Após breve sumiço está
de volta o nosso blog LITERATURA LIMITE com sua coluna QUARTA FEIRA É DIA DE RF
e com novo endereço na web (www.literaturalimite.blogspot.com.br).
Acesse e vamos curtir este texto que faz parte do livro de contos inéditos
Pedaços de Alberto Caronte. Literatura e arte, ao contrário do que pensam e
proclamam alguns, não é fuga e sim encontro com o outro, com nós mesmos e com o
mundo.
ZONA
PROIBIDA
Nos
poucos meses em que ficamos juntos nos metemos em todo tipo de prazer e dor.
Tínhamos encontrado nossa metade mais acabada, mais que perfeita. Se era para
seguirmos por uma vereda de salvação, lá íamos nós, fingida e verdadeiramente
contritos. Convictos, com o mesmo ardor, nos arrastamos por tocas de perdição,
lugares escusos, fontes copiosas de fel que jamais secariam.
Depois
da cerca, bem cuidada e estranha, jazia estendido no chão e uma faca
enfeitava-lhe o peito, quase na altura do coração, com tinturas vermelhas.
Isso. Ele estava ferido, caído na sarjeta. A lua, um pedaço de prata que o céu
jogava na sua cara, era a única testemunha. Rastejou como fazem os vermes, no
escuro e úmido chão de uma noite morta.
Sara.
Era esse seu nome. Arrancou-lhe do peito aquele pequeno punhal que, feliz ou
infelizmente, não o ferira mortalmente. Levou-o, de táxi, para sua casa e o
curou com sua amizade, seu amor, seu sexo.
Ficou
com ela por amor e amizade. Amor, porque esse foi o nome da sua perdição.. E
amizade, porque esse não é um sentimento de mesquinhos. E ele estava perdido,
mas não se sentia mesquinho, pelo menos naquela época. Daria tudo para
tornar-se um santo, purificar-se, atingir alguma forma de perfeição. Mesmo que
no só no papel. Pois, na real, era um cara que tinha quase todos os desvios,
desejos, vícios e taras sexuais. E todos os crimes, e todas as culpas.
Sara
trabalhava numa empresa de telemarketing o dia inteiro. Sábados, domingos e
feriados. Horas e horas extras, porque ele precisava de dinheiro para alimentar
todas suas necessidades: bebida, drogas, os tais amigos, outras mulheres.
Moravam
numa casinha de madeira, alegre a agradável, de um claro azul que combinava com
o marrom suave de grades, portas e janelas. Sempre limpa e asseada, todas as
coisas nos seus devidos lugares. Dois quartos, duas salas, uma servindo de copa
e a outra de sala de estar, uma cozinha espaçosa, banheiro e área de serviço num
minúsculo quintal. Na frente da casa, vasos de plantas diversas: violetas,
samambaias de Boston, bromélias, lírios da paz, begônias.
–
São as únicas plantas que suporto. Todas as outras dão azar – ela falou com uma
voz de criança que sempre tinha, mesmo quando magoada ou feroz.
Mas,
quem ouvisse aquela voz ao telefone jamais saberia do que Sara era capaz.
Estava com trinta anos e ele com quarenta. A forte, a batalhadora era ela.
Havia catado aquele homem no lixo, sangrando. Quando sarou, deixou que a chupasse
toda, pela primeira vez na vida; trepou nele e gozou entre urros, quase nunca
suspiros. Deu-lhe lições de cavalheirismo em alguns restaurantes de grã-finos
que, às vezes, frequentavam. Geralmente ele descolava uma grana nos fins de
semana, não perguntem como. Há mil maneiras de se fazer dinheiro, inclusive,
fazendo-o.
Mas
isso não importa agora. Sabiam que ali naquela casinha de Curitiba poderiam ter
sido muito felizes.Eram pirados demais, cada um a sua maneira,, para qualquer
plano dar certo. Como no poema de Maiakovski, o solo dos corações também havia
secado. Pessoas que, mesmo querendo, não conseguiam amar. O pensamento e a
emoção aprisionados pelo medo de sofrer. A determinação de não se repetirem. No
fundo, seres originais.
Aos
quarenta anos ele tinha enfrentado e perdido incontáveis batalhas. Fracasso em
cima de fracasso. Uma terrível escalada para baixo. Quando chegava ao fundo do
poço e conseguia anular-se completamente Caronte parava de sofrer. A vida lhe
sabia mais tragável. Queria, de novo, voltar a ter um pouco de humanidade. Ela
precisava do mesmo que ele, ansiava o mesmo que ele, dois sedentos em busca da
mesma água.
Ao final
das contas um dos dois devia sobrar. Alguém ia perder na história, e outro
alguém ia sofrer mais, e perder mais. E perder tudo. Às vezes isso acontece.
Mesmo que não se dêem conta. Flor a embriagá-los com seu perfume-veneno. O
espinho e o rastro de sangue que ele deixa atrás de alguém.
Um dia contei o incidente, o cara
que me acertou com o punhal, a polícia estava no encalço do cara, por isso ele
resolveu sumir. Os vizinhos sabiam disso, só por isso escapou com vida e pela
mão de Sara que passava naquele instante e foi com sua cara. Nem bonito nem
feio. A simpatia, o papo inteligente, a conversa mole e afiada ganhavam as
pessoas, inspiravam confiança.
Dentro de
uma sala de uns quatro metros quadrados. Lá na frente havia uma pequena mesa de
madeira e uma cadeira, sem encosto, onde o alemão Nardela, sentado, o
torturava. Era a maquininha de tortura, parecia uma daquelas máquinas
calculadoras antiquíssimas que se via em escritórios e casas comerciais, com
uma manivela do lado direito, que na polícia chamavam de maricota.
Havia
também um banco de madeira com, no máximo, uns quarenta centímetros de altura,
que acolhera a jaqueta porteña de trinta dólares do infeliz Caronte, do lado
oposto ao local onde há pouco se sentara seu algoz. Caronte tentou levantar-se,
arrastar-se até aquele banco, ali estaria mais quente que o cimento frio, mas
foi inútil qualquer esforço.
Caíra para
a frente, berrando, logo após a primeira saraivada de choques elétricos. “Sara,
me salva”, pensou e orou, ajoelhando-se.
A última
vez em que se beijaram, umas três horas antes da sua prisão em flagrante, ela
fora empurrando-o até o sofá. Caiu deitado, ela sentou-se sobre ele, fervendo e
trepidante, beijou-lhe os lábios com saliva quente e salgada, e era como se ela
estivesse também ajoelhada e rezando. Na verdade antecipava no gozo a
condenação. Por isso, embora estivessem molhados pelo desejo de macho e fêmea,
abrasados, sedentos, mais quentes eram as lágrimas dela, antes e depois de
tanta sofreguidão.
– Porra,
já falei! Não sou traficante...
– Tu veio
de onde, seu merda?
– Já
disse. Vim por último de Camboriú. Mas estive antes em Brasília, Fortaleza, Porto
Alegre, São Luís, por aí...
– Chega!
Tu vai falar “jacu” de bosta.
Depois
desse diálogo entre o alemão Nardela, um policial com fama de torturador, e
Caronte, acusado de tráfico de droga, a autoridade girou a manivela da Maricota
com ódio e velocidade. Caronte pulou, um boneco de mola saltando para o nada.
Deu de cara no chão, sangue escorria do seu queixo, mas ele não sentia dor
alguma. Ficou ali caído, ofegante.
Abriu
os olhos e estava sozinho. Mais de quarenta minutos se passaram, e só agora ele
pode ver, com espanto, o local em que se encontrava. Na chegada o pânico foi
tanto que praticamente não enxergou nada. A não ser a mesa, a máquina, o banco
e a penumbra.
Chegou e pôs todos os sonhos na
mesa. Eles iam ter do bom e do melhor, comer nos melhores restaurantes, viajar para
qualquer ponto do universo. Falou aquilo e ela acreditou. Nem sabia como pode
prometer tanto, logo ele que desde os sete anos de idade sabia que a vida nunca
seria uma promessa. O certo é que estavam ali, ele e Sara, num lugar chamado Frango Sem
Nariz. Era uma casa para lá de suspeita.
Espécie de bar, restaurante, e, nos fundos, salas de jogatina, lugar para consumir drogas, quartos para a prática
do sexo. Se você tivesse duzentos mangos para pagar uma hora, podia fazer o que
quisesse.
Era um tempo
de suspeitos, de asas lúgubres sobrevoando nossas cabeças e de sombras negras
que se misturavam a nossa própria sombra. Foi assim que tudo começou naquela
tarde chuvosa de setembro de uma quarta-feira, às duas e meia, num estacionamento
de uma rua no bairro Barigui. Era primavera, mas não eram flores, e sim
revólveres apontados na direção de Caronte e seu amigo Paçoca.
Haviam
estacionado o volksblue, o Paçoca desceu e foi até um barzinho fazer um contato
para entrega da mercadoria. Caronte permaneceu no carro, mas logo que Paçoca
desapareceu, um nó apertou-lhe a garganta, alguma coisa girou angustiada na sua
cabeça e ele desceu e foi tudo instantâneo.
Enquanto
Caronte descia, ao mesmo tempo em que largava a droga no piso do carro, um Gol
da polícia militar entrava no pátio, e dois policiais saltaram e caminharam em
sua direção com revólveres em punho e engatilhados.
– Não se
mexe... deita no chão, de bruços, porra! – falou um deles, alto, magro, moreno,
com aquele bigodinho fino e bem aparado, em cujo crachá podia-se ler Soldado
Rodolfo.
A vida
tinha se tornado uma coisa valiosa para Caronte e cada ano agora era vivido
intensamente, cada ano valia por dez. Se ele tivesse que escrever a história da
sua vida seria assim que começaria o livro. Mas ele não estava escrevendo e sim
contanto a história da sua vida.
Se
ele tivesse outra vida, mesmo que fosse essa que se está contando agora, ele
iria querer vivê-la de novo, porque achava que um homem era uma ponte entre o
cão raivoso e feroz que se urina de ódio e aquela pomba branca sobre um gramado
verde, anunciadora de paz e esperança.
Um fora da
jogada.
Desesperado
de amor e encharcado com a chuva persistente que caía naquele sábado.
Felizmente Caronte estava com o estômago vazio. Não comera nada o dia todo e já
eram cinco e picos da tarde, por isso não vomitou na sala de espera do
consultório médico. Sara estava lá a uma eternidade.
Aí ela
saiu, pálida e linda. Na rua, tonto, o coração cravado por esporas e esperas,
quase se afogou nas palavras.
– E aí,
Sara, fala logo.
– O doutor
passou uns remédios e repouso absoluto, senão vou abortar. Disse que é
estresse, cansaço, nervosismo, essas coisas.
Foi tudo o
que falaram no trajeto para casa. Estava anoitecendo, Caronte iria ligar a TV,
Sara ia ficar no quarto com suas dores e esquisitices, e foi o que aconteceu.
Dez horas da noite Caronte não suportou mais aquilo ali, Sara dormia, na rua
entrou no primeiro bar que encontrou, pediu um conhaque e uma cerveja e repetiu
a dose até perder a conta de quanto s conhaques e cevas derrubara.
Uma noite
de infernos se arrastava pelas ruas junto com ele. Instantes de lucidez
repetiam martelando em seu cérebro que amar é perder, amar é esquecer, amar é
sair de foco.
Caronte
sabe apenas que esteve no apê de Verinha, uma puta novinha de tetas imensas que
gozava gritando “ai tio, ai tio”, mas foi enxotado de lá aos primeiros claros
da manhã. A embriaguez se dissipara um pouco, pés enlouquecidos o levaram a uma
viela cheia de barracos de madeira no bairro Barigui.
Bateu três
vezes na porta. Duas batidas aceleradas e uma mais lenta, era esta a senha. O
cara que lhe abriu a porta com os olhos empapuçados era o Mahala, bicho grilo
dono daquela boca-de-fumo, que tocou de leve em seu ombro, fechou a porta e lhe
apresentou um baseado apagado e fumado pela metade. Caronte acendeu a guimba,
deu uns três fortes tragadas e sentou-se num caixote de madeira no canto da
sala.
– Tá mal,
hein mano? – perguntou Mahala, cuspindo-lhe na cara por entre as falhas dos
dentes.
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