, desses capazes de, na madrugada, encharcado
de pinga, além de pronunciar palavras em hebraico, chamar pelos seus reis magos
Davi e Salomão, atracar-se num pedaço de carneiro, frio, ensebado, com alho
cru, e mastigar isso com verdadeira fome,
enquanto, emotivo como ele só, derrama algumas lágrimas de crocodilo, pelo
amor à vida, a vida em si mesma, não por amores perdidos, paixões fracassadas
ou ilusões perdidas.
Intelectual maranhense de primeira
grandeza, seu livro Páginas de Crítica introduziu, em nosso pacato e
provinciano meio literário, o nome e a obra dos maiores escritores da literatura
universal, inclusive traduzindo algumas dessas feras da prosa e da poesia.
Político, tribuno polêmico, orador
pertencendo à estirpe dos grandes romanos, Erasmo era um Cícero maranhense, um
Catilina dotado da mesma verve, sabedoria e improviso para fazer calar, do
púlpito em que discursava na Assembléia Legislativa do Estado, alguns deputados
de araque, demagogos de primeira grandeza em que o Maranhão, infelizmente,
também é pródigo.
A lenda não precisa de comprovação
de que seja verdadeira, assim como o mito dispensa concretude: senão, não
seriam lendas e mitos. Uma dessas é que travando discussão em sessão da
Assembléia Legislativa, alguém o aparteou chamando-o de burro ao que ele
prontamente respondeu: “O que V. Exa. ouve é o eco da sua própria voz”.
Erasmo Dias foi deputado, foi
prefeito de São Luís por um breve tempo, foi escritor, poeta, cronista,
crítico, boêmio, judeu, amigo dos amigos, beberrão imoderado, tudo que se
pensar ele foi, com sobra, em excesso, além dos limites, ocupando assim a
memória e o coração dos que o conheceram e tiveram a felicidade de privar de
sua convivência e amizade. Por menor que fosse, tornavam-se grandiosas,
imensas, inesquecíveis.
Outro dia, ou um dia desses,
conversando com o ilustre e fabuloso poeta e escritor Fernando Braga acerca
dessas minhas crônicas rememorativas, tocamos no nome de Erasmo Dias e suas
histórias, sabem como é, conversa vai, conversa vem, o poeta Fernando Braga,
que agora se exila numa cidade histórica, turística e famosa por suas águas
termais no Estado do Goiás, me disse que poderia ajudar-me com alguns
subsídios, ele também com essa facilidade narrativa que quem conhece seus
textos pode confirmar, e daí pensei numa crônica chamada A República dos
Apicuns. Haja fôlego, não é, amigos? Sem ponto ou ponto e virgula num parágrafo
desse, desculpem-me o estilo prolixo, espero que não seja cansativo.
Então o Fernando achou muito bom
esse título, um achado feliz, mesmo sabendo nós que o poeta Luís Augusto Cassas
foi, entre nós maranhenses, o pioneiro com o seu livro de poemas A República
dos Becos, um dos momentos mais altos da poesia maranhense, uma ode belíssima a
uma São Luís que somente na década de setenta assentaria raízes mais profundas
naquela tradição e transformação modernista que o centro do país vivera nos
anos 20.
E não podemos esquecer A República,
de Platão, da qual os poetas eram praticamente banidos, nem a República de
Curitiba com seu processo de limpeza da Lava Jato, que passará à história como um momento dos
mais felizes da historiografia brasileira, quando fomos capazes de olhar para
dentro de nós mesmos e proclamarmos, alto e bom som, para o mundo todo ouvir: “sim,
somos um bando de corruptos e corruptores”.
A partir de agora saem As Crônicas
Ludovicenses e entra A REPÚBLICA DOS APICUNS, com o subtítulo Crônicas
Ludovicenses. Vamos continuar contando nossa história pessoal entre 1967 e 1976,
anos em que vivi na capital maranhense, fundindo-a
(ela, a história) com a cidade de São Luís e seus acontecimentos: literários uns,
históricos outros; esses, políticos e aqueloutros humorísticos, sem esquecer
seus personagens, figuras sui generis na paisagem urbana e cultural da Ilha
Rebelde. Lerão sobre o Rei dos Homens e o Companheiro, este vendendo na esquina
da João Lisboa com a Rua Grande o melhor cachorro quente da cidade naquela
época de ouro da amada São Luís. Acompanhem-me.
Ou, como dizia o Chaves, “sigam-me
os bons”.
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