4 de jan. de 2018

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

  Esta semana o nosso blog LITERATURA LIMITE (acesse-o via www.literaturalimite.blogspot.com.br) foi buscar inspiração no livro mágico de Guimarães Rosa, GRANDE SERTÃO: VEREDAS, cuja mini-série está sendo reprisada no Canal Viva, o 23 da NET, num horário tardio para alguns, meia noite e meia. Mas vale a pena, este sim, ver de novo.
           Zonas de sombra, lugares sombrios, cantos escuros, assim costumamos nomear aqueles esconderijos da mente e da alma onde permanecem intactos sentimentos, lembranças, leituras, visões, percepções, da arte e da vida, que nos acompanharão da infância à morte. E até depois desta, se houver tal coisa.
         Num passe de mágica, saltou-me da memória, vivinho da silva, uma dessas preciosidades: um dos maiores romances da literatura universal, o Grande Sertão: Veredas, do nosso mineirinho João Guimarães Rosa.
         Fôssemos outro povo e outra cultura este livro certamente se ombrearia, ali, cabeça a cabeça como num páreo de primeira, com outras obras famosas da literatura de todos os tempos, Dom Quixote, Ulysses de Joice, ou mesmo o outro Ulisses, o pioneiro, de Homero, o poeta grego.
         Certo é que universalizamos, com toda justiça, Machado de Assis, mas deixamos muita coisa de fora, fato que só encontra respaldo nas afirmativas de um Nelson Rodrigues, revelador do nosso complexo de vira-lata, ou Tom Jobim dizendo que o brasileiro não suporta o sucesso do seu conterrâneo ou, mais ainda, a frase genial de Oto Lara Rezende “o mineiro (e poderíamos dizer o brasileiro) só é solidário no câncer”.
         Duro ouvir essas verdades? Dói? Claro. Senão não seriam verdadeiras. Como é verdade também que, considerado o universo de leitores brasileiros, aí enfeixados leitores de bulas de remédio, leitores de fanzines, leitores de teses e obras acadêmicas, e mesmo leitores de literatura, podemos afirmar que apenas 000000,1% leu o livro em questão: o Grande Sertão: Veredas.
         E o que dizer das novas gerações? Mesmo os professores acadêmicos, formados em nossas universidades sob a égide exclusiva de pensadores marxistas (aqui quero englobar todos os pensadores e escritores ditos de esquerda), essa enxurrada dos assim chamados “filósofos”, “sociólogos”, que não são filósofos nem sociólogos de porra nenhuma e sim militantes e militontos de uma ideologia que usa viseira de burro, que repetem chavões mortos e enterrados  nos anos sessenta do século passado (o odor de mofo e o bolor são insuportáveis), sim, estes aí não lêem nada, miuito menos o Grande Sertão. Por isso, na atual circunstância temos zero de literatura que preste entre nós, nas letras pátrias, nas Flits e Bienais, e Feiras de Livro, é tudo uma palhaçada de tapinhas nas costas e bebericagens dos cabeças ocas, atuais representantes da nossa cultura editorial e livresca.
         Fodeu-se o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, sob a égide de uma Farsa Educativa cujo guru é Paulo Freire; de uma Presidência que foi  sistematicamente ocupada pelas saúvas da pátria: por Sarney, o corrupto-mor, até hoje conselheiro da república; Collor, o caçador de marajás que terminou apeado do poder, após ter confiscado a poupança dos brasileiros, num plano que levou até gente ao suicídio e à ruína; um sociólogo de esquerda, que se tem algum  mérito, muito demérito tem, pois também comprou deputados para aprovar o projeto da reeleição que o beneficiou; e depois veio Lula, um analfabeto de pai e mãe, ou  melhor, analfabeto das letras e da moral (cercado de pseudointelectuais e artistas que lhe avalizavam e o avalizam até hoje a roubalheira nojenta como forma de governar e perpetuar-se no poder por ele implantada); e depois veio a Dilma, a patogênica, oligofrênica, a maluca de hospício, a doida varrida que nos jogou nas mãos do atual presidente Temer, um janota corrupto que manda seus asseclas correrem da polícia com malas e malas cheias do dinheiro que nos é roubado diariamente.
         Queríamos o que? Leitores e admiradores de Guimarães Rosa no meio dessa gente? Impossível!
         E percebam: nós estamos tratando de um livro que retrata parte de um Brasil nas primeiras décadas do século passado. Quando não se falava em direitos humanos, aliás, não se falava mesmo de nenhum direito. Pois ele, o direito, se sustentava, nesse interior do nordeste brasileiro, cruel e fascinante, pelo poder do dinheiro dos fazendeiros, donos de vastidões de terra, de gente, e de gado, e pelas línguas de fogo dos rifles e bacamartes, e às vezes o corte certeiro de facas e punhais.
         Mais que o provável romance entre Riobaldo, vulgo Tatarana (lagarta de fogo) e Reinaldo, de alcunha Diadorim, que a mini-série da Globo põe em relevo, por razões mercadológicas compreensíveis, mas também pela expectativa do público dessas novelas que sonham com romances entre mocinhos e mocinhas, mesmo que agora os parceiros sejam trans, lésbicas, gays, traficantes, políticos corruptos, não importa, pois para essa platéia massificada (e bestificada em muitos casos) todos são heróis, todos são exemplos com que sonham muitas das crianças do Brasil, sim, mais que o provável romance, a grandiosidade da obra de Guimarães Rosa, em primeiríssimo lugar, está sua linguagem, magistral criação do escritor mineiro.
         A fala dos jagunços e fazendeiros, das mulheres e dos roceiros, tudo gente analfabeta na criação de Guimarães Rosa transmuta-se numa fala sinfônica, poética, plena de beleza e mistério. Vamos tirar a prova dos noves com esse texto do livro:
         “Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa Rita – todo o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: - “Eu já vou! Eu já vou!...” – que é o capiroto, o que-diga... E um Jisé Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar... Superstição. Jisé Simpilício e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que-Diga? Doideira. A fantasia-ção. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!
         Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de Maria-preta na mão – proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos desencarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixe lá, que – em endemoninhamento ou com encosto – o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d´Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhacre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?”
         Linguagem pura e única, mas não é só isso o mérito do livro. É um painel daquela espécie de vida brasileira que pontuou no fim do império e no início da velha república. Os nomes de pessoas e lugares. As chuvas e os magotes de jagunços, apeados de seus cavalos, debaixo dos grandes mangueirais, encouraçados no ferro e na brasa, disputando o poder, traindo e matando.
         Passagens bíblicas de homens famintos comendo terra para manterem-se vivos. Com a visão e a mente turvas vendo feições de macaco onde havia um homem, que eles mataram e comeram, e que só lá pelo meio da comilança encravou-se uma suspeita atroz: por que não encontravam o rabo do bicho? E logo em seguida chega uma mulher, de feição cabocla, cabelos desgrenhados, a pele murcha e rachando pelo sol, empoeirada, e em prantos dizendo que foi o filho dela que mataram.
         Joca Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes, Medeiros Vaz, e tantos outros e outros mais, no texto citado anteriormente, lá mesmo está esta citação: “Se eu pudesse esquecer tantos nomes...”, mas a gente não esquece uma saga desta, não podemos esquecer que deste mundo cada um de nós veio um pouco ou um muito de lá, e continuamos atados, amarrados a esta incrível epopeia nacional, que nos afasta do futuro e nos remete sempre para o passado, como estamos vendo o atraso no pagamento do funcionalismo público, de norte a sul do Brasil, chaga que já havia sido erradicada nos estados e cidades mais prósperas e que agora voltam a repetir a mesma insanidade brutal e cruel contra uma população indefesa, bestificada e massificada pela grande mídia que também ajudou e contribuiu para este caos do momento.
         Isto era coisa da velha república no tempo narrado pelo livro de Guimarães Rosa, o Grande Sertão: Veradas.
         É esta a grande literatura brasileira. De um escritor dedicado inteiramente ao seu ofício, leal ao seus sentimentos de pátria, sem fanfarras hipócritas, sem coro de puxa-sacos, ele, que, ao construir um novo pensamento e uma nova linguagem literária, fez mais pelo Brasil do que todos estes pavões cobertos com penas de falso brilho e falsas cores.
         E não pensem que se pode dissociar a vida real do que é arte, as construções coletivas das individuais, pois a nação é a soma de tudo e de todos numa mesma época e num mesmo tempo e lugar.
         Quando se vê o tipo de artista, de música, de teatro e cinema, de todas as formas criadoras de arte que nos são apresentadas nos shows, nas pinacotecas, nos eventos literários, saraus e bienais e feiras de livros, tudo isso tem o seu contraponto, o ser marcapasso na forma de se fazer política atualmente, no predomínio de governantes medíocres e insinceros, quando não vorazes ladrões e gatunos profissionais; legisladores que produzem leis que os colocam nos reles patamar ou pátios de prisões onde deviam todos se juntar aos traficantes, assassinos, homicidas e criminosos profissionais de toda a espécie; e juízes venais, que transformam os tribunais em gabinetes onde se negociam favores e sentenças.
         É este o Brasil do aqui e agora, longe de Drummond e de Guimarães Rosa e mais perto dos que perambulam ostentando seus dólares em cuecas e em malas recheadas de milhões de reais: portanto, longe da alta literatura de Grande Sertão: Veredas, mas muito perto dos jagunços e coronéis que habitam as páginas deste grande livro. 


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